O tri na vanguarda

Estudo da Fifa sobre a Copa de 1970 mostra assombro com a seleção fora de jogo: até cooper foi surpresa

Marcel Rizzo Colaboração para o UOL, em Fortaleza Keystone-France/Gamma-Keystone via Getty Images

A Fifa ficou tão impressionada com o desempenho da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1970 que mais da metade de seu Estudo Técnico sobre aquele Mundial no México foi dedicado ao time de Pelé e cia. A equipe que ganhou o tricampeonato não foi de vanguarda apenas com seu desempenho avassalador no torneio. O trabalho começou muito antes de a bola rolar.

Especialistas convocados pela entidade preparam após cada Copa, desde 1966, um relatório sobre a evolução do futebol com detalhes técnicos, táticos e físicos. O de 1970 disseca a preparação brasileira, com enfoque em um aspecto que assombrou os entendidos recrutados pela federação internacional (três britânicos, um alemão, um italiano e um luxemburguês): a preparação física.

Jogadores machucados e fora de forma na Copa de 1966, na Inglaterra, traumatizaram a CBD, a ancestral da CBF, na pior participação do país em um Mundial, o que fez a entidade dar prioridade à preparação física e adaptação à altitude do México para 1970. O UOL Esporte acessou o documento histórico para entender um pouco mais, 50 anos depois, o motivo de aquele time ser tão bom.

Keystone-France/Gamma-Keystone via Getty Images

Nenhum outro país chegou perto de igualar a abrangência e extensão do programa de treinamento e jogos de preparação do que fez o Brasil. Se o sucesso de uma competição final depende disso, então os detalhes dos preparativos do Brasil merecem um estudo cuidadoso

Relatório da Fifa

A programação da seleção

  • Semana 1 - Rio de Janeiro

    Apresentação, exames médicos e testes físicos. Curiosidade: cada jogador hospedado em um hotel diferente.

  • Semanas 2 a 9 - Rio de Janeiro

    Treinamentos físicos, técnicos e táticos, com sessões de médias e longas intensidades; folgas.

  • Semanas 10 e 11 - Rio de Janeiro

    Treinamentos, folgas e viagem ao México.

  • Semana 12 - Guadalajara/MEX

    Adaptação ao fuso horário e início de adaptação à altitude; treinos físicos e táticos.

  • Semanas 13 a 15 - Guanajuato/MEX

    Treinamentos em Guanajuato, a 350 km de Guadalajara, cidade mais alta em reforço de adaptação à altitude.

  • Semana 16 - Guadalajara/MEX

    Preparação em Guadalajara para estreia contra a Tchecoslováquia.

Foram anos de preparação

O documento da Fifa voltou no tempo para exaltar a preparação brasileira para a Copa de 1970. Lembrou que em 1968 o Brasil reuniu seus jogadores por 35 dias consecutivos, quando realizaram amistosos na Europa, no Peru e, veja só, no México. Em 1969, a CBD levou a delegação para pré-adaptação à altitude em Bogotá, a 2.640 metros, até maior do que a que o Brasil encontraria na Cidade do México, se chegasse às finais da Copa.

Eram outros tempos, é verdade. Fazer isso no calendário contemporâneo —no qual até mesmo a convocação para amistosos é complicada e gera polêmicas— seria impensável. Mas, mesmo para os padrões de cinco décadas atrás, a iniciativa foi uma novidade. Ajudava também a concentração dos grandes talentos brasileiros dentro do país.

A apresentação dos jogadores em 1970 ocorreu em 12 de fevereiro de 1970, quase quatro meses antes da estreia contra a Tchecoslováquia em 3 de junho, em Guadalajara. Segundo o documento da Fifa, foram 92 dias de treinamento e 19 de folgas entre o Rio, Guadalajara e Guanajuato, a 350 km da sede principal do time no México e a mais de 2 mil metros de altitude. Chamou a atenção dos especialistas da Fifa o Brasil sempre ter se preparado para a altitude que encontraria na semifinal ou final daquela Copa do Mundo.

