Cachorro louco, mas sensível

Wanderlei Silva fala de sexo no tatame, astrologia e arrependimento por briga com Dana White

Adriano Wilkson e Ana Flávia Oliveira Do UOL, em São Paulo Jon Mark Nolan/Getty Images

Quando o curitibano Wanderlei Silva subiu no ringue, montado no Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo, em novembro de 1996, para sua primeira luta de vale-tudo, começou a escrever uma história de nocautes, combates ferozes e muitas polêmicas. Então com 20 anos, ele viria a se tornar um dos grandes lutadores de MMA, esporte que dava seus primeiros passos nos anos 90.

Vinte e quatro anos e 51 lutas depois, Wanderlei Silva parece um homem diferente daquele que já foi apelidado de "Cachorro Louco" e que costumava chutar a cabeça de adversários caídos. Em entrevista ao UOL Esporte, o atleta (que ainda não se decidiu sobre sua aposentadoria definitiva) mostrou um lado menos conhecido. Falou sobre sua personalidade emotiva, sobre seu interesse por astrologia e sobre sua iniciação sexual no tatame da academia.

Também mostrou arrependimento pela briga pública que teve com o presidente do UFC, Dana White, depois ter fugido de um exame antidoping nos Estados Unidos. "Ganhamos muito dinheiro juntos e ele sempre me tratou com profissionalismo", reconhece.

Ele acaba de lançar sua autobiografia, "Wanderlei Silva Sem Coleira", escrita em parceria com os jornalistas Thiago Parijani e Luis Henrique Gurian. A seguir, contamos algumas histórias curiosas do livro e os melhores momentos de sua entrevista, que também pode ser vista em vídeo.

Jon Mark Nolan/Getty Images

Assista à entrevista com Wanderlei Silva

Virgindade perdida na academia: "Um fiasco"

As artes marciais entraram na vida de Wanderlei Silva por um motivo inusitado: melhorar a aparência para fazer sucesso com as mulheres. "Com as mulheres, não. Com alguma mulher", corrige Wanderlei.

Wanderlei chegou, aos 13 anos, na Chute Boxe, de onde saíram também lutadores como Maurício Shogun Rua, Anderson Silva e Cris Cyborg. Lá, ele aprendeu o boxe tailandês e o jiu-jitsu. E sobre aquele tatame também viveu outro momento marcante: a primeira experiência sexual. "Eu comecei a namorar uma menina que era da escola. Eu não tinha carro, não tinha dinheiro. A única coisa que eu tinha era a chave da academia. A gente conseguiu ir para lá e acabou acontecendo lá mesmo, mas não foi tudo aquilo", relembra o lutador. No livro, ele define a experiência como um "fiasco".

Nessa época, Wanderlei trabalhava na mercearia da família, dava aulas na academia e fez uma prova para entrar no Exército. "Eu fiz o concurso para polícia, mas o meu Q.I. não me deixou fazer parte da corporação. Eu acabei indo para o Exército. Eu não queria, mas acabei sendo selecionado. Não sei se eu era muito burro ou os caras eram muito inteligentes, mas devido a minha qualidade de estudo, eu fiquei meio que nas últimas colocações."

Eu queria arrumar uma namorada. Meu irmão começou a fazer musculação e começou a ficar fortão. E eu era gordinho. A lata, a gente não pode mudar muito, mas o corpo dá para dar uma melhorada

Wanderlei Silva,, sobre por que começou a lutar

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

O lado chorão e emotivo do "Cachorro Louco"

Boa parte da idolatria que os fãs nutrem por Wanderlei vem de seu estilo agressivo, violento, que chamou atenção desde suas primeiras aparições. Esse é um lutador que fez seu nome como campeão do Pride, o torneio japonês que permitia golpes como o "tiro de meta": no qual um atleta chuta a cabeça do adversário caído no chão.

Mais tarde, esse tipo de violência foi proibido com o banho de civilidade que o MMA tomou para se tornar mais palatável ao público geral. O estilo agressivo de Wanderlei, porém, permaneceu inalterado sob as novas regras. Fora dos ringues, dos octógonos e longe das câmeras, ele afirma ser uma pessoa emotiva e sensível. Chorou copiosamente ao rever pelo celular a primeira luta do filho Thor, de 17 anos, no boxe amador, em agosto deste ano.

"É uma junção estranha porque eu sou muito violento, isso todo mundo vê, mas tenho um lado sentimental. Tem pessoas que gostam de coisas, e tem pessoas que gostam de pessoas. Eu sou uma pessoa que gosta de pessoas. Gosto de fazer bem, gosto de motivar, gosto de ver todos alegres e bem ao meu redor."

