Corações no saibro

Adversário espanhol conta bastidores da final que deu o tri de Roland Garros a Guga, há exatos 20 anos

Igor Abreu Colaboração para o UOL, em Ribeirão Preto Gamma-Rapho via Getty Images

Há exatamente 20 anos, em 10 de junho, Gustavo Kuerten conquistava o tri em Roland Garros. A data, lembrada com carinho pelos fãs do ex-tenista brasileiro, não traz boas recordações a Àlex Corretja, espanhol derrotado naquela final.

Sob olhares de 15 mil pessoas que lotaram a quadra Philippe Chatrier, a principal do complexo esportivo parisiense, o então cabeça de chave número 13 até largou na frente na decisão, com 6/7 (3-7) no primeiro set. No entanto, Corretja levou a virada nas parciais seguintes (7/5; 6/2; 6/0), após o favorito ao torneio protagonizar mais uma de suas atuações memoráveis, daquelas que já haviam encantado a torcida francesa nos títulos anteriores em 1997 e 2000.

"Lembro que o público 'adotou' o Guga porque ele desenhou um coração na quadra quando ganhou do (Michael) Russell [referência ao gesto feito pelo brasileiro depois de salvar match point nas oitavas]. E esse foi o 'problema' do torneio: o Russell tinha que ter ganhado do Guga, e isso seria melhor para todos", brincou Corretja.

O ex-número 2 do mundo também relembrou um dos pontos-chave da final: um break point desperdiçado por ele quando o placar marcava 5/5 no segundo set. Momentos antes, chovia em Paris, e um forte vento já havia levantado o saibro francês durante o tie-break da primeira parcial.

"Ventava muito nesse dia, e isso era melhor para mim, porque nivelava o jogo. Quando fiz 7/6 no primeiro set, pensei que meu ataque estava perfeito. Já tinha uma hora de partida, e o Guga estava sem muita confiança. No segundo set, eu tive um break point acima, mas aí o Guga se recuperou e foi um momento importante no 5/5: errei um backhand por muito pouco na paralela."

O catarinense ainda contou com a ajuda da fita e fez 6/5. Sacando para igualar o número de games, Corretja alegou ter sentido o "peso" de quase abrir 2 sets a 0.

"Aí o mundo caiu sobre mim. Perdi o game e o segundo set. Não me pergunte por que me senti tão para baixo, mas foi uma sensação muito difícil de digerir, estava fazendo uma partida muito boa. O Guga começou a se soltar e, no terceiro set, ele ficou um pouco acima de mim. Foi aí que senti que estava perdendo. Saí derrotado da batalha e me entreguei à guerra. E isso não se pode fazer numa partida de tênis."

A decisão, com direito a "pneu" (6 a 0) na última parcial, durou 3h12. Guga, então número 1 do mundo, era coroado o rei do saibro de sua geração.

Gamma-Rapho via Getty Images

"Senti que nunca venceria Roland Garros"

Em entrevista exclusiva ao UOL Esporte, Àlex Corretja resgatou os sentimentos sobre aquela final de Paris e definiu aquela derrota diante do brasileiro como a mais "dura" de toda a carreira no circuito profissional da ATP.

O espanhol ainda comparou o vice-campeonato de 2001 ao de 1998, também no Aberto da França, quando foi batido pelo compatriota Carlos Moyà.

Contra Moyà eu não estava preparado. Era a minha primeira experiência numa final de Grand Slam e já estava contente por ter chegado à final. Contra Guga senti que não venceria Roland Garros. Pensei: 'nunca vou ganhar, pois sempre haverá alguém superior a mim no saibro em melhor de cinco sets'. [...] Foi uma final bonita, mas acredito que foi a derrota que mais me doeu na carreira.

Àlex Corretja

Nigel Marple/Getty Images

7 a 2 para Guga

Ao todo, Gustavo Kuerten e Àlex Corretja se enfrentaram nove vezes profissionalmente, com sete vitórias para o brasileiro.

Analisando o retrospecto desfavorável, Corretja disse que ele e Guga possuíam características semelhantes dentro das quadras. Mas, conforme as próprias palavras do espanhol, o adversário era como sua versão "aperfeiçoada".

"Meu backhand fazia muito dano aos adversários, mas com Guga sentia que nem tanto. E ele entrava e mandava na paralela. Guga fazia mais aces e tinha um saque melhor do que o meu. Minha direita era muito pesada, mas não era potente. A de Guga era. Acredito que me mexia melhor e, taticamente, jogava muito bem, com um bom voleio. Mas para deixar ele desconfortável não era o suficiente."

Ele era como um espelho meu, só que melhorado. E isso, quando se está em quadra, traz uma sensação muito ruim.

Àlex Corretja

Mas Corretja venceu "batalha" de Porto Alegre na Davis

A primeira partida entre Guga e Corretja aconteceu em abril de 1998, pelas oitavas do Grupo Mundial da Copa Davis, em um estádio montado em meio ao Parque Moinhos de Vento, em Porto Alegre.

À época, o ex-número 1 da ATP tinha apenas 21 anos e já havia conquistado o primeiro Slam. No quarto jogo, Guga acabou derrotado por 3 sets a 1, parciais de 6/3; 7/5; 4/6; 6/4. Para manter a "Armada Espanhola" viva no confronto, porém, o então sétimo colocado do mundo teve de superar o "caldeirão" gaúcho e as provocações do público local, estimado em 13,5 mil torcedores.

Além de Guga, o Brasil também estava representado por Jaime Oncins, Fernando Meligeni e André Sá, enquanto Julián Alonso, Javier Sánchez e Carlos Moyà eram os outros tenistas da Espanha.

