Redescoberta do Brasil?

Pandemia e alta do dólar levaram o brasileiro a viajar mais pelo país. Será um amor eterno ou fogo de palha?

Mari Campos Colaboração para Nossa Getty Images/iStockphoto

Se 2020 foi o ano mais duro da história para o setor turístico, 2021 trouxe um sopro de esperança para muitas cidades e propriedades hoteleiras. Diferentes hotéis e pousadas brasileiros bateram recordes históricos de ocupação neste ano. Um levantamento do FOHB (Fórum de Operadores Hoteleiros do Brasil) confirma a tendência e revela, em estudo promovido em parceria com o HotelInvest, que o ritmo de novas aberturas hoteleiras também segue firme e forte no país, com 147 projetos de hotéis em pleno andamento.

Em uma pesquisa recente da ILTM (International Luxury Travel Market), 62% dos agentes e consultores de viagens entrevistados revelaram que seus clientes estão gastando atualmente com turismo muito mais do que gastavam antes da pandemia — e não apenas devido à inflação do setor ou desvalorização da moeda.

As hospedagens hoje estão acontecendo por períodos mais longos, com mais serviços agregados, contribuindo para a subida dos gastos gerais com férias e escapadas. Julho e agosto tiveram recorde histórico de ocupação na hotelaria brasileira e pesquisa da Booking divulgada no começo do semestre mostrava que 80% dos entrevistados brasileiros planejavam pelo menos (mais) uma viagem ainda em 2021.

O movimento de "redescoberta" do Brasil pelos próprios brasileiros foi muito mais intenso que o esperado. Mas a chegada de 2022, a reabertura de fronteiras, a crise econômica e os avanços da vacinação contra a covid-19 deixam no ar um questionamento importante para o setor: essa tendência seguirá aquecida ou o movimento "I love Brasil" pode arrefecer significativamente?

Getty Images/iStockphoto
Jaume Galofre/Unsplash Jaume Galofre/Unsplash

Setor turístico retoma o otimismo

A ocupação recorde em algumas pousadas, lodges e hotéis nacionais nos últimos 12 meses foi influenciada em grande parte porque um percentual significativo de viajantes brasileiros deixou de viajar para o exterior durante a pandemia.

Fatores como limitações fronteiriças, a insegurança trazidas pelas ondas de contaminação e as novas variantes do vírus, e a desvalorização da moeda brasileira favoreceram esse movimento intenso do turismo doméstico no Brasil no último ano. Apesar disso, boa parte do setor redobrou o otimismo com a recuperação, mesmo com as mudanças do cenário internacional previstas para 2022.

"Acho que esse é um movimento consistente, que vai ajudar a consolidar diferentes destinos no imaginário de um grande número de brasileiros", explica Mariana Aldrigui, presidente do Conselho de Turismo da FecomercioSP.

Não vai diminuir o desejo de viagens internacionais. Mas, enquanto o real estiver desvalorizado, um bom número de brasileiros preferirá gastar por aqui. As diferentes exigências sanitárias para ingresso em outros países também seguem sendo um obstáculo que, para muitos, não vale a pena enfrentar agora"

Mariana Aldrigui, presidente do Conselho de Turismo da FecomercioSP

Opiniões divergentes

Mariana Rosa é CEO da operadora Passion Brazil, especializada em destinos brasileiros há muitos anos. A empresa sempre se encarregou de trazer estrangeiros para viajar pelo Brasil. Mas, com a pandemia e as fronteiras fechadas em 2020, se viu obrigada a criar novos braços e produtos, e passou a vender destinos nacionais para clientes brasileiros. Ela também vê com olhos otimistas o atual cenário doméstico.

"Acho que esse movimento de redescoberta é pra valer. Vejo uma diferença imensa de demanda de quando lançamos o destino Brasil para os brasileiros e hoje, mais de um ano depois. Os brasileiros não tinham ideia de vários destinos e hotéis presentes no país", diz a empresária.

