Achados e perdidos

No Brasil, São Longuinho tem uma única igreja devotada a ele e fica em Guararema, no interior de São Paulo

Rodrigo Bertolotto Colaboração para Nossa, de Guararema (SP) Keiny Andrade/UOL

"São Longuinho, São Longuinho, se eu achar dou três pulinhos". Muita gente pensa que esse costume brasileiríssimo da Silva é apenas uma simpatia rimada, estranhando o nome do santo e também o tipo de promessa.

Mas Longinus (o nome original) está na galeria de santos católicos desde a Idade Média. E seu dia de devoção é 15 de março, quando começa uma festividade de três dias na única igreja do Brasil dedicada a ele, situada em Guararema, na Grande São Paulo.

Durante uma reforma nos anos 1950, a imagem dele foi encontrada dentro de uma arca no templo erguido no século 17. Colocada no altar, começou uma história local de devoção e milagres.

Tanto é assim que um buraco surgiu perto da estátua, e o assoalho teve que ser trocado na última restauração. Há relatos de beatos pulando mais de mil vezes para pagar o pedido realizado.

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E até lá, quem diria, os fiéis também "perdem" seus pertences. "Todo dia abandonam óculos, guarda-chuva, chave, blusa. Fica tudo na secretaria da igreja", já vai avisando João Motta, padre há cinco anos na paróquia.

Não há muitos detalhes confirmados sobre a vida de São Longuinho, mas duas características físicas atribuídas a ele fizeram que virasse no Brasil o responsável pela "seção eclesiástica de achados e perdidos".

Primeiro: ele era baixinho, o que facilitaria o rastreamento do que se extraviou. Segundo: ele foi um centurião romano com problemas nos olhos até que o sangue de Jesus recuperou sua visão.

A crença aponta que o soldado espetou uma lança (chamada de longinus em latim) no corpo crucificado de Cristo para verificar sua morte. O sangue espirrado caiu nos olhos de São Longuinho, operando o milagre.

Além disso, conta-se que durante sua canonização parte da documentação sumiu. O papa de então, Silvestre 2º (950-1003), pediu ajuda ao santo, e a papelada foi reencontrada.

Já sobre os três pulinhos, não há consenso entre teólogos, historiadores e folcloristas, mas a suposição é que cada salto é para uma das figuras da Sagrada Trindade (o Pai, o Filho e o Espírito Santo).

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL

A cerca de uma hora de São Paulo, o município de Guararema é uma boa opção de escapada de fim de semana ou de parada para quem está indo ou voltando do litoral norte.

Bem preservado, o centro do município tem parque à beira do esverdeado rio Paraíba do Sul, mirante no alto de morro, restaurantes charmosos e estação ferroviária antiga.

Distante cinco quilômetros do centro, a Freguesia da Escada foi um aldeamento de indígenas que deu início ao povoamento da região há quatro séculos. Lá se construiu a igreja de Nossa Senhora da Escada, hoje conhecida também como "morada de São Longuinho".

No fim de semana, há procissão com cavalgada, shows, almoços com a tradicional galinhada e missas campais na Festa de São Longuinho, que acontece anualmente em meados de março desde 2003.

A organizadora é a devota Cecília Barbosa, sobrinha de Dona Luiza, a zeladora da igreja que descobriu a imagem do santo e começou o culto por lá.

Em 2002, o marido de Cecília sofreu um acidente, e ela fez a promessa a São Longuinho de criar uma festa em seu louvor se o esposo sobrevivesse. Já Dona Luiza esteve presente nas festividades até 2022, quando morreu aos 99 anos.

Antes da pandemia, vinham mais de 70 ônibus de todo o Estado e do sul de Minas. Depois, diminuiu para 30, mas aos poucos vem crescendo de novo"
Padre João Motta

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Na lojinha da igreja, há estatueta por R$ 50, camiseta por R$ 40 e chaveiro por R$ 15 reproduzindo o santo em duas versões, como soldado com lança na mão ou como religioso, segurando uma lanterna.

