Medalha sem pódio

Pioneiras do atletismo brasileiro, equipe do 4x100m feminina de 2008 diz como foi ganhar bronze 8 anos depois

Roberto Salim Colaboração para o UOL Satiro Sodré/COB

Rosângela dos Santos era uma menina de personalidade forte quando chegou aos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008. Tinha muita velocidade e 17 anos. Fechou o revezamento 4x100 do Brasil em quarto lugar, perdendo por centímetros, talvez milímetros, a medalha para a equipe da Nigéria.

"Depois da corrida, quando a tristeza passou, nós comentamos entre nós que se a Rosângela tivesse colocado silicone nos seios a gente ganhava a medalha", relembra, bem-humorada, a velocista Rosemar Coelho, integrante daquela equipe ligeira.

O tempo passou. Yuliya Chermoshanskaya, integrante da equipe russa que ganhou o ouro naquele dia, caiu no doping. A medalha foi retirada das russas e, nove anos depois da competição, a equipe brasileira, com todos os prejuízos possíveis e imagináveis, herdou a medalha de bronze daquela corrida histórica disputada no marcante estádio Ninho de Pássaro.

Aquela foi a primeira vez que mulheres brasileiras ganharam uma medalha em provas de pista, as mais nobres do atletismo. Foi, também, a segunda medalha feminina da história da modalidade no país. As quatro vencedoras, Rosângela, Rosemar, Lucimar Moura e Thaíssa Presti, receberam a medalha no dia 29 de março de 2017. Uma delas, nem mesmo com o bronze no peito, se considera medalhista olímpica.

A história dessa equipe do revezamento 4x100m livre de 2008, que você vai ler agora, é provavelmente a mais revoltante das três medalhas que o Brasil já ganhou por causa de doping — as outras são o ouro de Rodrigo Pessoa no hipismo de Atenas-2004 e o bronze do 4x100 masculino de Pequim-2008.

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"Eu não me considero medalhista olímpica"

"Eu não me considero medalhista mesmo", diz Rosângela, a menina de 17 anos que hoje é uma mulher, ainda de personalidade forte. O que significa que ela ainda vai tentar atingir a condição de heroína olímpica do esporte nacional. Da turma toda, é a única que continua em ação e está se preparando como nunca para brilhar em Tóquio nos Jogos Olímpicos do ano que vem.

Rosângela está em excelente forma e está certa de que ganhará uma medalha olímpica, sim. E que irá recebê-la na pista, como deve ser. O adiamento da Olimpíada a fez mudar alguns planos pessoais, mas o casamento segue marcado para o mês de setembro, com o atleta Jamil James, de Trinidad Tobago. Os dois moram juntos no Rio de Janeiro. Jamil é integrante da forte equipe do revezamento 4x400 de seu país. O casal se conheceu durante treinos nos Estados Unidos.

"Passei esse tempo todo achando que quase tinha ganhado uma medalha. A emoção é daquele momento. E eu saí do Ninho de Pássaro frustrada", explica. Ao contrário de Rosângela, as outras três integrantes do revezamento de bronze já são aposentadas das pistas, são mamães e se consideram, sim, medalhistas.

"Estamos quase com um revezamento de filhotes pronto. Só falta agora a Rosângela", diz Lucimar de Moura, mãe de Ana Júlia, menina que leva jeito para velocista, é claro.

"João Gabriel tem sete meses e gosta muito de futebol", garante Thaíssa Presti, que pretende com jeito encaminhá-lo para o atletismo. O interesse pelo futebol se explica pelo DNA — Thaíssa é filha de Zé Sérgio, ex-jogador do São Paulo.

"A Valentina tem o atletismo no sangue", sentencia Rosemar Coelho, mãe de Valentina, que é bisneta de Adhemar Ferreira da Silva e leva em sua história duas medalhas de ouro.

FABRICE COFFRINI/AFP FABRICE COFFRINI/AFP

A culpa que ela sente

As três mamães valorizam muito o bronze atrasado, fazem uma série de ressalvas, mas nem de longe se sentem como Rosângela. Talvez porque Rosângela ainda tenha chance de buscar a consagração dentro da pista. E, no fundo, sinta-se culpada por ter chegado uma piscada de olhos atrás da atleta da Nigéria, logo depois das belgas — as russas foram as campeãs.

Uma culpa que ninguém na equipe empurra para a sobrinha favorita de Tia Graça, a parente que criou a menina Rosângela e a levou a dar as primeiras corridas numa pista de atletismo. "Esta aqui é a foto da primeira prova que a Rosângela venceu, no estádio Célio de Barros. Ela tinha 9 anos", conta Graça que, além de levar a menina para as disputas, ainda levava lanche, sanduíches e sucos para toda a turminha que participava das competições com a sua sobrinha.

