A dor de Walce

Zagueiro passou noites em claro com medo da fisioterapia. Agora sonha jogar após três cirurgias no joelho

Brunno Carvalho Do UOL, em São Paulo Marcello Zambrana/AGIF

Walce, 22, acompanhava atentamente a hora avançando noite adentro em seu celular. Cada minuto que passava aumentava o desespero do zagueiro do São Paulo. Sentado na cama, ele torcia para que de alguma maneira o tempo parasse. Encarava o aparelho eletrônico até pegar no sono em uma posição nada confortável. Quando o despertador tocava às 8h, ele suava frio.

Amanhecer significava um reencontro com a dor. Cada sessão de fisioterapia para tratar o joelho operado trazia um desespero que ele não sabia se conseguiria suportar. A toalha na boca tentava em vão aliviar o trauma que sentia cada vez que sua perna era dobrada. As lágrimas que escorriam colocavam dúvidas na cabeça do jovem zagueiro. Valia a pena passar por isso?

Eu voltava para a casa tremendo. Não sei se era uma crise de ansiedade, mas tinha muito medo de dormir para acordar no outro dia e passar por tudo aquilo de novo. Eu via a hora passando e ficava desesperado. Não tinha nem fome. Minha mãe colocava comida no meu prato e eu não conseguia comer."

A semana de maior sofrimento aconteceu quando ele se recuperava da segunda cirurgia para corrigir o rompimento do ligamento cruzado anterior do joelho —a primeira foi em janeiro de 2020, a segunda, em outubro de 2020 e a terceira, em junho deste ano. A crença em um ser divino capaz de ajudar as pessoas em momentos de dificuldade foi essencial para que o zagueiro encontrasse forças para passar por tudo aquilo.

"No terceiro dia daquela semana, eu pedi para Deus saciar a minha dor. Queria que ele aparecesse no meu sonho, mas não aconteceu. Fui para o CT esperando para sofrer tudo aquilo de novo. Era o dia que eu tinha que ganhar mais amplitude no joelho, meu tornozelo precisava encostar na bunda. E naquele dia eu aguentei a dor. Falava para o fisioterapeuta: 'mano, pode dobrar, pode ir'. E ele respondia que a gente já tinha conseguido chegar aonde era para chegar".

Walce caminhava para o retorno aos gramados quando no meio deste ano um exame mostrou que o ligamento seguia frouxo. Foi necessária uma terceira cirurgia para corrigir o problema. Os quase dois anos longe dos gramados trouxeram dúvidas para o zagueiro, que conseguiu se perdoar e agora aguarda o momento certo para retornar. "Vou voltar no meu tempo".

Marcello Zambrana/AGIF
Reprodução/Instagram

Pensei em desistir

O processo de recuperação da segunda cirurgia foi o mais difícil para Walce. Ele já completava nove meses longe dos gramados quando apresentou sinais de instabilidade articular. O problema que tirou o zagueiro dos treinos leves no gramado e o recolocou no departamento médico plantou dúvidas em sua cabeça.

Walce começava a mudar as expectativas. O desejo de voltar aos gramados diminuía cada dia mais. Para ele, apenas voltar a andar já seria suficiente. "Comecei a colocar na minha cabeça que, se eu voltasse a jogar futebol, ia ser só para brincar. Na situação que estava, sem conseguir levantar para ir ao banheiro sozinho, voltar a jogar para valer seria impossível".

A pressão de ser um jogador de futebol e ter que voltar aos gramados consumia Walce. Ele tentava em vão encontrar a paz para lidar com o processo. Quanto mais desistia, mais sentia a dor aumentar.

"Eu não conseguia encontrar uma resposta para aquilo tudo. Muitas coisas boas estavam por vir naquele momento da minha carreira. Eu estava na seleção, ia jogar o Pré-Olímpico e não conseguia entender por que tudo aquilo foi tirado de mim dessa forma".

Walce era um dos líderes daquela seleção de jovens que tentava uma vaga para a disputa dos Jogos Olímpicos de Tóquio. Ele rompeu o ligamento do joelho ao girar o corpo durante um jogo-treino em janeiro do ano passado. Deixou a concentração de cadeira de rodas e viu da TV aquele time alcançar o primeiro passo para a medalha de ouro conquistada no meio deste ano.

A cronologia da lesão

  • 16 de janeiro de 2020

    Walce passa por cirurgia para corrigir a ruptura do ligamento cruzado anterior no joelho esquerdo.

  • 14 de outubro de 2020

    Uma nova cirurgia após o joelho apresentar sinais de instabilidade articular.

  • 12 de junho de 2021

    Novo exame diagnostica uma insuficiência do enxerto, obrigando a terceira cirurgia.

Marcello Zambrana/AGIF Marcello Zambrana/AGIF

Choque de realidade

A pandemia deixou as coisas mais difíceis para Walce. Parte da recuperação precisou ser feita dentro de casa no período em que a situação no país estava mais grave. Os clubes permaneceram fechados por um longo tempo, o que fez com que o São Paulo encontrasse um centro de reabilitação para que o zagueiro fizesse atividades na piscina.

O que poderia ser um percalço a mais acabou ajudando Walce a lidar com seus conflitos. No centro de reabilitação, ele conviveu com anônimos que travavam seus próprios combates. Um deles fez com que o zagueiro repensasse o que estava sentindo.

