Pesadelo de 776 dias

Robson Oliveira viu oportunidade da vida e acabou abandonado em prisão na Rússia por família de jogador

Mauro Cezar Pereira Colunista do UOL, em São Paulo

O motorista Robson Oliveira viu a oportunidade de mudar de vida, conhecer outro país e de trabalhar com um jogador com passagem pela seleção, ao ser convidado pelo volante Fernando, atualmente no Beijing Guoan, para ir à Rússia prestar serviços à família do atleta. Mas o sonho virou pesadelo em longos 776 dias preso por levar na bagagem, sem saber, duas caixas do medicamento Mytedom 10mg (cloridrato de metadona), que é proibido em território russo.

Em entrevista a Mauro Cezar Pereira no programa Dividida, do UOL Esporte, Robson relata detalhes do período mais difícil da vida. O motorista ainda detalha sequelas que trouxe de volta ao Brasil, como a falta de apetite, a dificuldade para dormir e a espera de que Fernando reconheça sua responsabilidade no episódio.

Robson conta como foi passar mais de dois anos tentando provar sua inocência, com troca de advogados, mudança de juiz do caso e a volta ao Brasil após a estratégia adotada por seus advogados, o russo Pavel Gerasimov e o brasileiro Olímpio Soares, de tentar não a absolvição, mas a condenação com uma pena menor que o permitisse retornar e cumprir a pena em liberdade.

De volta em sua casa desde o último dia 5, Robson se diz grato ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido), apesar da declaração dada em outubro do ano passado, quando o mandatário citou que Fernando teria feito tudo o que estava a seu alcance.

Agora o motorista só quer retomar sua vida normal, ainda na espera por justiça após o longo período na prisão. E, sobre o verdadeiro dono dos medicamentos que causaram sua prisão, Robson relata a revolta por não ter tido nenhum contato: "Ele nunca me deu um bom dia".

Alan Santos/PR

Dividida, com Mauro Cezar

A prisão

UOL - Ficar em um lugar totalmente inóspito, com pessoas que não falam a sua língua, preso sem nenhum motivo, sem ter feito rigorosamente nada, como é que você conseguiu encontrar forças para isso, para superar isso?

Robson Oliveira - Eu tive que me agarrar a Deus, cara. Porque eu acho que era o único que naquele momento entendia a minha língua. Eu não tinha com quem me abrir, com quem falar o que eu realmente estava sentindo, o que eu estava passando, então tive que ter muita fé em Deus, muita oração.

UOL - Você chegou para trabalhar, houve esse problema da mala, mas você foi liberado. Foi para a casa da família, começou a trabalhar normalmente, até que um dia você teve que voltar na delegacia e a mulher do Fernando e ele foram com você. Quando você foi até lá para prestar um depoimento, para se apresentar, você imaginava a possibilidade de ficar preso?

Robson Oliveira - Nunca imaginei a possibilidade de ficar preso, até porque, na minha concepção, eu não cometi crime nenhum.

UOL - Vocês chegaram lá, você ficou e eles voltaram, conta em detalhes como é que foi isso. Você foi dirigindo?

Robson Oliveira - Sim, eu fui dirigindo até essa delegacia lá, ela fica bem próxima ao aeroporto, acho que faz parte lá do sistema de segurança do aeroporto. Quando chegamos lá, a esposa dele disse que era melhor eu ficar dentro do carro, e eles foram primeiro. Entraram e, depois de uns 40 minutos, 50 minutos, mais ou menos, eu não me lembro quem, mas ligaram para o meu telefone dentro do carro e falaram que eu tinha que ir lá. Veio um policial até a porta me aguardar para me levar até a sala em que eles estavam. Só que ele não me levou para a sala em que eles estavam, ele me levou para uma outra sala, na qual eu fiquei sozinho durante bastante tempo, duas, três, quatro horas, não sei direito, até que eu fosse prestar o depoimento.

UOL - Como que eles se comunicavam, a família do Fernando com as pessoas, falavam em inglês?

