Ao mestre com carinho

Com 50 anos de balcão, veterano aprendeu a fazer drinques na marra e atendeu até coronel da ditadura

Sergio Crusco Colaboração para Nossa Fernando Moraes/UOL

"Hoje eu tenho um pacote pra entregar", dizia sorrateiramente e com certa frequência o bartender Derivan de Souza aos colegas no fim do expediente no bar. Não se tratava de nenhuma atividade escusa, muamba ou mumunha. O código secreto avisava que determinado cliente, bêbado como gambá, não tinha condições de dirigir de volta para casa.

Derivan colocava o embrulho num táxi, acompanhava-o até o Hotel Jaraguá e colocava-o para dormir. Telefonava para a esposa do desacordado, avisando que estava tudo bem. Não raro ouvia como resposta, do outro lado da linha: "Derivan, você é um anjo".

Entregue o pacote, havia tempo para uma saideira nos bares que ainda estivessem abertos, circuito que não terminava antes das 5 da manhã. Podia dar um pulo na Toca da Angélica, no Boi na Brasa, no Bar das Putas (hoje batizado oficialmente como Sujinho), dançar um samba puladinho no Garitão Danças ou um forró sacudido na Rua das Palmeiras, "onde era preciso se acostumar ao mormaço humano".

Fernando Moraes/UOL
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Vexames secretos

Derivan, sabido do que é bom, também circulava pelos endereços de luxo da São Paulo nos anos 1970 e 80. Bebia um drinque no Pepita de Ouro, bar do Hotel Jaraguá ("era muito chique"), podia ser visto no Fasano, no restaurante do Hotel São Paulo ("um lugar para impressionar seu convidado") ou nos franceses La Tambouille e Freddy.

Um dos pontos certeiros era o Bar do Cesar, na Avenida Nove de Julho, que reunia trabalhadores de bares e restaurantes depois do expediente.

Ali funcionava a rádio peão, as pessoas se encontravam para pedir e oferecer emprego. Montava-se uma brigada inteira, com pessoal de bar, cozinha e salão. Quem não passasse pelo boteco, era porque estava morto. Era também o lugar para fofocar sobre o que havia acontecido na noite: quem apareceu, quem deu pileque, quem deu vexame".

Nem pense em pedir que Derivan conte alguns dos milhares de vexames que presenciou ao longo de quase 50 anos de carreira nos bares de São Paulo. Ele dará um risinho e fará boca de siri. Discreto e elegante, como convém aos melhores profissionais da área de hospitalidade, o bartender prefere falar das próprias aventuras.

Aproveitei bem. Peguei a melhor época de São Paulo, quando era possível andar de madrugada pela rua sem medo de ser assaltado ou morto.

Derivan de Souza

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Escola internacional

Mestre Derivan, como foi nomeado pela comunidade de bartenders do Brasil, começou na profissão por via das circunstâncias. Nascido em Cansanção, Bahia, ensaiava os primeiros passos profissionais em São Paulo.

Aos 17 anos, inscreveu-se no curso de datilografia do Senac e foi redondamente reprovado no primeiro teste que fez, postulando vaga num banco. Por sugestão de colegas, entrou para o curso de garçom, que também o habilitava a trabalhar em bar ou hotelaria.

Depois de um par de anos sendo o moço do cafezinho numa agência de publicidade e numa malharia, em 1974 foi chamado para integrar a equipe do Hotel Hilton, que inaugurava na Avenida Ipiranga. Começou como cumim (o auxiliar do garçom), saiu como supervisor de bar.

Derivan entrou na coquetelaria pela porta da frente, trabalhando numa rede internacional de porte como o Hilton. A simpatia, o sorriso e o charme, dons naturais, foram lapidados pelo contato com "gente que sabia das coisas". "Eu observava o gosto e o comportamento das pessoas cosmopolitas, viajadas, que tinham contato com a coquetelaria que se fazia no mundo."

O Hilton provocou uma revolução no que se entendia por serviço de hotelaria e de coquetelaria no Brasil. A direção trazia manuais de coquetéis de fora. Foi a primeira vez que tive contato com receitas clássicas como Dry Martini, Daiquiri, Manhattan, Old Fashioned.

Derivan de Souza

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Artistas, políticos e coronéis

De todas as lembranças, a mais querida por Derivan é o período de 17 anos em que trabalhou no Bistrô, pequenino pub encravado na galeria do Conjunto Zarvos, Consolação quase esquina com São Luis.

O Bistrô podia reunir, numa só jornada, o compositor Adoniran Barbosa ("ele só bebia suco de tomate"), o cantor Ronnie Von, o artista plástico Aldemir Martins, o político Ulysses Guimarães ("era fã de poire, o destilado de pera francês"), o publicitário Washington Olivetto, o diretor Nilton Travesso e a jornalista Marília Gabriela ou o piloto Wilsinho Fittipaldi.

