A fé do Bronx

Enquanto Charles virava a luta e se tornava campeão do UFC, mãe evitava comemorar antes do fim da oração

Brunno Carvalho Do UOL, em São Paulo Icon Sportswire via Getty Images

Sempre que o Charles viaja, fico cuidando da casa dele. Dessa vez estávamos eu e meu filho mais novo, o Hermison, lá. Ele na sala e eu, no quarto. Faz tempo que não vejo mais as lutas dele. Vou para o meu quarto, dobro meu joelho e fico orando e pedindo a Deus pra que meu filho não se machuque, nem machuque o adversário.

A gente não quer ver o filho batendo e muito menos apanhando, né.

A última vez que assisti a uma luta do Charles foi contra o Max Holloway [em 2015], que ele machucou o pescoço. Meu Deus do céu, ali foi a morte pra mim. Eu questionei muito com Deus, peço perdão até hoje. É que não tinha ninguém pra gravar, mas eu me transformei de tão nervosa que fiquei naquele dia. Depois que soube que o Charles estava bem, pedi para Deus acalmar meu coração.

Foi quando eu me decidi: a partir de hoje, não fico mais nervosa, nem vejo nenhuma luta dele mais. Agora, ganhando ou perdendo, eu só agradeço. Se tiver luta no Brasil, eu estou lá. Mas assim que ele entrar e cumprimentar, eu dobro meu joelho, viro de costas e não vejo até acabar.

Na luta de sábado, eu estava ajoelhada orando quando meu filho entrou correndo no quarto. Ele gritava, me puxava, me puxava. E eu fazendo com a mão para ele esperar. Eu tinha que terminar a minha oração, né! Não podia me levantar.

Depois que terminei, desci as escadas com tudo e ficamos gritando igual bestas nós dois. Não vou dizer que não chorei, mas foi um choro de felicidade, de calma. O que eu mais queria era que meu filho realizasse os sonhos dele. Não tenho palavras pra minha felicidade.

Ozana Oliveira, mãe de Charles "Do Bronx" Oliveira

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Pego na mentira

Charles sabia desde o início que para seguir a vida no MMA precisaria convencer a mãe. Ver o filho levando socos na cara não era uma coisa que deixava dona Ozana muito tranquila. Mas, apoiado pelo pai e pelo treinador, ele optou por um caminho mais perigoso antes de sua primeira luta amadora, em 2007.

Ele saiu de casa na Baixada Santista dizendo que ia treinar, quando na verdade estava partindo para o Rio de Janeiro. Quando voltou, nem a medalha no peito aliviou. "Rapaz, quando ele voltou, que falou que ganhou a luta, a mulher ficou brava, viu? Brava comigo, brava com ele, brava com o treinador. Ficou uns dias sem falar com a gente", relembra o pai Francisco Antonio.

A tecnologia foi aliada dos três no plano. Como Ozana não tinha celular, ficava mais difícil descobrir onde o filho estava. "Eu ficava achando estranho que estava demorando pra eles voltarem."

Foram duas semanas de silêncio total em casa. "Parecia gato e rato. Ele ficava: 'mãe, a senhora não vai falar comigo?' e eu nem respondia." Quando o castigo passou, os dois se sentaram para conversar. Impedir o filho de lutar já estava claro que seria algo impossível.

"Eu expliquei pra ele que o problema era a mentira. Ele tinha que ter me avisado, mesmo que a gente brigasse, porque aí a gente se senta para conversar e resolve. Ele disse que gostava muito de lutar. Então falei para ele levar fé e ver no que ia dar. Aí começou e não parou".

Charles se profissionalizou em 2008. Depois de 12 vitórias consecutivas em eventos brasileiros, foi contratado pelo UFC. "Aí foi só felicidade", completa o pai.

Reprodução/Instagram Reprodução/Instagram

O menino da favela

Charles não esconde suas origens no Guarujá, litoral paulista. O novo campeão teve uma infância difícil com os outros dois irmãos, enquanto o pai ia para a feira livre e a mãe saía às 4h30 para trabalhar como empregada em até três casas por dia. Mesmo a um oceano de distância, foi "favela" a primeira coisa que disse quando recebeu o cinturão.

"Favela, mais uma vez nós vencemos. Podem chorar, mas chorem de alegria. Porque ele [cinturão] está com a gente hoje", avisou.

O distrito de Vicente de Carvalho ainda abriga muitos dos familiares de Charles. Ele mora ali perto, mas em uma casa mais confortável do que a em que cresceu. Assim que Michael Chandler desabou e a vitória foi confirmada, a vizinhança explodiu como final de Copa do Mundo. "Era fogo para tudo quanto é lado, criança gritando, buzina de carro. Você não tem noção", conta Ozana.

Diagnosticado com febre reumática e sopro no coração aos 7 anos, Charles entrou no esporte após os pais não aceitarem a previsão dos médicos de que ele deixaria de andar. Com poucos meses no jiu-jítsu, conquistou seu primeiro torneio regional e não parou mais.

"O Charles é o campeão da vida. Ele é um cara diferente, um cara humildade. Quando ele fala 'favela', é porque ele é mesmo", explica o pai.

Quando ele vem pra cá, é pé no chão e sem camisa. É um menino do povo".

Carmen Mandato/Getty Images Carmen Mandato/Getty Images

Aposta certeira

Charles parecia uma criança que acabara de ganhar o brinquedo que pediu na cartinha para o Papai Noel no meio do octógono em Houston (EUA). Após ser anunciado como novo campeão dos leves no UFC, o brasileiro saltitou pelos oito lados com lágrimas nos olhos e um sorriso que não sumia em momento nenhum.

A vitória sobre Michael Chandler no sábado passado veio de virada. No primeiro round, o brasileiro quase foi nocauteado ao receber 21 socos na cabeça. Mas resistiu. Na volta, mandou um golpe certeiro no rosto do norte-americano, que balançou e pareceu um animal ferido na savana.

Mesmo sem coragem para assistir ao combate pela TV no Guarujá (SP), dona Ozana sorriu quando soube o resultado. Além de ver o filho campeão, ela acertou que a vitória viria no segundo round. "Eu queria que fosse com alguma chave, mas foi por nocaute. Mas falei que não ia passar do segundo round".

O pai Francisco Antonio acompanhou a luta do sítio do filho em Sete Barras, interior de São Paulo. Ele não acertou o resultado exato, mas prevê uma longa dinastia do filho. "Daqui pra frente, quem entrar na reta do Charles vai receber pancada".

Podem se preparar, porque para tirar esse cinturão do Charles vai ser difícil. Se eles treinarem por uma hora, a gente vai treinar mais de 20."

Francisco Antonio, pai de Charles do Bronx

Charles do Bronx vence Michael Chandler e conquista o cinturão do UFC

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