Recalculando rota

Sem chances no Brasil, brasileiros encontram espaço nos EUA e, com título, chamam atenção da MLS

Eder Traskini Do UOL, em Santos (SP) Divulgação

Seis garotos sem espaço no Brasil tentam a sorte no futebol universitário dos Estados Unidos e, contra todas as probabilidades, conquistam um título inédito para sua universidade, já chamando atenção da liga profissional americana, a MLS. A história pode parecer, mas — pelo menos ainda — não é um roteiro de um filme da sua "Sessão da Tarde".

Vitor Dias, Pedro Dolabella, Davi Lima, Vinicius Fernandes, João Peterlini e Gabriel Alves viveram isso. O sexteto comandou o time da Marshall University na temporada que terminou com o título inédito do torneio nacional de futebol masculino da NCAA, a mais importante liga universitária dos EUA, algo totalmente inesperado para uma equipe que nunca tinha sequer chegado nas fases finais da competição.

A maioria deles passou pelas categorias de base de grandes clubes do Brasil, sendo quatro deles ex-São Paulo. No entanto, sem espaço no Tricolor paulista, rodaram por clubes nacionais até parecer quase impossível virar um jogador profissional em terras brasileiras. E foi aí que a oportunidade de traçar uma nova rota na carreira surgiu.

Nos Estados Unidos, a oportunidade é dupla: como bolsistas, jogam pelo time da universidade ao passo que também se formam no curso escolhido. Ou seja, mesmo que o futebol "não dê futuro", o diploma está garantido. No entanto, o desempenho por Marshall vem tendo tamanho destaque que a maioria deles já é acompanhada de perto por clubes da MLS, como o LA Galaxy, o Inter Miami e o Atlanta United. Por rotas alternativas, o sonho pode se tornar real.

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A gente meio que comanda lá. A gente brinca que é o Shakhtar Donetski do college, lotado de brasileiro. Quase metade dos titulares são brasileiros e o pessoal respeita muito a gente. Comecei a perceber que vários times estão pegando brasileiros. Antes não era comum. Um amigo meu é o único brasileiro da faculdade dele e ouviu do técnico: 'Onde é que Marshall acha tanto brasileiro que joga tão bem assim?'."

Vitor Dias, meia de Marshall

Outro caminho

Os seis brasileiros foram enviados a Marshall pela mesma empresa brasileira especializada nesse tipo de intercâmbio. A "2SV Sports" tem bases no Brasil, Estados Unidos e Alemanha — a universidade também conta com atletas alemães enviado pela empresa.

Ricardo Silveira, CEO e cofundador, conta que já foram mais de 3 mil alunos enviados desde 2005. Segundo ele, com a entrada que a empresa tem no mercado americano, os técnicos ligam pedindo jogadores de posições específicas e a empresa tem autonomia de avaliar quem melhor se encaixa no perfil requerido. "O técnico de Marshall [Chris Grassie] era assistente de Michigan. Eu tenho proximidade com ele e brincava que quando ele fosse treinador principal, a gente seria campeão. Ele recebeu a proposta e falou 'agora conto com você'. Aí começamos. Agora, depois do título, outros treinadores me ligam e falam 'agora é minha vez, me ajuda", contou Silveira em entrevista ao UOL Esporte.

Ele explica que a preparação para os jogadores geralmente começa entre 15 e 16 anos. Atletas com mais de 20 anos não costumam ser aceitos. Quem embarca na aventura passa de oito a 14 meses estudando inglês e trabalhando a parte física antes de ser enviado aos EUA. O valor da bolsa, entre faculdade e moradia, pode chegar a 50 mil dólares. Todo o processo é bancado pelo próprio atleta, que paga um valor para a empresa fazer a preparação —os valores giram em torno de R$ 600 ao mês.

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Marshall brazukas

Além dos seis campeões na última temporada, Marshall ganhou mais um atleta brasileiro em agosto deste ano: o atacante Paulo César Lino, com passagem pela base do Corinthians. Foram quatro anos para formar o "esquadrão brazuka" na universidade —o técnico Grassie está na universidade desde 2017. "No segundo ano dele (novo técnico) em Marshall mandamos o Pedro, depois mandamos mais três e depois outros dois. E tem mais um da base do Corinthians também (Paulo César Lino). O time titular tem seis brasileiros e três alemães", explicou Silveira.