"A CBD contratou um dos maiores especialistas em esporte na altitude na época, um argentino. E ele disse que a única maneira de estar adaptado na Copa era ir pro local dos jogos de 20 a 30 dias antes. Foi o que fizemos, Guanajuato não tinha nada na época, hoje cresceu. Ficamos em uma estância. Não era nem um hotel, e deu certo", disse Carlos Alberto Parreira ao UOL Esporte. O técnico campeão do mundo em 1994 era um dos preparadores físicos da seleção de 1970.

A excelente condição física dos jogadores da seleção brasileira, que puderam ser observadas no segundo tempo das partidas, pode ser explicada pelo período de adaptação no México, com os jogadores treinando em altitude boa parte do tempo

Relatório da Fifa

Keystone/Hulton Archive/Getty Images) Keystone/Hulton Archive/Getty Images)

Vamos acordar cedo

Na época, estudos apontavam que os jogadores estariam mais bem preparados para treinos táticos e técnicos pela manhã. A teoria: logo cedo, o cérebro estaria mais descansado para receber informações de posicionamento e jogadas ensaiadas. Os trabalhos táticos, portanto, foram quase todos realizados nos treinamentos pela manhã, seja na preparação ou já durante a Copa do Mundo. À tarde, o trabalho era físico e de recreação.

Hoje em dia essa teoria já não é praticada, alguns preparadores físicos e treinadores preferem trabalhar somente à tarde porque o corpo está mais desperto. Em 1970, porém, o despertar entre 7h e 8h preparava os atletas para treinamentos que normalmente começavam entre 10h e 11h e avançavam ao meio-dia para simular o horário de algumas das partidas daquele Mundial (a batalha da primeira fase contra a Inglaterra e a final frente a Itália começaram ao meio-dia).

"Os jogadores compraram a ideia e isso foi fundamental. Dividimos em três fase: a primeira com carga mais forte, depois diminuímos a intensidade até chegar na fase de manutenção, durante a Copa", contou Parreira.

Os trabalhos táticos consistiam em minicoletivos, com times reduzidos. Muitas vezes a defesa titular enfrentava o ataque titular, afinal que melhor treino para Carlos Alberto, Piazza e outros defensores do que (tentar) parar Pelé, Tostão, Jairzinho e Rivelino?

Peter Robinson/EMPICS via Getty Images

Mas também teve cautela

O documento diz que "os testes prévios mostraram que os jogadores da seleção brasileira estavam em excelente forma muscular para a Copa do Mundo". Mais ou menos. Jogadores como Gerson e Rivelino foram poupados, inclusive em jogos, e havia preocupação da comissão técnica em como a altitude influenciaria na recuperação desses atletas.

Se na preparação o time treinava duas vezes ao dia, com cada treino com cerca de duas horas de duração, durante a Copa o trabalho foi reduzido para que os jogadores não se machucassem (ainda um trauma das lesões de 1966). Os trabalhos da manhã foram mantidos, com intensidade menor, mas os da tarde era substituídos pela recreação. Alguns nadavam, outros andavam de bicicleta e caminhavam e havia também jogos com bola, principalmente um com golzinhos menores que lembravam peladas de rua.

Quem topa um cooper?

Cláudio Coutinho era do Exército e também foi um dos preparadores físicos da seleção brasileira naquela Copa (e seria treinador do Brasil no Mundial de 1978). Coutinho levou para o Brasil um exercício muito utilizado entre os militares, o cooper.

O método criado em 1968 era até simples: o condicionamento físico do atleta era avaliado por meio da velocidade constante que o atleta consegue alcançar em uma corrida.