Quando você escreve sua biografia, é como quando você faz terapia, que você começa a contar e vai se conhecendo, vai vendo as suas reações em determinadas situações, as besteiras que você fez e o que você faria diferente

Wanderlei Silva

Ethan Miller/Getty Images

Canceriano, quer um astrólogo que só dá boa notícia

"Regidos pela Lua, os cancerianos são mais emotivos, já que carregam como elemento de seu signo a água. É natural, então, que sejam pessoas mais sensíveis, já que há toda uma conjuntura celeste influenciando para isso." Assim começa uma reportagem recente de Universa sobre os cancerianos, como Wanderlei Silva.

Segundo o lutador, as caraterísticas do horóscopo têm tudo a ver com ele. Pode parecer inusitado, mas o "Cachorro Louco" troca informações e dicas sobre signos em um grupo de amigos no WhatsApp. Ele fez seu mapa astral e gostou do que viu.

"Sempre fui meio ligado nesse negócio de signo e tal. Via horóscopo. E via que algumas coisas que o cara falava tinha a ver comigo." E a astrologia funciona pra ele?

"Funciona totalmente, comigo pelo menos bate 100%, porque astrologia não é religião. A astrologia é o posicionamento dos astros, é física. É uma coisa que eu não estudo, mas eu tenho amigos que estudam e me passam, às vezes, o tal do mapa astral. Eu acho bem legal de ver."

Nota da edição: a astrologia não é considerada parte da física e nem tem respaldo no conhecimento científico.

O pessoal do grupo fala: "Esse teu astrólogo só dá notícia boa". Mas é assim que eu quero, notícia ruim eu não quero não

Wanderlei Silva, sobre o grupo de amigos ligados em signos

Marcelo Alonso Marcelo Alonso

"Estou rico, com o burro na sombra"

Em sua biografia, Wanderlei se define como um cara "seguro" com o dinheiro — para não dizer pão-duro. Não gastar mais do que ganha é uma das suas filosofias de vida, herdada dos pais dona Leopoldina e seu Holando (morto em 2012) e levada a cabo desde o início de sua carreira, apesar de um salto monstruoso em seus ganhos.

Com uma filha pequena e se dividindo entre treinos e aulas na academia, o Wanderlei do final dos anos 1990 já havia feito algumas lutas no IVC (International Vale-Tudo Championship) e até duas lutas no UFC, mas ainda não estava tranquilo. A oportunidade de mudar de vida, porém, veio em 1999: na estreia no Pride, por um combate, contra Carl Ognibene, recebeu a bolsa de US$ 3.500.

Em cinco anos, porém, sua bolsa explodiu: para subir no ringue, era normal ganhar algo em torno de US$ 300 mil. Mas quando aceitou o desafio de enfrentar Mark Hunt, lutador mais forte e 35 quilos mais pesado, a bolsa foi fixada em US$ 600 mil. E não baixou mais. Na sua última luta, contra Quinton Jackson, no Bellator 206, em setembro de 2018, Wanderlei embolsou US$ 1 milhão, o que hoje seria o equivalente a R$ 5,6 milhões.

"Eu estou rico, graças a Deus. Estou com o burro na sombra. Mas isso foi uma decisão de vida", diz Wanderlei, que tem uma rede de academias, uma marca de roupas e investe na carreira de palestrante.

Na época de prosperidade, ao invés de me exibir, comprar barco, helicóptero, decidi investir. É aquela história: não fiz faculdade, mas sei que a gente tem que gastar menos do que ganha

Wanderlei Silva

O pessoal tem vergonha de dizer que tá rico, sabe? Você não deve ter vergonha do seu sucesso. Temos que aprender a mostrar mais os nossos pulos e menos os nossos tombos

Wanderlei Silva

Arquivo pessoal e Marcelo Alonso Arquivo pessoal e Marcelo Alonso

Estreia contra um futuro BBB

Se hoje ele se considera rico, o início da carreira profissional teve mais perrengues do que dinheiro no bolso. Dois meses depois de sua filha Rafaela nascer, em 1996, Wanderlei teve sua primeira oportunidade de lutar profissionalmente. O torneio era o Campeonato Brasileiro de Vale-Tudo, e a bolsa de R$ 10 mil fez brilharem os olhos. "Essa luta era uma oportunidade de ganhar um dinheiro. Para quem estava sem nada, era uma fortuna", disse. A bolsa, no entanto, só seria paga ao atleta que ganhasse os três combates previstos.

