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Primeiro a chegar, discreto e humilde "até pisar no calo": o Kobe que os jogadores brasileiros conheceram

Talyta Vespa Do UOL, em São Paulo Lisa Blumenfeld/Getty Images

"Jefferson, você vai entrar."

"Beleza, cara. No lugar de quem?"

"Do Kobe Bryant."

"Meu coração disparou. Minhas pernas tremiam tanto que eu não conseguia tirar os pés do chão. Comecei a suar frio. Parece exagero, mas volto a sentir tudo isso sempre que me lembro desse dia. Foi minha estreia em campo pelos Lakers, time que tinha acabado de conquistar o tricampeonato na NBA. Minha estreia foi na substituição do maior nome do basquete da época. Você tem noção do peso disso?"

Com a voz trêmula, Jefferson Sobral, ex-atleta e hoje pastor de uma igreja evangélica em São Paulo, relembra sua estreia pelo Los Angeles Lakers, aos 22 anos, lá em 2003. A experiência de jogar no então melhor time do mundo durou alguns meses. Dela, ele conta, em entrevista ao UOL Esporte, a melhor lembrança foi o convívio com Kobe Bryant, que morreu neste domingo (26) vítima de um acidente de helicóptero na Califórnia, aos 41 anos.

O relato de Jefferson é um dos que ouvimos de profissionais brasileiros impactados por Kobe para a confecção desse perfil do eterno camisa 24 do Los Angeles Lakers. Confira.

Lisa Blumenfeld/Getty Images

Primeiro a chegar

Sobral conta que conseguiu a vaga no time de Los Angeles quando o pivô Shaquille O'Neal quebrou o dedão do pé. Para o lugar dele, outro grande nome à época, foram feitas seletivas. "Eu me dei muito bem nos testes e consegui entrar. Era um sonho estar ali, principalmente por estar ao lado do Kobe. Ele era um espelho; eu me inspirava nele. Me inspirava muito nele", diz.

No primeiro treino, Sobral diz que a emoção influenciou em seu desempenho. "Quando me vi na quadra ao lado dele, tremi. Nem consegui jogar, tamanha a admiração que eu sentia por ele. Fiquei até pasmo. Eu só o observava: prestava atenção a cada detalhe do que ele fazia, das jogadas que criava, para tentar aprender", conta.

Além da admiração e dos olhos arregalados pelo contato com uma lenda, há vários pontos em comum em comum no discurso dos brasileiros cuja trajetória cruzou com a do ídolo do Los Angeles Lakers: uma imagem de humildade —não confundir com falta de confiança, muito pelo contrário—e o comprometimento ao máximo com sua profissão e o jogo.

Andrew D. Bernstein/NBAE via Getty Images Andrew D. Bernstein/NBAE via Getty Images

"Nos treinos, ele sempre chegava antes da hora. Era o primeiro, antes de todo mundo. Ele fazia tudo com muita intensidade. E, por causa disso, obrigava os colegas a fazerem o mesmo. Todo mundo se sentia um pouco pressionado a se esforçar tanto quanto ele. Por isso o time chegou aonde chegou. Ele elevou o nível dos Lakers a um patamar inimaginável", recorda o brasileiro.

Foram seis meses nos Lakers até Sobral receber a notícia de que seria cortado do elenco, antes de a temporada regular começar. Pouco antes de ir embora, como lhe foi imposto, sobrou um último pedido: "Chamei o Kobe de canto e pedi, por favor, que ele jogasse 'um contra um' comigo antes de eu ir embora". O ex-companheiro de time era dois anos mais velho apenas, mas já era uma estrela global.

"Nossa, é triste lembrar disso e saber que ele não está mais aqui. O Kobe, humildemente, topou. Eu era um garoto desconhecido, de 22 anos. Tinha largado algumas roupas e um par de tênis no cantinho da quadra. Quando fiz o pedido, ele me disse: 'Vamos agora, garoto'. Corri, vesti o tênis rapidinho e fui", relembra.

