Topo

Há 74 anos, família fugiu da guerra e trouxe perfumada culinária síria a SP

Gisele e sua mãe Mouna, que, há 74 anos, chegou ao Brasil fugindo da guerra e trouxe a culinária síria na mala Imagem: Keiny Andrade/UOL

Flavia G Pinho

Colaboração para Nossa

24/06/2022 04h00

Em 1948, quando a família de Mouna Aris Gaspar, 77 anos, chegou a São Paulo, a colônia sírio-libanesa já era numerosa. As primeiras levas de imigrantes começaram a desembarcar por aqui na década de 1870, mas as estatísticas dessa época são bem imprecisas.

Segundo o livro "Patrícios - Sírios e Libaneses em São Paulo", de Oswaldo Mário Serra Truzzi (Unesp), muitos deles foram registrados simplesmente como turcos, turcos-árabes ou turcos-asiáticos, gerando uma confusão de nacionalidades que resiste até hoje.

Quase sempre, cruzavam o planeta para fugir de conflitos — e foi também por essa razão que os Aris abandonaram a cidade síria de Alepo. Alistados para lutar na Primeira Guerra Árabe-Israelense, que estourou em 1948 e colocou em campos opostos os países da Liga Árabe e o recém-criado Estado de Israel, o pai e o tio de Mouna preferiram desertar, deixar o país natal para trás e colocar mulheres e filhos em segurança.

Os Aris na vinda ao Brasil Imagem: Keiny Andrade/UOL

Aos 3 anos, a pequena Mouna mal entendia o que se passava e ainda se divertiu com a aventura — parte da família achava que o destino seria os Estados Unidos, porque só se falava em América. Embarcados no porão de um navio, onde viajavam os imigrantes sem recursos para adquirir camarotes, seus parentes protagonizavam cenas que parecem ter saído do filme "Titanic" — essas, porém, tiveram final feliz.

Meu pai, George, tocava violão, meu irmão de 6 anos tocava uma espécie de pandeiro e eu dançava. A gente subia para a ala chique do navio, se apresentava e ainda ganhava um dinheirinho", ela conta.

O trajeto demorou muito mais do que o esperado, porque a família foi separada em algum porto no meio do caminho, à espera da legalização dos documentos. "Ficamos três meses lá, e ainda mantiveram meu pai trancado no navio, até que tudo fosse resolvido."

Em Santos, o alívio: a tia-avó de Mouna estava à espera no porto e os Aris foram acolhidos pelos parentes que já viviam em São Paulo, uma etapa importante para a família que, com três crianças para cuidar, não falava uma palavra de português.

Culinária árabe e um desjejum curioso

Instalaram-se no bairro da Penha, onde o clã mantinha um pequeno empório, e ali o pai de Mouna, que na Síria era guarda civil e pintor de imagens de santos, começou a trabalhar. Cinco anos depois, já com um certo domínio do idioma, mudaram-se para o bairro do Brás, onde George abriu o próprio armazém de secos e molhados.

As prateleiras eram abastecidas com itens corriqueiros da cozinha brasileira, mas a casa da família era uma espécie de enclave sírio em plena Zona Leste paulistana.

Minha mãe, Ratiba, cozinhava todo dia e tinha muito ciúme de sua cozinha. Eu só podia ficar no canto, observando. A maior parte do cardápio do dia a dia era árabe, receitas simples e nutritivas que ela fazia questão de preparar, porque nossa situação financeira não era muito boa."

Gisele Gaspar e sua mãe Mouna Aris Gaspar Imagem: Keiny Andrade/UOL

Um dos pratos mais frequentes à mesa era uma carne refogada com trigo grosso no molho. Arroz com lentilhas e berinjela refogada também eram presenças assíduas na hora do almoço, sempre com salada para acompanhar. "Mas também aparecia arroz, feijão e macarrão de forno", ela emenda.

O café da manhã era uma refeição das mais reforçadas, com itens que causam até um certo estranhamento ao brasileiro. Mouna conta que a família adorava combinar queijo branco com azeitonas pretas e favas cozidas temperadas com zátar. "Confesso que amo começar o dia com azeitonas e zátar até hoje. Diminuí a frequência por causa da saúde, mas ainda adoro."

Outro desjejum curioso era a berinjela com tomate, cebola, pimenta síria e azeite, assada no bafo — ainda hoje, o quitute habita a geladeira de Mouna e, volta e meia, entra em cena de manhã, sobre fatias de pão.

Receita que une

Entre tantas receitas que trazem memórias saborosas daquele tempo, uma tem lugar especial: as esfihas. Redondinhas, modeladas no formato aberto e recheadas de carne moída, eram carregadas na pimenta e nos condimentos "como árabe gosta", nas palavras de Mouna.

As esfihas de Mouna Aris Gaspar Imagem: Keiny Andrade/UOL

Mas essa lembrança não se mantém viva só pelo sabor dos salgados em si, mas principalmente pelos gostosos momentos de confraternização envolvidos no ritual do preparo.

A esfiha sempre juntou todo mundo nos dias de encontro de família e uniu várias gerações", ela explica.

Gisele e Mouna na cozinha Imagem: Keiny Andrade/UOL

Ao longo dos anos, Mouna foi aprimorando a receita que aprendeu com a mãe — trocou alguns ingredientes, reduziu o teor de gordura da carne moída e deixou a massa mais leve, com cuidado para não descaracterizar o sabor original.