"Quando eu me deparei com uma criancinha chegando com apenas uma perna foi um choque para mim. Eu não podia reclamar de absolutamente nada. Aquela cena me deu um baque muito grande e me fez mudar a chavinha dentro da minha cabeça."

Walce diz ter voltado para casa reflexivo. Por não conseguir dobrar a perna, ele ia deitado no banco de trás do carro conduzido pelo irmão. Foi o caminho todo sem dizer uma palavra. Apenas relembrava a cena que o marcou.

"Eu ainda estava de muleta, estava em pé, conseguindo apoiar. A criança entrou de cadeira de rodas, teve que ter uma ajuda dos pais para poder descer numa cadeira porque não tinha perna. Isso tomou meu coração, minha mente de uma forma que talvez seja uma imagem que eu vá levar para o resto da minha vida e fazer com que ela em momentos de fraqueza faça mais sentido do que a dor."

Marcello Zambrana/AGIF Marcello Zambrana/AGIF

Aprendeu a se perdoar

O episódio no centro de reabilitação foi um dos fatores que ajudaram Walce a encontrar a paz. Entender que para além do jogador de futebol existia um ser humano com medos e dúvidas foi fundamental para que superasse a vontade de largar tudo.

"Eu comecei a olhar mais humanamente para mim. Tirei aquela parte de 'eu sou o Walce'. A gente é muito frágil e é importante saber disso. Eu amadureci muito nesse processo. Posso dizer que sou outro Walce, um atleta muito mais bem preparado mentalmente. Não sei qual vai ser o futuro, mas estou buscando o meu melhor em cima daquilo que eu posso".

O relógio que assustava Walce para dormir também o pressionava a longo prazo. Uma lesão igual à dele tem um tempo de recuperação de seis a oito meses. Ele está perto de completar dois anos longe do gramado. O processo de entender que seu tempo era diferente dos outros foi difícil, mas o zagueiro acredita que conseguiu se encontrar.

"Hoje a vibe é totalmente diferente. Eu olho de outra maneira agora para quando as pessoas pedem para eu voltar. Também é meu desejo, mas é algo que enquanto eu não puder fazer, não vou fazer. Não vou ficar me mutilando. Eu vou viver o processo da fisioterapia como tem que ser vivido. Independentemente do tempo, eu vou voltar quando tudo tiver que acontecer".

Lucas Figueiredo/CBF Lucas Figueiredo/CBF

Um torcedor em paz

O perdão que deu a si permitiu que Walce acompanhasse o torneio olímpico de futebol. A cobrança por ter ficado de fora de um momento ímpar se transformou em uma efusiva torcida para os companheiros que foram até o Japão. "Eu torci muito, cara. Foi bem gratificante vê-los alcançarem o objetivo de ir para as Olimpíadas e serem campeões".

O sentimento de que poderia estar lá com seus companheiros era justificável. Antes da lesão, Walce era um dos titulares da seleção pré-olímpica. Sua presença em Tóquio parecia ser questão de tempo. Deixar a concentração de cadeira de rodas mudou completamente o rumo das coisas.

"Eu queria muito estar vivendo aquele momento, não sei se vou ter outra oportunidade de jogar uma Olimpíada. A minha lesão foi um baque para todo mundo, todo mundo ficou bem sentido. Posso dizer que eles choraram o meu choro naquela época. Eu saí da concentração de cabeça erguida e coração em paz".

Walce estava representado na comemoração da vaga olímpica. Ao vencer a Argentina por 3 a 0 e garantir presença em Tóquio, os jogadores exibiram uma camisa com o nome do zagueiro são-paulino. "Só de esse fato ter acontecido já me deixou muito feliz".

Erico Leonan/São Paulo FC

Eu vou voltar

Walce vive um momento de transição para o gramado. Ele postou há um mês um vídeo chutando bola na parede. Foi um dos primeiros contatos com o objeto depois de muito tempo. "A lesão te sufoca de uma maneira que tira a esperança de um dia você ter de novo o contato com a bola. Você calçar a chuteira novamente, bater uma bola já te dá uma esperança. Isso me faz acreditar que o que eu estou vivendo vai valer a pena lá na frente".

Em seus momentos sozinho, Walce imagina o dia que vai voltar a pisar no gramado do Morumbi. Aos 22 anos, ele soma cinco partidas no profissional do São Paulo. Ouvir o grito da torcida mais uma vez é o grande objetivo do zagueiro.

"Eu mentalizo estar dentro do Morumbi cheio, com a casa lotada e a torcida me apoiando. E eu entro em campo nem que seja por dois minutos para poder voltar a sentir esse momento. Isso para mim já vai ser um divisor de águas".

Nos próximos meses, Walce espera avançar na recuperação. Ele não tem mais pressa, quer voltar no momento certo. Desistir, porém, já não é algo que passa mais pela cabeça dele.

"Diante desse momento, eu falo para você que o meu principal objetivo é voltar a jogar. Simplesmente isso. Eu quero conseguir voltar a pisar dentro de campo e entregar o meu melhor como eu sempre fiz. Eu não sei se eu vou voltar como eu era, mas eu estou lutando para voltar no mínimo melhor do que eu já fui. Isso é inegociável para mim."

Rubens Chiri/São Paulo FC Rubens Chiri/São Paulo FC

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