Óbvio que perdi. Consegui fazer duas cestas, mas tomei uma linda enterrada na cabeça, um toco maravilhoso. Maravilhoso. É o que eu guardo. Foi lindo perder dele.

Jefferson, sobre o 1 contra 1 com Kobe

Garrett W. Ellwood/NBAE via Getty Images

Antes de integrar o elenco dos Lakers, Sobral chegou a treinar informalmente com atletas do Cleveland Cavaliers. Assim como conviveu com outro fenômeno do basquete americano: LeBron James, que, no sábado (25), ultrapassou Kobe e se tornou o terceiro maior pontuador de todos os tempos da NBA. Mas essa convivência foi pouco antes de o astro chegar à liga, ainda que já fosse visto pela mídia e olheiros como um futuro craque. "Treinei com ele. Era como se eu fosse um 'sparring', por um ano e pouco", afirmou.

"Para mim, Kobe é o maior ídolo do basquete. Ele era bem sério e reservado, não conversava fora de quadra, fugia dos holofotes. Antes de ídolo, era atleta. Imagine eu, brasileiro, menino sem noção? Tentava puxar papo o tempo todo com ele, sugar todo o conhecimento que ele poderia me oferecer. E ele via isso, via que eu me esforçava, por isso não se importava em conversar comigo quando eu me aproximava. Antes de ir embora, ele me disse: 'Boa sorte, menino. Você tem muito potencial e talento. A gente ainda vai se enfrentar muito nas quadras'. Infelizmente, não aconteceu".

Noah Graham/NBAE via Getty Images Noah Graham/NBAE via Getty Images
Noah Graham/NBAE via Getty Images

Brasil x EUA

A sorte que Sobral não teve bateu à porta de Guilherme Giovannoni e de mais 11 brasileiros que defenderam a seleção brasileira no Pré-Olímpico de 2007, em Las Vegas. O torneio marcou um processo de retomada da equipe norte-americana, que viria a ganhar as duas edições seguintes das Olimpíadas, em Pequim-2008 e Londres-2012. Bryant era o grande líder do time.

Brasil e Estados Unidos estavam no mesmo grupo pela primeira fase do torneio. Foi uma lavada: 113 a 76 para o protótipo de um novo "Time dos Sonhos" —mais tarde, a seleção verde-amarela seria derrotada pela Argentina, dando adeus à vaga olímpica. Ainda assim, Giovannoni conta, fica a memória de ter enfrentado Kobe. Algo, ao mesmo tempo, prazeroso e desafiador.

"Tinha uma admiração muito grande pelo cara. Ele era extremamente competitivo. Enquanto aguardava um lance livre, me vi lado a lado com o Kobe. O cara era meu ídolo. E eu decidi puxar um papo em italiano, porque sabia que ele falava italiano. E ele me respondeu. Nem me lembro sobre o que conversamos, mas aquilo me marcou tanto... Ele não precisava ter me respondido. Ainda mais no meio do jogo. Mas o fez", relembra.

Tecnicamente, é um dos jogadores mais preparados que o basquete já teve. Acho que se iguala ao Michael Jordan. E, além de tudo, era um cara do bem, humilde, que tratava todo mundo com muita gentileza e respeito.

Lula Ferreira

Nathaniel S. Butler/NBAE via Getty Images

A perseguição

Naquele jogo do Pré-Olímpico de 2007, o técnico da seleção brasileira era Lula. É essa partida, mesmo não vitoriosa para o Brasil, que ele descreve como uma das mais marcantes de sua carreira sob o comando da seleção. O motivo? Kobe Bryant. "A gente sabia que as chances de vitória eram pequenas. Era a maior seleção do mundo", afirma.