Atualmente, mesmo com algumas fronteiras internacionais abertas, muitos continuam escolhendo o Brasil também porque querem conhecer mais do seu próprio país"

Mas, obviamente, o otimismo, ainda que pulsante no setor, não é generalizado. O publicitário Ricardo Freire, fundador do site Viaje na Viagem e um dos maiores conhecedores do turismo no Brasil, é bem menos otimista.

"Eu defendo a tese de que tudo voltará a ser como antes assim que isso for possível. Quem é de fervo vai voltar pro fervo, quem é de viajar prioritariamente para o exterior vai voltar a viajar prioritariamente para o exterior, quem já estava numa pegada mais natural-introspectiva-sustentável vai ficar feliz que vai ter mais lugares disponíveis", define.

Acho que o próximo 'estouro da boiada' das viagens dos brasileiros vai ser mesmo para o exterior, assim que a pandemia estiver efetivamente controlada e abolirem regras sem sentido, como não reconhecerem o meu comprovante de vacina brasileiro para entrar em um restaurante na Europa"

Ricardo Freire, fundador do site Viaje na Viagem

Gettyimages Gettyimages

O poder do "instagramável"

O expert Ricardo Freire vê também com bons olhos essa "redescoberta do Brasil" em 2021. "Essa temporada deve dar bons frutos. Percebi nesse último ano muita curiosidade pelo Brasil e relativamente poucas críticas. Intuo que muita gente viajou pelo país pela primeira vez fora de férias ou feriados", diz.

Freire destaca ainda a importância das redes sociais na criação de desejos de viagens nacionais nos últimos tempos. "A maturação do Instagram, com seus Stories e Reels, gerou uma profusão de imagens bacanas do Brasil, como nunca tivemos antes. Destinos e agências de receptivo locais se empenharam em criar cenários instagramáveis, pontos especiais para selfies etc", diz.

Esse período de foco intenso no Brasil pode ter despertado o desejo de viajar para uma série de lugares no país que não estavam no mapa de desejo de muita gente — então o saldo deve ser positivo, sim"

Mariana Aldrigui concorda com Freire: "Destinos e produtos de turismo estão muito presentes no Instagram. Temos um volume muito grande de pessoas expostas a muitas possibilidades de viagem, e os destinos brasileiros se encaixarão mais facilmente nas possibilidades econômicas de 2022".

Marcio Silveira
Revoada de pássaros do Delta do Parnaíba

Convencido pelas imagens

Alison Meireles, de Goiânia, colocou o Delta do Parnaíba na sua lista de desejos de viagem graças à proliferação de imagens sobre o destino nas redes sociais. "Eu confesso que nunca tinha ouvido falar sobre lá. Tinha planos de conhecer os Lençóis Maranhenses, mas nem sabia que a gente podia estender a viagem para esse lugar. Fiquei tão fascinado com os vídeos e fotos que vi esse ano, as praias, a revoada de pássaros, o sossego, que vai ser justamente para lá minha primeira viagem de 2022, em fevereiro", conta.

"Redescoberta" do Brasil não foi generalizada

Mesmo com todo o movimento das viagens domésticas em 2021, ainda existem muitos lugares no país pouco conhecidos pelos viajantes. Simone Scorsato, CEO da BLTA (Brazilian Luxury Travel Association), lembra que nem todos os destinos e atrações turísticas apareceram com destaque nas redes sociais ou foram promovidos igualmente pelas agências e operadores de viagem.

Os brasileiros redescobriram o Brasil mas ainda não redescobriram todo o Brasil. Existem muitos destinos que ainda não estão em pauta ou dentro do circuito de viagens da maioria"

A mudança de visão e interesse sobre os atrativos nacionais também não refletiu diretamente em um mudança no estilo de viajar para boa parte dos turistas. "Em muitos destinos nacionais, o brasileiro ainda só quer saber de hotel, não liga para visitas e experiências. Ainda são poucos os clientes que realmente buscam experiências de imersão e roteiros mais completos', explica Mariana Rosa, da Passion Brazil.

Raphael Nogueira/Unsplash Raphael Nogueira/Unsplash

Crise econômica deve manter setor doméstico aquecido

Mariana Aldrigui, da FecomércioSP, faz uma ressalva importante: os preços mais altos das viagens também no Brasil atualmente podem inviabilizar o retorno às viagens para parte importante dos brasileiros, mesmo com a vacinação avançando.

