Grande irmão

Durinho sobe ao octógono para buscar o cinturão em nome de Fred, que, pelo irmão mais novo, desistiu de lutar

Brunno Carvalho Do UOL, em São Paulo

Gilbert Burns aprendeu desde cedo que a falta de um carro no quintal de casa significava problema. Não era uma questão de status, mas de trabalho. Um veículo estacionado na residência dos Burns, na periferia de Niterói (RJ), era uma encomenda para o pai, estofador. Quando eles sumiam, sextas-feiras viravam dramas.

A família não se acalmava enquanto o relógio não marcasse 18h. Era o toque do gongo: se nenhum dos funcionários das concessionárias públicas aparecesse, o fim de semana teria luz e água. Mas nem sempre torcer resolvia.

Meu irmão, dava 17h30, 17h40, e o filho da mãe do cara parava lá e 'pá': cortava a luz".

Filho do meio, Gilbert tem dois irmãos: Fred, dois anos mais velho, e Herbert, dois anos mais novo. O trio conheceu cedo as responsabilidades domésticas. Ajudavam o pai a estofar assentos, a arrumar pneus, a lavar carros. No tempo livre, passaram a praticar artes marciais. A luta virou paixão e o sonho era transformá-la em profissão. Mas só dois conseguiram isso.

Na virada do século, abrir mão de três pessoas colocando dinheiro em casa era um luxo que a família Burns não podia ter. E Fred começou a trabalhar. Tentou conciliar o sonho com o dever, mas a pindaíba venceu por estrangulamento.

Quando Gilbert, que agora é Durinho, subir ao octógono hoje (13) para tentar tirar o cinturão dos meio-médios do UFC de Kamaru Usman, será em Fred que estará pensando. "Ele foi o cara que não me deixava desistir e falava que dias melhores viriam. E os dias estão chegando".

Água cortada ofende sua dignidade. Não é um problema só financeiro, é um problema moral"

Herbert Mitchell, pai de Gilbert Durinho



A decisão

A falta de dinheiro colocou Fred com as costas na grade ali por 2003. Ele disputou o Mundial de jiu-jitsu pela última vez e largou. Foi trabalhar como segurança de shopping e depois como vendedor de eletrodomésticos. Por indicação de amigos, decidiu tentar entrar para a Marinha.

Passou na prova e hoje atua como mergulhador de combate. Uma missão em alto mar o deixou incomunicável por alguns dias. "Eu já estava nervoso, porque a luta está chegando. A gente fica naquela pressão pré-luta, a mil".

Fred encara a saída das lutas como um sacrifício necessário. Foi trabalhar para que os irmãos pudessem seguir. Com ele fora, Durinho assumiu o posto de irmão mais velho. Era sua responsabilidade ser o mentor de Herbert, que seguia com ele no jiu-jítsu. Vendo o sacrifício do irmão, traçou uma meta para não passar pelo que ele passou.

"Foi nessa época que entendi que tinha que levar a luta a sério. Sabia o quanto meu irmão queria fazer aquilo e quão bom ele era. Transformei aquela pressão em algo positivo. Do tipo: 'putz, se meu irmão estivesse aqui, ele ia fazer essa parada bem pra caramba. Eu, que tenho a oportunidade de fazer, tenho que fazer meu melhor'. Era uma coisa que eu tinha que dar de volta para o meu irmão, sabe?".

Durinho conseguiu chegar aos 18 anos com um patrocinador. A grana não era muita, mas suficiente para que não precisasse abandonar o jiu-jítsu. "Eu não tinha dinheiro, mas, putz, pagava minha faculdade, minha moto, minhas competições". O patrocinador ainda dava cestas básicas que tornavam a vida da família menos dura.

Fazer dar certo

Alcançar o topo de qualquer esporte de alto nível é uma missão quase impossível. Durinho sentiu que seria ainda mais se continuasse conciliando os treinos com o curso de Educação Física. Decidiu deixar a faculdade em 2007 e se mudar para o interior de São Paulo. Abriu mão, também, do patrocinador que ajudava a segurar as pontas em casa.

"Eu tinha acabado de perder o campeonato por um ponto para o atual campeão brasileiro. No dia seguinte, fui pra aula e tive o segundo pique: 'Meu irmão, o que eu estou fazendo nessa aula? Não quero essa parada. Quero ser campeão de jiu-jítsu'".

Em Rio Claro (SP), fazia bico de segurança para conseguir arcar com o aluguel de R$ 180 que dividia com outras quatro pessoas. Nem sempre o dinheiro dava. Por vezes, Durinho pagava sua parte fazendo o serviço doméstico dos colegas: limpava banheiro, lavava louça...