A foto de quase 20 anos, claro, foi tirada no pódio. "O pódio e a medalha são praticamente a mesma coisa", define a tia, o que explica por que Rosângela não se sente uma medalhista. "Não teve pódio lá em Pequim".

No dia em que tudo aconteceu, 22 de agosto de 2008, as quatro integrantes do revezamento estavam exultantes. Pela primeira vez o Brasil ia participar de uma final feminina de revezamento. No dia anterior, o resultado tinha sido sensacional, com a classificação para a decisão e um desempenho incrível de Rosângela.

"Ela era uma menina de 17 anos e nós tínhamos preocupação em cuidar dela. Não deixar que perdesse o foco e nem tomasse refrigerante", relembra Rosemar, que já ia para sua segunda olimpíada.

Julian Finney/Getty Images Julian Finney/Getty Images

Final sem EUA aumentaria as chances

O técnico da equipe, Katsuhiko Nakaya, estava esperançoso, porque quando se chega a uma final, tudo pode acontecer. Ainda mais no revezamento, em que uma falha na passagem do bastão coloca a perder qualquer superioridade de um grupo sobre o outro.

"Em condições normais, teríamos chegado às finais para brigar por uma colocação entre o quinto e o oitavo lugar, mas nas semifinais, a equipe dos Estados Unidos cometeu falhas técnicas e foi desclassificada. Então, nossas chances de pódio cresceram".

Nakaya disse às meninas antes da prova que fizessem o que tinham treinado com tanto afinco. E que se houvesse erros, a culpa seria dele. "Minha missão era diminuir a responsabilidade delas". Sem EUA, o treinador acreditava que a luta pelo terceiro lugar, quem sabe até pela medalha de prata, ficaria entre Rússia, Bélgica e Nigéria. E Brasil.

"Nossas passagens estavam boas, bem treinadas. Nós não tínhamos resultados individuais de destaque, mas poderíamos superar isso com uma passagem perfeita do bastão. Estávamos muito bem treinados. E fomos à luta".

Quem largou foi Rosemar. "O Nakaya me chamava de curinga porque eu poderia largar ou fechar o revezamento. E eu particularmente estava muito confiante, porque em um dos treinos quando chegamos a Pequim, nós vimos que a equipe norte-americana estava assistindo a um treino nosso. Pensamos: estamos bem! E na semifinal, as americanas derrubaram o bastão. E nós pensamos: estamos na decisão, porque fomos melhores que elas. E estando na final, vamos para tudo."

Rosemar passou o bastão foi para as mãos de Lucimar. E Lucimar cumpriu sua missão. "Depois que passei o bastão para a Thaíssa, fiquei acompanhando pelo telão. Na torcida". Thaíssa tinha a esperança de que a façanha da semifinal se repetisse no dia 22. Ela faria a passagem para Rosângela e a mulher mais veloz do Brasil iria disparar e chegaria à frente das adversárias.

EFE/EFE EFE/EFE

A lesão da mais veloz: Rosângela

Mas não foi assim. Thaíssa chegou à área de transição na briga pelo segundo lugar, mas quando chegou perto de Rosângela, "senti que a passagem foi lenta e que ela não acelerou como de costume. Achei que ficamos um pouco para trás".

E Rosângela?

O técnico Nakaya tem a cena gravada como se fosse hoje em sua mente. "Ela vinha se aproximando da terceira colocada e eu pensava: vai passar. Mas faltavam vinte metros quando ela sentiu a perna. Não deu seguimento à arrancada. Encostou e ficou... modo de dizer, ela foi até o fim claro".

Rosângela completou a prova com sacrifício, sem a velocidade habitual, sem sua chegada característica que atropelava as adversárias. "Eu passei a linha achando que tinha ganhado uma medalha, ou quase. Cheguei junto, centésimos de segundo", diz Rosângela.

Mas a dor, a frustração, o quarto lugar. Tudo doía tanto que ela foi parar em uma cadeira de rodas em pleno Ninho de Pássaros, que aplaudia as russas campeãs. "Quando ela pegou o bastão, ela sentiu. Se esforçou, completou a prova, mas ficou bicuda, colocou sobre ela mesma a carga de não ter chegado em terceiro lugar. O corpo sentiu. Ficou com aquele negócio na cabeça que a culpa foi dela, por ter se machucado. Mas tem a foto dela na cadeira de roda após a prova: a dor era grande".

O técnico Nakaya trata de desfazer qualquer mal-entendido. "Ela não tem culpa de nada. Ninguém se machuca porque quer. Faz parte do jogo. A Rosângela sentiu a perna nos metros finais. Se não fosse isso... e é sempre o 'se', a equipe teria subido no pódio sim".

O choro se espalhou pela equipe e Thaíssa lembra que choravam também pela contusão da menina Rosângela: "A medalha estava em nossas mãos e escapou. Muita gente pergunta se não teria sido o caso de não colocar a Rosângela na final, porque ela estaria machucada. Mas não foi isso, não. Ela sentia uma dor controlada, não dava para prever. Tanto que na semifinal, ela correu muito e, com certeza, nos classificamos por causa dela".