O lugar abria cedo, ao meio-dia, e eram todos muito bem recebidos por Derivan, que se tornou sócio do bar.

Isenção, jogo de cintura e sangue frio eram bem necessários em alguns momentos de choque ideológico. Trombavam-se no Bistrô Erasmo Dias, coronel linha-dura ligado à ditadura militar, e os arquitetos do jovem Partido dos Trabalhadores, entre eles o jurista Hélido Bicudo e o economista Eduardo Suplicy.

Na virada do século, o bar sucumbiu ao esvaziamento da boemia de classe média no centro da cidade, em direção a bairros mais abastados e considerados mais seguros. "Fechei o bar. Literalmente, apaguei a luz."

O coronel ia lá de propósito, queria saber o que o pessoal do PT fazia e bebia, queria beber igual. Eu sugeria que ele se mantivesse no seu uisquinho costumeiro, porque sabia que, assim, estaria tudo sob controle. Eu morria de medo dele, todo mundo morria, o homem era grosso como uma pedra.

Derivan de Souza

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Bartender torce para todos os times de futebol, apoia todos os partidos políticos e tem fé em todas as religiões

Derivan de Souza

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Chega de saudade

Quem ouve as histórias de Derivan pode pensar, num primeiro momento, que está diante de um ser saudosista, o tipo que vive dizendo "no meu tempo era tudo melhor". Puro engano. Derivan é prafrentex e não se perde em lamúrias. Está conectado com tudo o que acontece no mundo do bar e mantém um intenso intercâmbio com profissionais mais jovens.

"No meu tempo era tudo mais simples, fazer coquetéis era misturar bebidas. Claro, era preciso manter o respeito às receitas. Mas a coquetelaria avançou muito nos últimos anos. Hoje os bartenders preparam seus prórios ingredientes, usam técnicas avançadas vindas da gastronomia e tenho de estar atualizado, porque trabalho com educação."

É um caminho de mão dupla entre Derivan, com anos de barriga no balcão, autor de vários livros, e a geração de bartenders que revolucionou a mixologia brasileira no nascer do milênio. "Sempre aprendo muito com eles, sobretudo com bartenders estudiosos como Spencer Jr., Marcelo Serrano, Felipe Rara, Kennedy Nascimento."

Esses mixologistas superstars estão envolvidos no principal projeto educacional de Derivan, a Academia de Bartenders da Associação Brasileira de Sommeliers de São Paulo.

Meninas e meninos que frequentam seus cursos hoje têm a chance de aprender diretamente com os bambas. "Eu nunca imaginaria, na minha época de iniciante, estar na frente de um bartender como o Spencer Jr., tendo uma aula magnífica sobre gelo. A garotada de hoje, se estiver disposta, tem a chance de pular muitas etapas."

Aprendi na raça, viajando, conhecendo destilarias, vinícolas, cervejarias. Havia pouco material em português e o que estava em língua estrangeira era difícil de acessar. Não existiam internet ou cursos bem estruturados.

Derivan de Souza

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Contador de histórias

Além de receitas e técnicas, clássicas e modernas, o mestre procura passar aos alunos sua filosofia de relacionamento com os clientes, aprendida, às vezes, de maneiras pouco comuns.

Caso do frequentador do Bistrô que, depois de algumas doses, ferrava no sono. Cabia a Derivan entreter a esposa do filho de Morfeu, até que ele acordasse e bebesse um café. Ou do cliente que, com as costas travadas, reclamou, furioso, que não havia massagista no bar.

As pessoas não escolhem um restaurante apenas porque estão com fome e com o bar não é diferente. Mas quem me recebe bem, quem me dá carinho, quem me conta histórias maravilhosas? Essa é a diferença que faz você passar por 10 bares e escolher o seu preferido."

Atualmente tem sido difícil descansar o cotovelo num balcão com Derivan, que trasmitiu seu legado aos filhos Douglas e Danty, também bartenders. Elétrico, está cada hora num canto e mentora múltiplos projetos. Faz consultorias e cria cartas para bares e restaurantes, atende o mercado corporativo em eventos, trabalha num novo livro e roda o país com o Concurso Rabo de Galo, que teve sua primeira edição nacional em 2022, com eliminatórias em vários estados.

Devoto da cachaça, sonha em ver a receita do Rabo de Galo, mistura de caninha e vermute, normatizada no guia de coquetéis da Associação Internacional de Bartenders. A Caipirinha já está nessa relação, que reúne os principais preparos clássicos do planeta.

Hoje, muitos bares depois, Derivan não entrega mais pacotes, mas segue sendo um privilégio ser atendido por ele, se a sorte assim permitir. "Sou um homem do balcão, aprendi a ouvir e a contar histórias. Foi isso que entreguei ao longo dos anos."

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