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Opinião

Uma dose de loucura para fugir da prisão que é a própria vida

"A existência é uma confusão, e um dos serviços prestados pelos romancistas (um dos principais motivos pelos quais você me lê, pelos quais eu leio) é dar uma aparência de causalidade e de sentido a uma realidade que é apenas som e fúria. Mesmo o romance mais experimental e desconexo tem um começo e um fim, e domestica de algum modo essa algazarra absurda em que vivemos. Romances são uma pequena ilha de significados no mar do caos."

Desde que comecei a ler elogios para livros como "Nós, Mulheres" e "A Ridícula Ideia de Nunca Mais te Ver" que a literatura de Rosa Montero estava na minha mira. Às vezes demora para rolar a união entre a vontade de conhecer um autor e a conjunção de fatores que nos levam até determinado livro. A iminência de uma viagem para a Espanha, terra de Rosa, foi decisiva para que o recém-lançado "O Perigo de Estar Lúcida" (Todavia, tradução de Mariana Sanchez) furasse qualquer fila assim que chegou em casa.

Rosa gosta de chamar parte de seus livros de artefatos literários. É menos uma definição precisa e mais um esforço para transmitir a ideia de um texto caprichado, no qual mistura ensaio, ficção e elementos biográficos seus e de terceiros. Faz isso demonstrando muita curiosidade e transmitindo ao leitor a sensação de estar diante de uma escritora de gentileza e simpatia raras.

"Somos todos esquisitinhos, embora, é verdade, uns mais do que outros", escreve Rosa nas primeiras páginas de "O Perigo de Estar Lúcida". O trabalho é uma análise de como desvios de diferentes tipos, mais ou menos caros a qualquer um de nós, podem aguçar a sensibilidade e contribuir para a criatividade. Ciente de que a dita normalidade não passa de uma construção social, ao analisar pequenos (ou nem tão pequenos) desvios, principalmente de colegas escritores, Rosa investiga a contribuição de certa dose de loucura para nossas vidas.

Para isso, apoia-se em estudos e em passagens improváveis e um tanto misteriosas de sua própria caminhada. Também se debruça sobre a existência e a criação de diversos autores, muitos deles donos de trajetórias conturbadas, marcadas por agonias diversas. Estão pelas páginas de Rosa nomes como Clarice Lispector, Ursula K. Le Guin e Dostoiévski.

Ao analisar a relação de artistas com as mais diversas drogas, registra que Voltaire tomava 50 xícaras de café por dia, enquanto Balzac encarava 40. Surpreendem as boas doses de Bukowski, "sujeito catastrófico" que a autora sempre achou péssimo, mas criou certa afeição após ler suas cartas e notas biográficas.

Os impactos do machismo e das violências sociais na personalidade e nos escritos de Emily Dickinson e Sylvia Plath são alguns dos pontos altos do livro. Essas pessoas de mentes convulsionadas e biografias nada invejáveis que, no entanto, foram as responsáveis por criar mundos nos quais os leitores podem se aventurar e se experimentar. Rosa entende a ficção como uma necessária viagem ao outro:

"Quem nunca desejou fugir do confinamento da própria vida? E não porque não gostemos dessa vida, mas porque uma existência única, por maior e melhor que seja, sempre será uma espécie de prisão, uma mutilação das outras realidades possíveis, dos outros indivíduos que poderíamos ser. Quem nunca desejou ser outro? Conter-se em uma só identidade é empobrecedor."

Numa imagem melancólica, a autora aponta que "a existência é uma boate barata vista à luz do dia". Daí que passamos parte de nossa trajetória procurando viver nessa boate durante a noite, quando a realidade crua perde espaço para a fantasia, quando a sensualidade e os mistérios tomam o lugar da deprimente frigidez das mesas vazias e dos estofados manchados.

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Não é na lucidez absoluta que encontramos o apuro, ainda que ficcional, que faz com que a vida seja menos medíocre.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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