"Só que aquele jogo, especificamente, me surpreendeu. O Kobe já era uma estrela. E ele pegou o Leandrinho, que, na época, ainda era um nome desconhecido, e grudou nele. Ele o marcou durante toda a partida. Pensei: 'Que lição de humildade esse cara deu'. Era uma estrela do NBA correndo atrás de um jogador que, apesar de talentoso, não tinha um nome", afirma.

O lado norte-americano da história é o mesmo, aliás. Bryant se voluntariou durante todo o torneio a marcar o melhor jogador adversário, mesmo que fosse à época a grande referência de sua equipe. Pretendia, assim, mandar dois recados: à concorrência, avisando que os Estados Unidos estavam de volta como potência e, principalmente, a seus companheiros: aquele era o trabalho a ser feito. Contra o Brasil, Leandrinho foi o alvo escolhido de sua perseguição.

Lula relembra que, sob o comando da seleção, estudava, ao lado dos jogadores, os passos de Kobe —e de todo o "time gabaritado que tinham os Estados Unidos". "Imagine só marcar um jogador com a qualidade que ele tinha? Era necessário o máximo de atenção. E era isso que eu falava para os jogadores: 'Atenção!'"

"Muitos atletas americanos têm uma soberba muito grande, e o Kobe destoava totalmente desse perfil. Era um jogador que vivia no mundo da NBA, um mundo glamouroso, cheio de dinheiro e ostentação, e não aparentava ter nada disso. Dentro do esporte, ele agia como mais um jogador, e não como a estrela que era".

Estrela e atleta, Lula conta, Kobe reunia as principais características de um bom jogador: talento, humildade e muito, mas muito esforço. "Fará uma falta terrível."

Harry How/Getty Images/AFP Harry How/Getty Images/AFP

"O nosso Jordan"

Entre referências no basquete —e não eram poucas—, o ex-jogador Tiago Splitter destaca a admiração pelo americano assim que começou no basquete. Quando Splitter tinha 15 anos e chegou cedo ao basquete espanhol, Kobe Bryant já era ídolo. Segundo ele, a admiração foi à primeira vista. Jogando, ou fora de quadra. Dez anos depois, eram adversários na liga norte-americana, ainda que os Lakers estivessem em declínio, enquanto o San Antonio Spurs do pivô catarinense seguia brigando no topo.

O interessante é que, para Splitter, o mais natural, pensando em sua posição, seria pensar em Shaquille O'Neal —antigo desafeto e ex-companheiro de Bryant em Los Angeles—como uma referência, por se tratar de um grandalhão. Mas, não. O brasileiro queria saber, mesmo, era de acompanhar os movimentos do ala, do jeito que dava, à distância, numa época de limitações do conteúdo disponível online.

"Eu assistia a jogos da NBA quase diariamente. E o Kobe já era o Kobe. Eu queria ser como ele. Comecei a modelar meu jogo. Assistia aos jogos dos Lakers e anotava todos os movimentos que o Kobe fazia para tentar repeti-los na quadra, no dia seguinte", relembra. "Pescava todas as melhores jogadas e levava-as para meus colegas de time: 'Ei, cês viram o que o Kobe fez ontem? Girou, arremessou e encestou quase caindo. Podemos tentar uma jogada parecida'. E a gente tentava, treinava, tentava...", conta.

Tentava imitar Kobe da mesma forma que ele imitava os movimentos do Jordan. Esse cara inspirou uma geração --não só a minha, mas as que vieram depois. É uma lenda, um cara supervencedor, que queria ganhar de toda forma.

Tiago Splitter

"O Kobe teve uma lesão, machucou o tendão de Aquiles e precisou se afastar. Adivinhe se ele se afastou? Que nada. Chegava à quadra às cinco da manhã, antes do time, e treinava por três horas. Quando os jogadores chegavam, às oito, para que o treino começasse, ele ia embora", relembra.