No armário de ex-votos, se acumulam placas anunciando "a graça alcançada", entre maquetes de casa, carrinhos de brinquedo, fotos de formatura e troféus esportivos, simbolizando a ajudinha celestial.

Esses objetos mostram que São Longuinho não atende só perdidões e esquecidos. As igrejas católica, ortodoxa e armênia o cultuam como mártir milagreiro, perseguido por Roma por ter se convertido ao receber o primeiro milagre após a morte de Jesus.

Suas relíquias foram espalhadas por várias cidades da Europa. Na basílica de Mântua, no norte da Itália, está a Esponja Sagrada, que pela tradição foi embebida com o sangue do messias.

A ilha da Sardenha diz que os restos mortais dele ficaram lá. Já o Vaticano afirma que está em Roma, onde se localiza também uma grande estátua dele feita pelo mestre barroco Gian Lorenzo Bernini dentro da Basílica de São Pedro.

Já a Lança do Destino, o armamento que feriu o tórax de Jesus na cruz, tem exemplares na Áustria, França e Armênia. Tudo é questão de fé.

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"Perdi meu passaporte quando estava numa excursão pela Turquia. Nada no quarto ou na recepção do hotel. Pedi para São Longuinho, e logo achei embaixo de uma mesa no restaurante do café da manhã", conta a paulistana Marilda Guedes, na porta da igreja, e completa:

Por essa e outras, vim dar os pulinhos aqui para agradecer"

O curioso é que, pela tradição, Longinus teria evangelizado e sido martirizado por essa razão na Capadócia (região que atualmente pertence à Turquia), poucos anos após sua deserção do exército de Pilatos.

Os saltos são devidamente dispensados quando o fiel é bem idoso. "Um senhor de 85 anos não levantava do leito, tinha sido desenganado por 15 médicos, mas recuperou a saúde, deixou o hospital e veio direto para cá. Orou, mas, se pulasse, voltava a ser internado", conta João Motta, pároco há cinco anos da igreja.

Todo ano, há mais de uma década, Rose Barbosa sai do bairro do Bom Retiro, centro de São Paulo, e vai até Guararema para fazer pedidos e pagar promessas. Em post-its coloridos, escreve os desejos dela e de amigos e deposita na urna de lá.

Já perdi brinco de ouro na praia e achei. Também entrei em uma cachoeira, os chinelos se foram e depois encontrei o par em cima de uma pedra. Mas o que mais me ajuda é nas perdas emocionais"
Rose Barbosa

Com um bastão na mão e usando um colete refletivo, Everton Camilo entra na igreja de São Longuinho para descansar e rezar durante sua romaria para Aparecida. Saiu há dois dias de Mogi das Cruzes, junto com o filho Noah, de oito anos.

"Vou pedir ao santo para achar meu juízo. É a primeira vez dele na peregrinação, mas está resistindo bem", brinca o pai antes de retomar a caminhada de mais de 100 quilômetros para o santuário — várias rotas espirituais passam por Guararema.

A igreja que virou "morada de São Longuinho" foi construída pelos jesuítas. Depois da expulsão da ordem em 1759 por determinação de Portugal, os monges franciscanos cuidaram do local.

Em 1972, ela foi tombada pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo). O templo estava meio abandonado até que nos últimos anos engrenou a devoção ao santo — e com ela as doações dos fieis.

Guararema se apresenta como um oásis verde na Grande São Paulo, com ruas e edificações muito bem cuidadas — graças também à presença de grandes empresas no município, como a Petrobras e a papeleira Suzano, e os impostos que pagam para a prefeitura.

Guararema talvez seja a única cidade turística do mundo que não deve nunca usar o clichê publicitário "Não perca!". Pelo contrário. Seria algo como: "Perca! E depois venha aqui".

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