Reinvenção à mesa

Como o coronavírus vai transformar nossa relação com a comida

Rafael Tonon Colaboração para Nossa Vicuschka/Getty Images

Com os restaurantes fechados e com a imposição do distanciamento social nos mantendo em casa a maior parte do tempo, a forma como nos alimentamos se transformou significativamente durante a pandemia do novo coronavírus.

Pessoas pouco familiarizadas com as panelas se viram obrigadas a pôr a mão na massa, enquanto aqueles que têm como programa favorito comer fora tiveram que se contentar, no máximo, com os pedidos de delivery dos seus lugares preferidos.

Se por um lado a quarentena mostrou um novo caminho para a culinária doméstica, por outro coloca em alerta todo um setor de alimentação fora do lar, fazendo os negócios buscarem saídas para não ter que fechar as portas.

Mas a pandemia não está apenas alterando como comemos agora, durante os dias de confinamento. Especialistas do setor, cozinheiros e até mesmo futuristas preveem mudanças significativas na nossa alimentação que podem ser uma consequência em definitiva dessas semanas com as pessoas isoladas.

Nossa selecionou quatro mudanças mais significativas que devem afetar nossa forma de comer — fora ou em casa — daqui para frente.

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Restaurantes como conceito

Mais do que lugares onde é possível comer, os restaurantes se tornaram nos últimos tempos espaços de experiência.

Como palcos da nova revolução gastronômica, ganharam mais atenção até mesmo do que programações culturais em grandes cidades — as pessoas falam mais dos lugares em que jantaram em Nova York do que das idas ao MoMa ou à Broadway. Sinal do nosso status da comida na nossa sociedade.

Mas mesmo antes da pandemia, os restaurantes passaram por algumas mudanças até mesmo conceituais. "A alta gastronomia já demonstrava não ser sustentável para muitos chefs e grupos, que começaram a investir em restaurantes mais casuais", afirma o consultor de restaurantes Nidal Barake, que vive nos EUA.

Por outro lado, chefs buscaram levar mais entretenimento à sala de jantar, criar relações mais próximas com produtores locais, reinventar sua atuação. Com as regras de distanciamento social, essa reinvenção ganhou novo sentido.

Na sociedade pós-coronavírus, há um universo de possibilidades para os restaurantes se reinventarem, e principalmente buscarem maneiras de resgatar com o cliente uma relação primária de confiança, de prazer.

"Cada vez mais, vamos enxergar esses estabelecimentos não apenas como lugares em si, mas como marcas com as quais podemos criar elos para nossa alimentação, inclusive dentro de casa", ele diz.

Cada vez mais, vamos enxergar esses estabelecimentos não apenas como lugares em si, mas como marcas com as quais podemos criar elos para nossa alimentação, inclusive dentro de casa"

Nidal Barake, consultor de restaurantes

Na impossibilidade de receber todos os clientes (por limitação de espaço, por desconfiança, etc), os restaurantes vão se reinventar como conceitos.

Isso significa transformar a forma como entregam comida, claro, em propostas mais arrojadas e inventivas de delivery, mas sobretudo a maneira que se relacionam com seus clientes.

Entrar na casa deles pode ter um sentido mais pessoal e afetivo do que um simplesmente um prato de comida, como no caso de produzir alimentos que possam ser usados e consumidos para cozinhar — e não necessariamente entregues prontos para comer.

Isso significa que os restaurantes podem ter um grande papel como "intermediadores de ingredientes e produtores, como curadores de ideias e filosofias, mais do que 'apenas' lugares físicos", como defende o chef americano Dan Barber, do Blue Hill at Stone Barns.

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Crise de confiança e o fim do self service

À medida que os restaurantes voltem a funcionar, seguindo restritas medidas de distanciamento social, como mesas muito espaçadas, atendentes de máscaras e diminuição considerável da capacidade de atendimento (como já tem sido visto na Ásia e na Europa), eles ainda terão uma tarefa ainda mais difícil pela frente: convencer os clientes que são lugares confiáveis e seguros.

Questões como higiene e segurança de alimentos passarão a ser ainda mais importantes, o que levará muitos negócios a apostar em novas formas de comunicação para comprovar que seguem as novas normas.

Os clientes serão muito mais exigentes e estarão ainda mais atentos à limpeza. Pode ser o fim dos bares pés-sujos"

Cristiana Beltrão , empresária da restauração, dona do Bazzar, no Rio de Janeiro.

Cozinhas transparentes, serviços de desinfecção aos olhos dos clientes, cardápios descartáveis ou em material que possa ser limpo prevalecerão, mesmo depois da pandemia. As refeições para compartilhar também podem estar com os dias contados, assim como os restaurantes que operam como buffet, como é o caso dos nossos populares self-service.

"Acho que haverá muito mais refeições no quarto [no caso dos hotéis]. As pessoas vão evitar comer no restaurante onde tenha muita gente", disse Michael Johnson, CEO da Tourism Accommodation Australia, ao jornal Sunday Telegraph. Ou seja, vai demorar para aproveitar o café da manhã de hotel sem neuroses.