Robson Oliveira - Eu não sei, porque eu não estive com eles em momento algum, eu só estive com eles no momento em que foi anunciada a minha prisão. Eu não assisti ao depoimento deles, eu não sei como eles se comunicavam e em que língua. Assim como eles também não participaram do meu depoimento, só quem participou do meu depoimento, o amigo deles que é o William, que fala russo, então ele traduziu lá o meu depoimento para a investigadora.

UOL - Você foi algemado, preso e aí você não teve mais contato nenhum com o Fernando, com a Rafaela e com ninguém?

Robson Oliveira - Saindo dali desse setor de depoimento, me levaram para um outro setor também policial que eu não sei identificar qual é, fica no subterrâneo lá do aeroporto, eles acompanharam até lá, ainda tentaram também falar alguma coisa, que na época eu não entendia nada, depois foram embora. Compraram um lanche para mim em um fast food, foram embora e depois voltaram de novo com um remédio de pressão que eu tomava e uma escova de dentes.

UOL - Quando você ficou detido nesse momento, tinha alguma noção do que estava começando, de que teria muita dificuldade para sair?

Robson Oliveira - Não, eu não estava entendendo direito o porquê, até porque, na minha concepção eu não cometi crime nenhum e os donos do remédio estavam lá na Rússia. Eu só não estava entendendo por que ele não foi, tendo em vista que ele era o dono do remédio, eu só não estava entendendo o por que ele não foi na delegacia para botar a cara e falar: o remédio é meu, eu pedi para trazer, eu pedi para botar na mala.

UOL - Você chegou a conviver com o sogro do Fernando [dono dos remédios] no breve período em que você trabalhou com a família? Conversar com ele, teve alguma conversa com ele?

Robson Oliveira - Ele nunca me deu um bom dia.

Reprodução/TV Globo

Abandonado em presídio sem falar idioma local

UOL - No início você não tinha sequer um advogado, tinha talvez defensoria pública. Como é que foi o começo, esses primeiros dias em que você foi colocado na prisão nessas circunstâncias que todos conhecemos? Até que apareceu algum advogado russo, defensoria pública, de que maneira se comunicavam com você, pela questão do idioma, como é que foi esse começo?

Robson Oliveira - Nos primeiros dias, a comunicação era quase que impossível, até para eu falar que, eu cheguei na prisão, na primeira prisão provisória que eu fiquei, eu cheguei com um remédio de pressão no bolso e para explicar que aquilo era um remédio de pressão, o policial lá botou o telefone no tradutor para poder eu explicar para ele o que estava acontecendo em relação aos meus remédios

UOL - Ou seja, não havia comunicação, não havia advogado, você praticamente foi abandonado então, foi colocado ali.

Robson Oliveira - Dois ou três dias após a minha prisão, eu fui preso na segunda-feira, se eu não me engano, na quarta ou quinta-feira ela [Rafaela, esposa de Fernando] apareceu lá com um advogado e ela entrou como tradutora. Segundo ela, ela só pôde entrar porque ela disse que era tradutora. Ela se comunicava com ele em inglês, eu também não falo inglês, então também não entendia.

UOL - Depois disso, ela voltou a aparecer por lá? O que mais a família fez a seu respeito?

Robson Oliveira - Ela [Rafaela] entrou como tradutora, passou para mim que entrou como tradutora nesse dia e falou que o advogado falou para ela ali naquele momento que era melhor eu assumir os remédios, porque ninguém iria acreditar que os remédios não eram meus, porque eles não estavam na Rússia.

UOL - Como é que você ficou sabendo que eles se mudaram para a China? Como é que essa informação chegou para você?

Robson Oliveira - Eu soube pela televisão. Dentro da prisão eu soube pela televisão.

UOL - De repente, pela televisão, você ficou sabendo que as pessoas que o levaram para morar na Rússia não estavam mais na Rússia e você estava preso lá. Como é que foi o seu sentimento no momento em que você se depara com uma informação de tal importância?

Robson Oliveira - Um sentimento de que foi cometido uma covardia comigo porque, depois do que aconteceu, vai todo mundo embora, vai para a China e não fica ninguém, os verdadeiros responsáveis não.