O uso do cooper chamou a atenção dos especialistas na Fifa, que exemplificaram no documento que os jogadores do Brasil corriam por 12 minutos a cada sessão de treinamento para testar a resistência. E citaram o segundo tempo os duelos com ingleses e italianos, quando o Brasil "matou" as partidas em condições físicas melhores do que os adversários em uma temperatura alta do sol do meio do dia.

"O Coutinho viu o cooper em um congresso militar de fisiologia a que ele assistiu na Europa. Foi revolucionário para a época, poucos conheciam no futebol", disse Parreira.

Pela preparação física excelente, o Brasil chutou muito a gol nessa Copa do Mundo, de qualquer posição do campo e muitas vezes pegando os goleiros adversários desprevenidos. O uruguaio Mazurkiewicz sofreu na semifinal contra o Uruguai, o melhor jogo da Copa

Relatório da Fifa

Keystone/Hulton Archive/Getty Images Keystone/Hulton Archive/Getty Images

Acreditem: Pelé não era o melhor (atleta)

Até 1970, os treinamentos físicos eram feitos em grupo. Raramente se elaborava um trabalho específico para cada atleta, mas isso mudou na preparação para o México. Cada jogador recebia uma carga diferente. Por isso, por exemplo, Gérson e Rivelino tiveram trabalhos mais leves em algum momento durante o Mundial, para não "estourarem".

"Tínhamos uma fichinha para cada atleta, marcávamos ali o treino individual de cada um. Você tem 22 jogadores diferentes, não dá para colocar todos para correr a mesma distância, na mesma velocidade. Isso hoje parece natural, mas naquela épocas não. Era original", disse Parreira.

Outros, corriam, corriam, corriam. Famoso por ter uma preparação física acima da média para a época, o que ajuda a explicar porque é o melhor da história, Pelé não era o mais bem preparado fisicamente daquele time segundo os testes. Quem eram? O zagueiro Brito e o atacante Jairzinho. Fácil explicar portanto porque o Furacão fez gols em todos os jogos daquela Copa.

"Teve um gol [o segundo dos 3 a 1 sobre o Uruguai, na semifinal] que o Jairzinho rouba a bola na nossa área, corre e recebe lá na frente para marcar. Um preparo físico invejável e, veja, com jogos começando meio-dia, era desumano", relembrou Parreira.

Dizia-se antes do campeonato que o Brasil teria uma defesa vulnerável, mas é normal para um time que vai ao ataque com tanta força e eficiência ter em algum momento falha defensiva. Mas diga-se que a defesa brasileira fez excelentes partidas na Copa também

Relatório da Fifa

E um pouco também de psicologia

Não era novidade para a seleção brasileira trabalhar com psicologia em uma Copa do Mundo. Foi usada pela primeira vez em 1958, no primeiro título mundial na Suécia e para superar o trauma da derrota de 1950 para o Uruguai em casa. Em 1970, porém, havia a desconfiança pela pífia campanha em 1966 e como isso abalaria os jogadores.

A avaliação pós-sorteio dos grupos era de que o Brasil tinha caído numa chave terrível, com a atual campeã Inglaterra e a Tchecoslováquia, vice-campeã do mundo oito anos antes. O quarto integrante, a Romênia, havia passado por Portugal, sensação em 1966, nas Eliminatórias. Não seria fácil e como o elenco reagiria a isso?

O Estudo Técnico da Fifa abordou o tema, ressaltando que o longo tempo juntos, quase quatro meses só de preparação, em vez de desgastar o ambiente, acabou ajudando a deixar o grupo próximo.

Os especialistas da Fifa escreveram também que o bom preparo físico, e principalmente a adaptação à altitude e ao calor dos jogos ao meio-dia, deram confiança ao elenco, que estreou na Copa longe de um time atormentado pelo fracasso de quatro anos antes. E a vitória sobre a Inglaterra, 1 a 0 pela segunda rodada, levou essa confiança às alturas comprovada na final frente a Itália.

Heidtmann/Getty Images Heidtmann/Getty Images

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