O primeiro a chegar foi Pedro Dolabella, em agosto de 2017. O meia participou de todo o processo que transformou uma universidade de ranking ruim em campeã nacional. "A gente sempre sonha em chegar no topo, mas não vou mentir: era difícil imaginar isso com um time ranqueado como 200 no país, sem muitas perspectivas. Fazer parte de todo o processo é uma experiência indescritível, você acompanha os momentos mais baixos até a glória de ser campeão nacional. Quando acontece, você olha pra trás e vê tudo que você passou e só faz do momento ainda mais especial", contou Pedro em entrevista ao UOL Esporte.

Vinicius Fernandes chegou na temporada seguinte, depois foi a vez de Vitor Dias e João Peterlini. E foi aí que a equipe começou a deslanchar sob a batuta brasileira. "Neste ano, foi a primeira vez que Marshall chegou no final four, a semifinal. Antes de eu chegar, em 2019, a gente nunca tinha ganhado nem a conferência. Depois que cheguei, ganhamos a conferência e já no ano seguinte chegamos ao título nacional, que é o máximo que um time pode alcançar nos EUA", explicou Vitor Dias. A conferência a que ele se refere é um grupo de universidades de tamanho, investimento e localizadas na mesma região. Essas equipes se enfrentam na temporada regular e os melhores vão para as finais de conferência. Só aí os melhores times são convidados para o torneio nacional, que foi vencido por Marshall em 2020.

Quem são eles

  • Vitor Dias

    Meio-campo. Em Marshall desde agosto de 2019. Eleito MVP da conferência USA e eleito para seleção do torneio da NCAA.

    Imagem: Reprodução
  • Pedro Dolabella

    Meio-campo. Em Marshall desde agosto de 2017.

    Imagem: Divulgação
  • Davi Lima

    Zagueiro. Em Marshall desde janeiro de 2021.

    Imagem: Divulgação
  • Vinicius Fernandes

    Meio-campo. Em Marshall desde agosto de 2018.

    Imagem: Divulgação
  • João Peterlini

    Atacante. Em Marshall desde agosto de 2019.

    Imagem: Reprodução
  • Gabriel Alves

    Lateral-esquerdo. Em Marshall desde janeiro de 2021.

    Imagem: Reprodução
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MVP e mais três vieram de Cotia

Eleito o jogador do ano, MVP (Most Valuable Player, ou jogador mais valioso) ofensivo e meio-campo do ano na conferência USA e eleito para a seleção do torneio da NCAA, Vitor Dias foi o principal destaque de Marshall na conquista. O meia jogava na base do São Paulo no Brasil, mas deixou o Tricolor paulista após uma confusão entre diretoria e seu empresário.

"Fiquei entre os 13 e os 17 anos no São Paulo. Eu estava bem, tinha empresário, e lá tinha muito disso, (relação entre) empresário e o gerente da base. Se não me engano, tinha trocado o presidente do São Paulo e acabaram trocando a gestão inteira da base... E foi aí que meu empresário teve uma desavença com o novo gerente e eu comecei a ficar de lado. Não ia para jogo, treinava em categoria abaixo. E foi aí que ele resolveu me tirar de lá e partir para outro lugar. Acabei concordando com ele, mas até hoje não sei se foi a melhor opção", explicou.

Vitor seguiu com o sonho de se tornar jogador, mas uma lesão atrapalhou os planos de vez, ou pelo menos assim ele pensara na época. "Fui para o Capivariano, do interior de São Paulo. Fiquei um ano e meio lá. Fomos vice-campeões paulistas sub-20 e perdemos nas quartas da Copinha. Foi ótimo, apesar de ser um time pequeno, com uma estrutura totalmente diferente do São Paulo, que tem Cotia e é incrível. Mas foi uma experiência válida. Só que eu rompi o ligamento cruzado do joelho e aí desanimei."

Com a lesão, Vitor voltou para sua cidade, Brasília, e começou a fazer faculdade. A oportunidade de ir para os EUA surgiu seis meses depois, em uma conversa com o amigo Pedro Dolabella, outro ex-São Paulo, que já atuava por Marshall. Além da dupla, Gabriel Alves e Vinicius Fernandes também passaram por Cotia, CT da base são-paulina.