UOL - Na prisão, você foi alvo de algum tipo de perseguição? Como é que você foi tratado?

Robson Oliveira - Não, eu não tive. O racismo lá é no olhar, só o fato de eles me olharem e me verem negro, é aquele olhar, enfim, a gente já sabe como funciona isso. Mas eu não sofri nenhum tipo de violência, nenhum tipo de perseguição. Desentendimento dentro da prisão é normal porque várias pessoas, de vários países, com costumes diferentes, que agem de maneiras diferentes em diversas situações, então é normal discussão, mas nada demais.

UOL - Havia alguém que você conseguisse se comunicar na prisão, alguém que entendesse minimamente o que você falava e você também? Um brasileiro ou alguém de língua latina?

Robson Oliveira - Não, quando eu fiquei durante 1 ano e 10 meses na Kashira, ninguém falava, eu que tive que tentar falar o russo. Aprendi um pouquinho, então depois de um tempo eu conseguia me comunicar, mas não tinha ninguém que falasse nada latino.

UOL - E a rotina na prisão, como era? Você tinha um tempo para poder ficar em uma área externa?

Robson Oliveira - Na Kashira, eles perguntavam se queríamos ir para uma outra cela que tinha, mais arejada, mas a maior parte do tempo era na cela, porque essa sala mais arejada era só uma horinha na parte da manhã. Agora, depois da transferência, aí já é mais tranquilo assim a nível de ar, mais arejado, não precisa ficar dentro da cela o tempo todo, depois de um mês e pouquinho eu comecei a trabalhar lá dentro.

UOL - O que você fazia lá?

Robson Oliveira - Lá tem vários setores de trabalho. Quando nós chegamos, eles perguntam se você quer trabalhar e o que você sabe fazer. Como eu não podia dirigir lá dentro, lá tem uma enorme confecção de roupas, de uniformes para funcionários públicos, vários setores de funcionamento público, e eu acabei caindo nessa parte na confecção.

Reprodução/Instagram

Fernando: contato só pelos advogados

UOL - Como é que você conviveu com todo esse aspecto jurídico, falando com seus advogados e à mercê das mudanças, das leis russas e da decisão de um juiz que era um, depois era outro, houve mudança, como é que foi tudo isso para você?

Robson Oliveira - Foi muito difícil, porque a gente não tem como entrar na cabeça de ninguém, principalmente de juiz, então era uma expectativa muito complicada, às vezes era otimismo, às vezes não tinha otimismo, era só desânimo. O pessoal da embaixada lá me ajudava muito com essa parte psicológica, sempre tentando me levantar, me dando esperança de sempre acontecer alguma coisa positiva.

UOL - Você chegou a perder a esperança em algum momento, Robson?

Robson - Em momento algum, porque eu era e sou inocente, então, como eu já falei também, tinha que acontecer alguma coisa para eu sair de lá.

UOL - Qual é o seu sentimento hoje com relação às pessoas que causaram essa situação e que não assumiram, no caso específico, uma delas em especial o dono do medicamento em momento algum assumiu. O que você sente com relação a essas pessoas?

Robson - São pessoas covardes, pessoas que olham para frente e só veem a ponta do nariz deles, acham que tudo vai acontecer no tempo e do jeito que eles querem. Pessoas que não têm nenhum tipo de sentimento por outro ser humano, não têm consideração nenhuma, só pensam neles, são egoístas.

UOL - Você finalmente voltou ao Brasil, Robson, e o que o Fernando e a família dele fizeram por você depois de sua chegada ao país, agora no começo de maio?

Robson Oliveira - Nada.

UOL - Não te procuraram, não conversaram, não entraram em contato por intermédio de advogados, nada?

Robson Oliveira - Não. Procuraram sim o Olímpio [advogado], mas não chegaram a nenhuma conclusão até agora.

UOL - Você chegou a receber algum salário do Fernando, Robson, pelo seu trabalho? E quanto ele te prometeu pagar por mês, você pode falar?