Splitter fazia parte do time brasileiro ao qual a reportagem se refere acima, que disputou o Pré-Olímpico em 2007 contra a seleção americana. Foi aquele, ele recorda, o primeiro encontro com Kobe na quadra. "Eu o marquei, ataquei contra ele. Estávamos os dois ali, meu ídolo e eu, em posições diferentes, mas no mesmo jogo. Kobe foi o Jordan da nossa geração".

Segundo Splitter, muitas vezes, o jogador assumia uma postura de liderança que superava até os comandos do técnico. "Ainda lesionado e afastado das quadras, Kobe assistia aos jogos e orientava os colegas de time. Os Lakers começaram a perder muito sem ele. E era ele quem cobrava, era ele quem questionava posicionamento. Ele tinha uma liderança, uma força dentro do time, que superava até mesmo a do treinador", afirma.

Arquivo pessoal

O ídolo do ídolo

"Que violência, puta que pariu". O desabafo parte de Oscar Schmidt, lenda do basquete brasileiro e ídolo de Kobe Bryant. "Quando ele me via, abria um sorriso. O olhar dele mudava. Você não consegue enganar o olho. Kobe tinha um carinho muito grande por mim e, eu, por ele. Ouvi de um jornalista ontem, e concordo: ele foi o Jordan de quem não pôde ver o Jordan", conta.

Oscar conheceu Kobe aos seis anos, na quadra, antes dos jogos do All-Star Game da liga italiana de basquete. Ele acompanhava o pai, Joe Bryant, da mesma geração de jogadores de Oscar, em todas as competições. "Antes de o jogo começar, ele entrava na quadra e ficava arremessando bola. E eu olhava para ele e pensava: 'Esse moleque tem alguma coisa de diferente'".

"Só que, quando ele precisava sair porque o jogo estava prestes a começar, Kobe fazia um escândalo. Era sempre um tormento: não queria, de jeito nenhum. Chorava, esperneava, e o pai dele tentando lidar com aquilo, tirá-lo da quadra. Eu dizia: 'Esse não sai daí nunca mais'. Dito e feito", diz.

Chris Covatta/NBAE via Getty Images

Joe Bryant, hoje treinador do clube italiano Solsonica Rieti, insistia para que o filho se apaixonasse por Michael Jordan. No começo, foi difícil. Quando criança, Oscar conta, era do próprio brasileiro que o menino gostava. "Eu jogava com frequência contra o Joe e só ganhava dele. Então, como o Kobe, pequenininho, assistia a todas as partidas, ele começou a gostar de mim, já que eu pontuava muito", ri. "O pai dele ficava puto. Eu também ficaria. Ele me chamava de 'la bamba', que é como é chamado o arremesso de três —eu enchia o saco do pai dele com o arremesso de três".

"A última vez que encontrei Kobe foi no Mundial da China [no ano passado]. Tivemos conversas de meninos, sabe como são conversas de meninos, né? Meninos, quando se juntam, falam um monte de coisa boa, mas um monte de coisa ruim, também", ri. "Nossas conversas davam certo, tudo dava certo entre a gente. Grandes jogadores se admiram mutuamente. Era o que acontecia com a gente", diz Oscar.

Sobre a humildade de Kobe, Oscar concorda? Em partes. "Era humilde o suficiente, mas não pisa no calo dele. Cê acha que eu sou humilde? Sou humilde porra nenhuma. Se começavam a falar mal dele, ele não era nada humilde. O negócio vai embora, mesmo, também sou assim", ri.

A notícia da morte de Kobe Bryant foi recebida com tamanha dor, que, até o momento, não se foi. "É um negócio doído demais. Eu lembro do meu pai, meu pai era meu ídolo. Quando ele faleceu, eu não tinha mais ídolo. Sei que com o Kobe vai ser assim. Não só para a família dele, mas para essa geração de atletas. Dentro e fora do esporte. Ele era um fenômeno."

Jesse D. Garrabrant/NBAE via Getty Images Jesse D. Garrabrant/NBAE via Getty Images

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