A vontade de desistir veio acompanhada de uma crise de bronquite. Se Durinho não tinha dinheiro para o aluguel, também não tinha para o remédio. Conseguiu um cartão telefônico e, no fim daquela tarde, criou coragem para ligar para a mãe Tânia. Assim que disse "alô", se sentiu nocauteado. "Liguei pra pedir dinheiro e minha mãe pediu antes. Falei: 'pode deixar que vou arrumar'".

A ligação o fez relembrar dos perrengues da infância. Certa vez, o fubá foi a única coisa no armário por uma semana. "Minha mãe colocava um salzinho no almoço e um pouquinho de açúcar e canela na hora do lanche pra dar uma diferença". Ali, com o telefone na mão, Durinho teve que decidir: seguia em frente sem dinheiro ou voltava para Niterói.

Eu queria desistir, mas quando liguei pra ela, meu irmão, sabia que ia ter que fazer dar certo".

Gilbert Burns, o Durinho

Estabilidade no MMA

Durinho já morava longe, mas Fred continuava sendo seu tutor. Era ele quem atendia suas ligações e não o deixava desistir. Em 2011, comemoraram juntos a consagração no jiu-jítsu. O irmão finalmente conquistava o campeonato mundial. Foi a última etapa antes do MMA.

A transição entre as modalidades foi no ano seguinte. Apadrinhado por Vitor Belfort, passou a morar nos Estados Unidos e recebeu o convite para ser seu treinador de jiu-jítsu no reality show TUF Brasil, que passava na Globo. Chegou ao UFC dois anos mais tarde.

A entrada na maior organização de MMA estabilizou as coisas em casa. Além do que Durinho recebia, a renda era completada com o que vinha do caçula Herbert. Naquela época, ele morava em Singapura e lutava no One FC, maior evento de MMA da Ásia.

As sextas-feiras deixaram de ser um pesadelo e o fubá virou apenas mais uma opção no cardápio. E não faltava luz nem água. "Eles sempre ajudaram a gente", relembra o pai Herbert Mitchell. "Pra você ter uma ideia, toda roupa que tenho na gaveta foram eles que botaram aqui dentro. Até televisão eles que trazem. É uma experiência de satisfação muito grande".

Espírito de guerreiro

Fred e Herbert tentavam controlar o nervosismo sentados próximos ao octógono instalado no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, em março de 2015. No ringue, Gilbert sofria contra o estreante Alex Cowboy. Cada golpe que entrava deixava a terceira vitória no UFC mais distante. Foram dois rounds de sofrimento. O olho de Durinho nem abria mais antes de o último começar. "O Fred olhava aquilo tenso, tenso, quase chorando", relembra Herbert.

A orientação da equipe era clara: ou dá um jeito de levar a luta para o chão ou já era. Durinho se agarrou em Cowboy assim que o terceiro round começou e conseguiu a queda. Foram mais quatro minutos de tentativas até que uma chave de braço entrou. Três tapinhas e já era. Vitória por finalização e delírio dos irmãos. "Naquele momento, o Fred sentiu que o espírito de guerreiro que ele passou pra gente continuava em nós", explica Herbert.

O "espírito de guerreiro" está na origem dos apelidos da família. Fred era o "Todo Duro" na época do jiu-jítsu porque não desistia. Gilbert era mais novo, então virou "Durinho".

É um orgulho enorme saber que eu faço parte dessa história também".



Sonho americano

Gilbert Durinho traça planos para o pós-luta contra Kamaru Usman. Quer fazer dos Estados Unidos a segunda casa da família. A ideia é comprar um imóvel para que os pais fiquem mais próximos dele e de Herbert. Se dependesse deles, a mudança seria de uma vez.

"Ainda tenho uns projetos no Brasil. Estou terminando minha faculdade, faço parte da pastoral da igreja. É muito cedo pra ir", descarta o pai, Herbert Mitchell.

Com um filho marinheiro e os outros dois lutadores, Herbert Mitchell e Tania voltaram a estudar. "Antes, eu vendia o almoço pra comprar a janta. Agora, os três estão encaminhados", diz ele. O pai foi fazer direito, a mãe optou pela enfermagem.

Ciente de que convencer os pais universitários vai ser mais difícil do que conquistar o cinturão, Durinho tem um plano B: comprar uma casa no Brasil também. Desse jeito, os pais podem terminar a faculdade e visitá-los com mais frequência até aceitarem a mudança.

Se os planos derem certo, a luta voltará a unir os irmãos. Fred tenta convencer a esposa a embarcar na aventura norte-americana. Ele já dá aulas de jiu-jítsu no quartel onde trabalha. Sua ideia é viver disso ao lado de Gilbert e Herbert na Flórida. "É o único estado do Brasil em que as coisas funcionam", defende o caçula.

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