A primeira pedreira de sua carreira foi Dilson Filho, especialista em caratê, do Mato Grosso do Sul. "Nocauteei ele [aos 3 minutos e 35 segundos], mas me machuquei demais. Quebrei meu dedo, cortei o meu supercílio e não consegui continuar [no campeonato]. Não ganhei nada por essa luta. O pessoal gritou, vibrou muito no ginásio. Foi o meu primeiro cachê: a vibração do público."

Seu adversário mais tarde também conseguiria certa fama, mas por outras vias. Com o nome de Dilsinho Mad Max, o carateca Dilson Filho participou da terceira edição do Big Brother Brasil, da Globo. Onze dias depois de entrar na casa, acabou desistindo do programa ao sofrer de uma paixão não correspondida pela miss Brasil Joseane de Oliveira.

Revanche com Belfort sem previsão: "Ele é uma diva"

Zuffa LLC/Zuffa LLC via Getty Images

Derrota amarga

Com apenas 14 derrotas em 51 lutas, Wanderlei considera a mais amarga a estreia no UFC em 1998, contra Vitor Belfort. "O primeiro deserto da minha carreira profissional passei depois da luta contra Vitor Belfort", conta ele no livro. Belfort partiu para cima ao soar do gongo e nocauteou em 44 segundos. "Naquele dia, aprendi que tenho meus limites". Passados 22 anos, aquela derrota ainda está engasgada. "Se fosse para voltar, só queria lutar se fosse com o Belfort". Os dois já tiveram oportunidade de se enfrentar outras vezes, mas a revanche nunca aconteceu.

TUF/Divulgação

Lesão no TUF impede a luta

Em 2012, Wanderlei e Belfort foram técnicos do reality show TUF (The Ultimate Fight), da TV Globo. O ponto alto do programa seria justamente a luta entre os dois. Mas uma lesão na mão tirou Belfort. "Que lesão, hein? O cara quebrar a mão? O apelido dele no TUF era 'Diva'. A probabilidade de um cara quebrar a mão fazendo um treino de MMA é praticamente nula". Wanderlei contou que houve outras conversas: "O cara corre de mim há 22 anos, ele morre de medo de mim. Esse cara não entra comigo no ringue por dinheiro nenhum, esse bunda mole".

Gregory Payan/AP

"Rivalidade com Sonnen foi real"

Em 2014, quando voltou a participar do TUF, Wanderlei protagonizou uma briga com o americano Chael Sonnen. Os dois eram líderes das equipes que iriam se enfrentar ao longo do programa. Mas as constantes provocações do americano, que chegou a ofender o Brasil e os brasileiros, tiraram Wanderlei do sério. "No Brasil, se você cumprimentar alguém baixando a cabeça, eles te batem na cabeça e roubam sua carteira", chegou a comentar Sonnen.

O brasileiro e sua equipe chegaram mesmo a agredir o rival. Sonnen e Wanderlei se enfrentaram três anos depois, no ringue do Bellator, no Madison Square Garden, em Nova York. O americano levou a melhor, vencendo por decisão dos juízes.

Wanderlei jura que a rivalidade com Sonnen foi real, não um artifício para promover a luta. "O pessoal diz que ele falou isso ou aquilo só por promoção, mas falar um monte de besteira do país dos outros é chato. Eu não gostei muito da atitude dele, então eu queria realmente cobrar, tirar o troco. E eu tenho a vantagem de poder, no meu trabalho, resolver isso de uma maneira bem peculiar. A nossa rivalidade foi uma rivalidade real, de verdade."

Sintomas da demência pugilística assustaram

O corpo de Wanderlei cobra a fatura dos quase 30 anos dedicados à luta. Além de ter passado por cirurgias no nariz, ter implantado o ligamento de um cadáver no joelho esquerdo e sentir uma dor frequente na lombar, Wanderlei tem sintomas de Encefalopatia Traumática Crônica (ETC), uma doença conhecida como "demência pugilística", que pode ser causada por repetidos golpes na cabeça.

"Tenho falta de sono, algumas alterações de humor. Nunca fiz um teste específico para detectar, mas, indo a palestras sobre o tema, detectei que tenho alguns sintomas. Me sinto super bem, mas, como sou da primeira geração do MMA e tomo socos na cabeça há muito tempo, decidi que quero contribuir para a ciência", afirma ele na biografia ao revelar que pretende doar seu cérebro para estudos sobre as consequências do esporte para lutadores profissionais.