"A equipe brasileira era muito forte. O parque onde jogamos tinha uma quadra muito quente, e a torcida estava perto da quadra [de saibro]. [...] Nunca tinha jogado contra o Guga, e a quadra estava muito rápida. Entendi que era uma partida difícil, mas que poderia ganhá-la. E ganhei. A torcida era muito próxima e falava coisas como: 'você vai perder'; 'você é ruim'".

Com o triunfo de Corretja sobre Guga, a Espanha igualou o placar em 2 a 2, forçando o quinto jogo. A vaga na fase seguinte acabou ficando com os visitantes após Moyà derrotar Meligeni, por 3 sets a 0 (7/6; 6/2; 6/2).

"Realmente foi um ambiente muito difícil para mim e para todos, mas uma experiência muito boa, porque jogar em outros lugares depois parecia muito tranquilo, sem aquela pressão do público", recorda.

No ano seguinte, em 1999, o Brasil daria o "troco" na Espanha ao vencer por 3 a 2, fora de casa, em Lérida. O encontro também foi válido pelas oitavas da Davis.

Art SEITZ/Gamma-Rapho via Getty Images Art SEITZ/Gamma-Rapho via Getty Images

A relação com o brasileiro

Ainda na entrevista, o ex-tenista da Espanha afirmou que mantém uma boa relação com Gustavo Kuerten, apesar de ambos se falarem esporadicamente.

Em novembro de 2011, quando já estavam aposentados, Guga e Corretja reeditaram a histórica final do Aberto da França numa exibição do Claro Rio Champions, no ginásio do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro (RJ). E, assim como em 2001, o brasileiro também levou a melhor: 6/3; 3/6; 10/7.

Já em junho do ano passado, eles se encontraram em uma live. A conversa também contou com a presença do sueco Mats Wilander, ex-número 1 do ranking mundial.

"Para mim, o Guga sempre foi uma referência. [...] Por isso, a minha relação com ele sempre foi muito boa, assim como com seu irmão [Rafael Kuerten], com sua mãe [Alice Kuerten] e com sua avó [Olga Schlöesser, que morreu em 2016, aos 94 anos]. Me lembro que ela [Olga] também vinha aos torneios. Era muito bonito de se ver."

"Temos uma grande amizade, mas não é uma amizade do dia a dia. Tenho mais amizade com o (Fernando) Meligeni. Nos seguimos no Instagram, fazemos lives. Com o Guga é certo que a relação é boa, mas não temos muito contato. Mas, sempre que nos vemos em Paris, nos abraçamos e perguntamos sobre os familiares."

Divulgação

Imaginando Guga x Nadal

Corretja também palpitou sobre quem venceria em um hipotético confronto entre Rafael Nadal e Gustavo Kuerten em Roland Garros - dois gênios do saibro.

Apesar de ter se profissionalizado em 2001, o maior campeão do Slam francês, com 13 títulos, nunca enfrentou o "Surfista do Saibro" no circuito profissional. Enquanto Nadal estava em ascensão, Guga enfrentava problemas físicos que o levaram à aposentadoria, em 2008.

"Para mim seria a melhor partida da história de Roland Garros. Acredito que o jogo do Nadal cansaria muito o Guga, mas o Guga teria um backhand muito bom para jogar na paralela, dentro de quadra", comentou Corretja.

"Problema quando se joga contra o Nadal é ficar atrás de quadra. Creio que seria 65% a 35% ou 60% a 40% para Rafa, porque Nadal é o melhor da história e Guga foi um dos melhores do mundo [sobre o saibro]. A diferença entre Rafa e os demais sempre foi muito grande. Creio que ele teria mais vitórias", acrescentou.

Clive Brunskill/Getty Images Clive Brunskill/Getty Images

Existem novos Gugas?

Por fim, o espanhol avaliou quais tenistas do atual circuito têm características semelhantes às do pupilo do técnico Larri Passos.

Para Corretja, o austríaco Dominic Thiem, duas vezes vice-campeão em Roland Garros e vencedor do último US Open, é quem apresenta o estilo de jogo mais parecido com o de Guga.

O espanhol fez, ainda, uma ressalva às características de Stefanos Tsitsipas, grego que aparece na quinta posição do ranking.

"Acredito que, pela potência [dos golpes] e pela forma de jogar, o Thiem se aproxime um pouco. O Thiem utiliza mais a mão, enquanto o Guga utilizava mais as pernas. Mas, no backhand, tem algumas semelhanças. Não é exato, mas tem um perfil parecido. Por exemplo, o Tsitsipas sobe mais à rede do que o Guga, mas tem uma direita muito boa e um backhand forte, com algumas semelhanças, também."

Reprodução

Fora das quadras

Nascido em Barcelona, Àlex Corretja Verdegay anunciou aposentadoria em 2006, aos 32 anos. Durante os 15 anos de carreira, alcançou 20 títulos no circuito da ATP: 17 em simples e outros três nas duplas. Dentre as principais conquistas estão a Masters Cup de 1998 (atual ATP Finals), Copa Davis e Indian Wells - os dois últimos em 2000.

Após os dois vice-campeonatos em Paris, Corretja não disputou nenhuma outra final de Grand Slam.

Entre 2008 e 2013, ele atuou como treinador, chegando a comandar temporariamente o britânico Andy Murray, que mais tarde alcançaria a liderança do ranking mundial, e a ser o capitão da Espanha no vice-campeonato da Copa Davis de 2012.

Hoje, aos 47 anos, Corretja atua como comentarista nas redes espanholas de televisão Eurosport e TVE!, na cobertura do tênis internacional.

Al Bello/ALLSPORT Al Bello/ALLSPORT

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