Eu acho que o nível é muito parecido (base do Brasil e universitário dos EUA), por mais que muita gente não acredite nisso. Tecnicamente, o nível no Brasil é melhor, mas o físico do pessoal nos EUA compensa a falta de técnica. Uma vez, no nacional de 2019, a gente alinhou para entrar em campo e já tínhamos recebido do scout que o adversário era todo americano. Eu olhei pro lado para analisar e pensei 'vai ser tranquilo, só americano estranho'. Acabou o jogo 4 a 1 pros caras e fomos eliminados. Aprendi: não é só brasileiro que sabe jogar bola."

Vitor Dias

Diploma atrai

Se no Brasil muitas vezes fica impossível conciliar o sonho de se tornar jogador de futebol com os estudos, nos Estados Unidos a situação é oposta. O campeonato universitário é a maior vitrine para o draft (evento americano onde os times podem escolher atletas universitários) da MLS e os atletas são obrigados a completarem os estudos para jogarem profissionalmente. Segundo Ricardo Silveira, esse é um dos principais fatores que tem levado jovens atletas a verem com bons olhos um intercâmbio esportivo para os EUA.

"Antes era: 'estou dando um passo para trás: vou estudar porque fui dispensado'. Hoje, não. Já veem como um caminho alternativo, um plano B que pode virar plano A. É de fato um caminho com duas opções: diploma e esporte", explica. Vitor, que cursa Sports Management, concorda com tal visão. "Quando você vai para os EUA ,você tem a chance de sair com o diploma e se profissionalizar ao mesmo tempo. Isso foi o que mais pesou para eu ir para lá".

Pedro Dolabella já se formou em Marketing e agora cursa MBA em Business Administration na instituição. Como terminou a faculdade depois de atuar apenas três temporadas, o meia ainda pode jogar mais um ano na liga universitária e estará disponível no draft de janeiro. "Com isso, abriu espaço para eu fazer meu mestrado. Já estou na metade dele, mas não necessariamente preciso terminar antes do draft. Ainda assim já vou ter mais de meio caminho andado e posso terminar o mestrado após o draft, mesmo sem jogar mais por Marshall", contou ao UOL Esporte.

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Destino MLS

Como era de se esperar, os campeões nacionais atraem o interesse das equipes da MLS para o próximo draft da liga, marcado para janeiro de 2022. Quem ainda não está em seu último ano de faculdade pode optar por seguir atuando na liga universitária ou ficar disponível para ser draftado. Nesse caso, existe um contrato que garante a continuidade da bolsa de estudos. "Ainda não escolhi se vou para o draft ou não. Todos os jogadores das equipes que estão lá em cima estão cotados, mesmo não estando no último ano. No futebol, eles têm a 'GA', Generation Adidas, que é um contrato que você pode assinar quando você não está no último ano, e aí você pode ser draftado", explica Vitor Dias, que já sabe do interesse em seu futebol e tem sua preferência na liga americana.

Não falaram diretamente comigo, mas meu técnico me contou que alguns times já o procuraram, como o LA Galaxy e Inter Miami. O futuro parece que promete. É um sonho jogar no Inter Miami, time do Beckham que começou há dois anos. Morar em Miami, clima perfeito, mais perto do Brasil, um voo de 7h já chega..."

Outro que atraiu interesse da MLS foi o lateral-esquerdo Gabriel Alves. Já em seu ano de calouro ele foi eleito para a seleção dos "freshman" da conferência e chamou atenção do Atlanta United. Ele ainda tem mais dois anos pela frente na liga universitária, mas foca em repetir o desempenho para conseguir um contrato na MLS via "Generation Adidas".

Arquivo Pessoal
Gabriel Alves durante período com o Atlanta United

No draft eles dão mais oportunidades pra quem está no último ano. Pra quem não está, só se for muito bem na temporada para conseguir uma vaga. Normalmente, por ano são entre cinco e oito jogadores que entram no draft sem serem seniors (último ano de faculdade). O Atlanta gostou de mim, mas como ainda tenho mais três anos para jogar, eles vão esperar um pouco. O assistente do treinador do Atlanta foi quem viu nossos jogos e me chamou pra passar dez dias no CT. Treinamos com o time B e com o time profissional. Disseram que tínhamos condições de estar lá e deram algumas dicas no que podemos melhorar. Os treinos são bem intensos, mais que no Brasil."

Gabriel Alves ao UOL Esporte.

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