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Comer mais (e melhor!) em casa

Ainda que não haja estudos conclusivos sobre a alimentação nesse período, alguns dados indicam que, com mais tempo em casa, temos comido mais, mas de forma melhor e mais saudável nesses dias.

Uma pesquisa da Nielsen Brasil aponta que a frequência de compras nos mercados caiu cerca de 6,5%, mas o número de itens nos carrinhos cresceu 22%, muitos deles relacionados a produtos básicos na nossa alimentação, como arroz, feijão, massa e farinha. O que indica que as pessoas estão cozinhando muito mais.

Em uma live no Instagram na semana passada, a apresentadora Rita Lobo afirmou que cozinhar é a coisa mais importante que podemos fazer pela nossa alimentação.

"Quiseram nos fazer acreditar que era perda de tempo, que não é prático preparar sua própria comida. Temos visto que é exatamente o oposto. Recebi muitas mensagens de pessoas que se descobriram na cozinha durante a quarentena", diz.

No estudo "Você tem fome de quê?", que tenta mapear o comportamento das pessoas na cozinha durante a pandemia, a Liga Pesquisa e o Estúdio DDM tentam perceber quais gatilhos relativos ao ato de comer em casa foram acionados nos últimos dias.

AInda que os resultados só sejam divulgados nas próximas semanas, as enquetes e entrevistas que fizeram com quase 200 pessoas mostram que a "a alimentação em si é reveladora não só de como as pessoas estão se organizando neste momento, mas como passaram a se relacionar entre si e como pensam o futuro".

"Cozinhar foi uma das principais formas que as pessoas encontraram de se sentirem produtivas neste período de confinamento, e muitas passaram bastante tempo cozinhando. Não temos dúvida de que isso vai transformar essa relação com o alimento com efeitos mais abrangentes do que a pandemia", afirma Cláudio Queiroz, da Liga Pesquisa.

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Almoço na hora do jantar

Na era da economia criativa, o horário estipulado para as refeições já tinha deixado de fazer tanto sentido. Por que todo mundo precisa almoçar entre o meio dia e às duas horas? Ou jantar depois das sete da noite?

Com horários mais flexíveis nas empresas e mais profissionais autônomos no mercado, os restaurantes all day já começavam a perceber a tendência, ficando abertos o máximo possível, e servindo menus democráticos a qualquer hora do dia. "Brunch o dia todo" é o slogan do BotaniKafé, em São Paulo, um dos restaurantes all day que surgiram na cidade.

Com o confinamento, as pessoas começaram a reparar as necessidades físicas dos seus corpos, e se atentarem a matar a fome quando ela aparece — não só nas horas estipuladas. Isso tende a criar uma nova relação com os horários de refeições. E o que comemos em cada uma delas.

A cozinheira e escritora Carolyn Robb, ex-chef pessoal da Princesa Diana, escreveu, em um artigo para o Washington Post, que a pandemia do coronavírus a deixou tão desarranjada que muitas vezes ela não tem ideia em que dia da semana está.

Depois da primeira semana em que fiquei em casa, parei de contar os dias. O bom é que podemos também adotar esse estilo de vida de pernas para o ar em uma das inversões mais agradáveis"

Carolyn Robb, cozinheira e escritora, ex-chef pessoal da Princesa Diana

Ela indica uma série de receitas consideradas "matinais" que podem ser muito bem apreciadas no jantar — ou no almoço, por que não? — entre frittatas, waffles (com cheddar), burritos e panquecas, que podem ficar melhor com salsichas e molhos mais picantes.

"Descobrimos, mais do que nunca, que o tempo é uma construção", diz ela, sobre os dias de confinamento. Assim como a própria divisão das nossas refeições em café da manhã, almoço e jantar. "Almoçar" de manhã, ou "jantar" na hora do almoço, afinal, não tem mal nenhum.

Mercado em transformação

O isolamento social exigiu ações imediatas a novos (e inesperados) cenários

Rubens Kato

Delivery de experiências

Para tentar seguir funcionando, muitas casas alteraram seus modelos de negócio ou colocaram ainda mais energia no sistema de delivery. Na busca de aplacar o desejo das pessoas que sentem falta de comer fora, restaurantes investiram em formas de entregar uma experiência gastronômica em casa (e não só comida).

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Louis Hansel/Unsplash

Formas criativas de servir

Restaurantes apelam para a criatividade diante da crise do novo coronavírus. Menus adaptados para os delivery, kits de drinques, ponte direta com os pequenos produtores de alimentos e, inclusive, o envolvimento em projetos sociais para auxiliar a comunidade e fornecedores são ações durante a pandemia.

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Getty Images/iStockphotos

Visão social

Bares e restaurantes se uniram em iniciativas para ajudar os profissionais da chamada "linha de frente" ? como médicos, entregadores e caixas de supermercados ?, e pessoas que perderam seu emprego. Ações que mostram que a covid-19, apesar de tudo, criou uma atmosfera humanitária.

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Otimismo e apreensão

No UOL Debate, chefs analisaram o futuro dos restaurantes pós-pandemia

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