Robson Oliveira - Eu recebi lá um primeiro salário no primeiro mês, que foi o único mês que eu trabalhei, mas a promessa era de um salário de R$ 6 mil.

UOL - Eles honraram isso? Como é que isso ficou?

Robson Oliveira - Como trabalhei um mês só, eu não recebi os R$ 6 mil, alegaram que não tinha ninguém na casa, que só tinha eu e a minha ex-esposa na casa, enfim, então eles pagaram a metade nesse um mês que eu trabalhei na casa. Depois eu não recebi mais nada, porque eu fui preso.

Vou ser eternamente agradecido ao presidente Jair Bolsonaro pelo que ele fez, independente de ter sido mais tarde ou mais cedo, mas em relação ao que o jogador fez, 'foi até onde pôde', isso não é verdade, porque ele poderia ter ido até o tribunal, depor pessoalmente, olhando para a juíza, para ele falar de quem eram os remédios, como foi posto na mala, toda a real história.

Sobre a intervenção do presidente

E ele prestou um depoimento mentiroso no qual ele disse que não me conhecia, depois corre lá para a China e fala que o remédio era dele? Quer dizer, isso não é ir onde pôde, onde podia ir. Ele poderia ter ido no tribunal, enfim, a família dele poderia ter ido no tribunal e falado a verdade sobre a situação, eu tenho certeza que seria bem menos complicado para mim.

E a mágoa pelo papel de Fernando

Fernando Frazão/Agência Brasil

Malas já chegaram lacradas ao aeroporto para Robson

Mauro: A mala onde estavam os medicamentos, como é que ela foi levada até vocês dois antes? Foi no aeroporto que entregaram ou foi antes?

Robson Oliveira - A mala, na verdade, eu só pus a mão na mala para colocar na rampa de embarque, porque o motorista da família aqui no Rio, na verdade o motorista da mãe dela levou as malas, lacrou as malas com aquele plástico fininho que tem no aeroporto e levamos até a rampa e eu embarquei. Mas a informação que eu tinha antes era que eram roupas e alimentos.

UOL - Você já tinha feito alguma viagem para o exterior, vocês dois?

Robson Oliveira - Não, eu nunca saí do Brasil antes.

UOL - Quando a gente viaja, evidentemente quando a mala está etiquetada no nome da pessoa, ela assume toda a responsabilidade. Você confiou nas pessoas e te faço a pergunta, você tinha noção do que estava acontecendo? Alguém te orientou sobre isso ou simplesmente lhe deram a mala e falaram 'leva a mala', como se fosse uma coisa simples?

Robson Oliveira - Simplesmente me deram a mala, como eu falei, botei a mão na mala na rampa de embarque somente.

Reprodução/Facebook

Os planos para voltar a uma vida normal

UOL - Tem dormido bem, Robson?

Robson Oliveira - Ainda não. Nem dormindo e nem comendo.

UOL - Qual tem sido assim a situação de mais dificuldade para você nessa retomada à vida, tão difícil?

Robson Oliveira - Poxa, tem bastante coisa complicada. Por exemplo, dormir eu não estou dormindo, durmo duas ou três horas por noite, eu fico muito sozinho dentro de casa. Psicologicamente, não estou bem.

UOL - Você sente algum medo?

Robson Oliveira - Não, medo não, eu não costumo sentir medo. Até porque eu não tenho o que temer

UOL - Fora essa situação, de dificuldade para dormir ou se alimentar, como que são os seus dias? Você está reencontrando pessoas, retomando atividades que você tinha antes, como é que você está vivendo o seu dia a dia aqui no Brasil?

Robson Oliveira - Às vezes encontro pessoas que se sensibilizaram com a situação, pessoas que eu conheço, pessoas que eu não conheço também às vezes me reconhecem na rua, vêm falar comigo, me dão felicitações pela vitória. Esse apoio da população está muito legal, muito carinhoso da parte deles.

UOL - Você já está estabelecendo planos para você? Planos de vida, trabalho, o que você está pensando?

Robson Oliveira - A gente sempre pensa, mas não botei nada em prática.

Alexandre Vidal/Flamengo Alexandre Vidal/Flamengo

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