Consumidores dos produtos mais caros podem rapidamente deixar o Brasil, ou diminuir o consumo aqui para se reinserirem nos mercados internacionais. Porém, enquanto várias fronteiras estão fechadas, aumenta o volume de consumidores aqui para uma demanda estática, o que eleva os preços e diminui as disponibilidades"

Tanto ela quanto Ricardo Freire acreditam que a semana do Carnaval será um ponto importante para o setor turístico entender se esse movimento das viagens nacionais deve se manter aquecido ou não nos próximos tempos. "O turismo brasileiro vive dos feriados e férias escolares, e com honrosas exceções bate lata o restante do ano. Então tem toda condição — como demonstrou neste último ano — de absorver o público que viajava ao exterior", diz Freire.

Mas acredito que a demanda reprimida pela pandemia vai arrefecer depois do Carnaval. Até lá, quem estava esperando a vacina para viajar já vai ter feito alguma viagem"

Mariana também acredita na diminuição de demanda após o Carnaval, mas não acha que esse efeito será de todo negativo. "Com a diminuição da demanda, possivelmente teremos redução nos preços de parte dos produtos e serviços de viagem. Isso abriria novas possibilidades para mais pessoas viajarem, apesar de todo o impacto da inflação nos preços do turismo e no orçamento doméstico", diz.

Getty Images/iStockphoto

Mudança de planos

A paulistana Carla Foristini estava acostumada a fazer duas viagens anuais para o exterior. Com a pandemia, fronteiras fechadas, novas variantes e a desvalorização do real, tem viajado apenas pelo Brasil desde 2020.

Para 2022, Carla tinha planejado voltar a viajar para fora do país, mas diz que provavelmente adiará a esperada viagem internacional mais uma vez.

"Talvez no segundo semestre seja possível, não sei. Neste momento, com novas variantes tão transmissíveis, dólar a seis reais e euro a sete, mil testes diferentes na conta final, seguro viagem mais caro etc, fica economicamente inviável para mim viajar para fora. Provavelmente investiremos apenas nas viagens nacionais no próximo ano também", conta.

Faltam ainda infraestrutura e políticas públicas para o setor

A maioria dos especialistas entrevistados para esta reportagem se une ao coro dos viajantes: mesmo com o crescimento tão significativo das viagens domésticas e a ampliação de destinos e atrativos, ainda falta infraestrutura em parte significativa dos destinos nacionais.

O aumento do movimento turístico não coincidiu com melhorias infraestruturais nem, muito menos, com a criação de políticas públicas eficientes para ajudar de fato o setor a se recuperar. Mariana Aldrigui, da FecomércioSP, ressalta:

Há casos de hotéis que conseguiram acelerar reformas, atrativos que conseguiram investir em seus ativos. Mas, do ponto de vista dos destinos e cidades, redes de água, esgoto, limpeza urbana, oferta de internet e serviços de mobilidade, não há grandes destaques no período"

Simone Scorsato, da BLTA, destaca que as eventuais melhorias promovidas pela iniciativa privada no turismo não foram seguidas pelo poder público. "Ao longo de 2021, muitos hotéis melhoraram sua qualidade de serviço e atendimento, até para conseguir atender uma demanda maior e mais exigente que passou a viajar mais pelo país. Mas as políticas públicas, que são justamente o que a gente precisa para melhorar a qualidade das viagens domésticas, as estratégias e a infraestrutura básica de turismo e de segurança nos destinos, isso tudo infelizmente não acompanhou as melhorias feitas pelo setor privado", critica.

Temporada: Férias

Série de conteúdos sobre as transformações no turismo e inspirações para a retomada das viagens

iStokphotos

Caminho sem volta

Precisa viajar para fechar negócio? Era Zoom mudou o turismo corporativo

Ler mais
Alonso Reyes/Unsplash

Depois da tormenta

Como está a retomada dos cruzeiros no Brasil após o baque histórico

Ler mais
Getty Images

Guia: de malas prontas

Dicas para uma viagem mais segura em tempos de pandemia

Ler mais
Topo