O jornalista Thiago Parijani, biógrafo de Wanderlei, disse que esses sintomas apareceram ao escrever o livro. "Ele tem um problema de memória. Você começa a falar com ele sobre determinado assunto. Passam duas semanas, você volta a falar com ele, ele conta de novo a mesma história. Ele já assumiu que tem sintomas de demência pugilística e eu pude sentir na pele isso. Foi isso que fazia eu retomar o raciocínio. Se a gente não faz esse filtro, o livro ia ficar girando em círculo", revela Parijani.

Se pudesse voltar no tempo, ele mudaria o tipo de treinamento que fez durante toda a carreira.

Hoje em dia, sabemos que esse esporte pode ser feito de outra maneira, sem se bater tanto. Você não precisa levar tanto golpe na cabeça. Antigamente muita gente achava que quanto mais golpes você tomasse, mais golpes você aguentaria. Isso é ao contrário: quanto mais golpes você toma, menos você aguenta. É como se você tivesse um crédito. Dá para treinar de uma maneira mais inteligente."

Do que você se arrepende?

Reprodução

De ter fugido do exame antidoping em 2014

"Fugi porque estava tomando remédio para dores que caíam no doping, mas não era nada de anabolizante. Isso atrapalhou muito minha carreira. Se eu tivesse feito o exame e caído os medicamentos, não ia ter problema nenhum. O pessoal ia ver que era proibido, eu ia pegar um ano suspensão, um ano depois eu voltaria a lutar. Por ter fugido, fiquei dois anos suspenso. A gente aprende com os erros."

Jeff Zelevansky/Getty Images

De ter brigado com Dana White para sair do UFC

"Eu não teria brigado com o meu antigo patrão Dana White. Ali aprendi que quando briga com o patrão, você nunca ganha. Eu realmente me comportei mal, me queimei. Sou muito grato a ele e à organização por tudo que fizeram por mim, por terem me colocado tão alto. Estive em palcos maravilhosos ao redor do mundo, fiz muitos fãs ao redor do mundo. Me promoveram muito, ganhei muito dinheiro no UFC."

Reprodução

Convite de Bolsonaro para virar político e o fracasso nas eleições

Em 2018, Wanderlei apoiou o então candidato à Presidência Jair Bolsonaro e até o recepcionou em sua passagem pela capital paranaense durante a campanha. Bolsonaro chegou a gravar e publicar um vídeo convidando Wanderlei a se filiar ao PSL, partido pelo qual se elegeu presidente e com o qual rompeu no ano passado.

O lutador acabou concorrendo ao cargo de deputado estadual pelo PSD, partido de Ratinho Jr, o atual governador do Paraná.

"Eu queria mais saber qual que era minha força no meio da população geral. Sou um cara viajado, vejo muita coisa ao redor do mundo que daria certo no Brasil, tanto na área comercial, quanto na área do dia a dia. Vejo a qualidade de alguns dos nossos representantes e penso: 'Sinceramente, eu poderia, com toda a minha modéstia, fazer melhor.'" Com menos de 14 mil votos, Wanderlei não conseguiu se eleger.

Os números de Wand

  • 51

    lutas profissionais

  • 35

    vitórias

  • 14

    derrotas

  • 1

    empate (e 1 no contest)

  • 4

    anos, 10 meses e 17 dias sem perder no Pride

  • 18

    lutas seguidas sem derrotas

  • 0

    reais, quanto ganhou em sua primeira luta

  • 1 milhão

    de dólares, quanto ganhou em sua última luta

  • 3

    cirurgias para reconstruir o nariz

  • 13.755

    votos nas eleições 2018

Arquivo pessoal

Bicicleta virou terapia, mas também trouxe riscos

Sem lutar há dois anos, Wanderlei encontrou na bicicleta uma forma de se manter ativo. "Não estou me exercitando, não estou fazendo mais como eu fazia antigamente. Eu direcionei isso para bicicleta. Ando de bicicleta mais como terapia, lifestyle e meio de transporte. Ali eu penso na vida. Estou me achando na bicicleta."

Mas o meio de transporte também já lhe causou alguns sustos. O lutador foi notícia das emissoras locais quando sofreu dois acidentes graves — um deles aconteceu antes da foto acima. "Esse último que eu tive agora, um carro bateu na minha bicicleta. Aí eu fui arremessado meio longe e cai de cara no chão. Acabei ralando meu rosto e quebrando meu pé. Não machuquei tanto assim, pela gravidade do acidente, eu não machuquei nada. Mas fiquei com um pouco de medo por um tempo. Mas aí esse medo passou e eu já voltei a pedalar."

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