Apesar do apoio das companheiras, Rosângela não esconde a frustração até hoje. "Cheguei junto, coisa de centésimos de diferença e sinto uma grande frustração. Não me sinto convencida, não ganhei a medalha na pista, não subi ao pódio, não dei volta olímpica. Por isso não tenho apego a essa medalha".

"Eu não tenho foto no pódio. Não tenho vídeo, entende? Depois de oito anos, a Justiça foi feita com o caso positivo de doping da atleta russa. Uma hora a casa cai. E quando a gente via um corpo diferente entre as competidoras e comentava algo, sempre era sobre uma atleta de lá. Se fosse alguém... era russa. Foi feita justiça como eu disse, mas eu quero buscar minha medalha na pista".

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

Bronze olímpico está ao lado da primeira medalha

A medalha que chegou com oito anos de atraso está, sim, no quadro que a Tia Graça cuida com todo carinho em seu apartamento em Bangu. "A medalha de bronze de Pequim e também a primeira medalha que ela conquistou, com pódio", conta.

"Eu digo a ela que tudo tem o porquê e a hora certa para acontecer. Nada é do jeito que a gente quer. Não teve o pódio em Pequim e no fundo eu não pensava em medalha olímpica com a Rosângela tendo só 17 anos. Na verdade, ela já conquistou tanta coisa e eu guardo tudo com grande carinho. Eu continuo dando toda a força possível, já não levo o suco, o lanche, o almoço para os treinos, mas estou sempre junto, nem que seja em pensamento."

Se para Rosângela a medalha é uma questão mal resolvida, para o seu avô Orozimbo foi a plena realização de um sonho. "Ele se foi aos 97 anos, mas antes disso ela teve muito tempo para colocar a medalha olímpica de bronze em suas mãos. E ele ficou todo bobo com sua neta querida".

Sergio Alberti/FolhaPress e Arquivo pessoal Sergio Alberti/FolhaPress e Arquivo pessoal

Perderam dinheiro sim com a entrega tão atrasada. Não é a mesma coisa que receber a medalha no pódio. O glamour se vai. Em relação ao dinheiro, havia promessas de prêmios, contratos, patrocínios. E isso tudo se perdeu.

técnico Nakaya , sobre o prejuízo financeiro com a entrega de medalha atrasada

Karime Xavier/Folhapress

Prêmio prometido de R$ 500 mil nunca foi pago

Thaíssa Presti sabe bem o prejuízo que isso significou. Ela parou de competir em 2016, quando chegou a notícia de que herdaria a medalha de Pequim. "Eu era da equipe Rede e havia uma promessa de uma premiação de R$ 500 mil. Tentamos negociar depois desse tempo todo, mas não teve jeito, não. Recebemos um prêmio proporcional da Confederação e da BMF [que patrocinava uma equipe de atletismo]. E foi só. Paciência, pelo menos a verdade apareceu. Ficou um sentimento de justiça feita".

Lucimar Moura diz que uma medalha é uma medalha. Mas..."não teve a glória do momento, no estádio, a vibração do público quando a gente passa a linha. O estádio estava lotado e a Mauren tinha acabado de ganhar o ouro. Seria lindo! Uma festa brasileira. Eu ainda sinto a vontade de estar naquele pódio com a equipe toda. E o prejuízo financeiro também, não é? Perdemos a premiação e também o reconhecimento da chegada".

O dinheiro que chegou, Lucimar colocou na poupança, fez algumas reformas na casa em Ipatinga e uma bela festa de aniversário para a pequena Ana Júlia. Para ela, Thaíssa e Rosemar Coelho, a medalha — mesmo atrasada — significa um lugar entre os Heróis do Atletismo Nacional, que assegura um salário mensal em troca de palestras e aulas pelo país inteiro.

Isso enche de orgulho a mãe de Valentina, que aos 6 anos já pinta como futura atleta, se depender da genética. "Eu sou uma mãe atleta e medalhista. E ela ainda é bisneta do grande Adhemar Ferreira da Silva", lembra sempre Rosemar, para quem a medalha trouxe mais alegria do que frustração.

"Eu fiquei triste sim, teve uma sensação de vazio, faltam imagens da conquista. Do pódio. Mas eu amo o esporte, participei de dois Jogos Olímpicos. E a chegada dessa medalha mostrou que a honestidade vem em primeiro lugar. A medalha vem através do suor e não da trapaça. Vejo por esse lado. Veio para as mãos certas, ainda estávamos vivas e junto com as medalhas vieram palestras e empregos."

Mas Rosemar entende o sentimento de Rosângela. "Ela sente muito. Ela não se considera medalhista olímpica porque tiraram o momento do pódio, da volta olímpica. Mas ela ainda terá a chance de buscar esse sonho na pista".

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