"Minha esfiha leva tomate, cheiro verde, cebola, hortelã, azeite, limão e alcatra ou patinho bem limpo, sem gordura. O recheio fica úmido e adere bem à massa."

Mouna e o marido Imagem: Arquivo pessoal

Proibida na cozinha profissional

Casada com um primo, José Gaspar, filho daquela família que a recebeu no porto de Santos, teve chance de comandar a própria cozinha — e mandava tão bem que ficou famosa entre os amigos.

Foi nesse ambiente perfumado de temperos árabes que cresceu sua filha, Gisele, hoje com 48 anos. "Na adolescência, adorava ajudar minha mãe na cozinha e, durante as férias, fazia questão de preparar as refeições da família", ela conta.

Mãe e filha se divertem fazendo esfihas de carne, herança de família Imagem: Keiny Andrade/UOL

Elogios vinham de toda parte — quem frequentava aquela casa facilmente notava que o talento culinário de Mouna era fora do comum. Sugestões para que abrisse um negócio não faltavam, mas a conversa sempre esbarrava em um poderoso obstáculo.

Meu marido nunca me permitiu cozinhar profissionalmente. Dizia que eu não deveria acreditar nos elogios, porque quem come de graça sempre gosta da comida. Não era delicado, me deixava frustrada", ela confessa, hoje achando uma certa graça.

O único jeito de driblar a proibição era, eventualmente, preparar banquetes árabes por encomenda, a pedido de amigas. Mas não passava disso.

Uma nova chance para mãe e filha

Gisele Gaspar e sua mãe Mouna Aris Gaspar, num verdadeiro banquete sírio Imagem: Keiny Andrade/UOL

A pandemia, veja só, foi a responsável por mudar o rumo dessa história — e com um capítulo triste no meio. Em 2020, Mouna ficou viúva. No mesmo ano, em função da quarentena, Gisele deixou de trabalhar como consultora de estilo — e foi dela a ideia de aproveitar a ocasião para resgatar a ligação com a cozinha da mãe.

"No meio daquela tristeza da pandemia, um dia a Gisele me ligou e disse que queria reaprender a fazer esfiha", conta a mãe. A filha emenda:

Me casei cedo, aos 20 anos, e fui trabalhar com meu pai em sua loja multimarcas. Acabei me desligando do fogão e quis aproveitar a pandemia para reaprender. Minha mãe é um avião para ensinar a cozinhar".

Da parceria improvisada nasceu um novo negócio: o delivery Muna Culinária Árabe, fruto de sociedade entre Mouna e Gisele. A cozinha profissional funciona na edícula da casa, no bairro do Alto da Boa Vista, Zona Sul de São Paulo, e cresceu um bocado — a dupla comanda uma equipe de sete pessoas, com direito a motorista dedicado às entregas em domicílio. Após tantos anos esperando por esse grito de liberdade, Mouna não dá bola para a idade e encara o batente com um sorriso que ilumina o ambiente.

"Desde o primeiro dia, trabalhamos incansavelmente cozinhando e entregando. Não damos conta dos pedidos", Gisele comemora.

Pratos sírios produzidos por Gisele Gaspar e sua mãe Mouna Aris Gaspar Imagem: Keiny Andrade/UOL

Todos os clássicos da cozinha árabe fazem parte do cardápio, do hommus aos charutos, dos quibes às caftas, do tabule ao falafel.

Tem também umas invenções abrasileiradas de Mouna, como as esfihas de alcachofra e de goiabada com queijo. Mas adivinha qual é o best-seller da marca? Ela mesma — quando a clientela prova a famosa esfiha de carne da família Aris, não tem para mais ninguém.

Receita de
esfiha aberta de carne

Rendimento: 70 unidades

Ingredientes

Massa

  • 2 ovos
  • 1/3 de xícara de óleo
  • 30 g de fermento biológico fresco
  • 2 colheres (sopa) de açúcar
  • 2 xícaras de água morna
  • sal a gosto
  • 1 kg de farinha de trigo

Recheio

  • 5 tomates picados, com pele e sem sementes
  • 2 cebolas picadas
  • 1 kg de patinho bem limpo, moído (ou alcatra)
  • 50 ml de limão
  • 150 ml de azeite
  • salsinha fresca picada a gosto
  • hortelã fresca picada a gosto
  • sal a gosto

Modo de fazer

Massa

Em uma tigela, bata os ovos com o óleo. À parte, misture o fermento com o açúcar e incorpore aos ovos, até obter uma pasta homogênea. Adicione a água morna e misture bem.

Em outra tigela grande, incorpore o sal à farinha de trigo e vá juntando aos poucos a pasta de ovos, misturando bem com as mãos até que a massa desgrude dos dedos. Deixe fermentar por até 2 horas em temperatura ambiente.

Recheio

Misture todos os ingredientes com as mãos e reserve.

Montagem

Abra a massa com o rolo, em espessura não muito fina, e corte em círculos com ajuda de um aro ou a boca de um copo. Deixe que descansem e fermentem por mais 15 minutos.

Disponha os discos em assadeiras untadas com óleo e distribua o recheio, deixando uma pequena borda nos círculos. Levante as bordas para finalizar e asse em forno preaquecido a 220ºC, por cerca de 15 minutos, até que estejam douradas.

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Há 74 anos, família fugiu da guerra e trouxe perfumada culinária síria a SP - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade