O pai tá off

Marcos Guilherme conta como manteve saúde mental em pior ano do Santos: desligando celular e fugindo das redes

Gabriela Brino Colaboração para UOL, em Santos Staff Images / CONMEBOL

Sabe aquelas histórias que terminam com a frase lugar-comum "Só quem viveu sabe"? Marcos Guilherme tem uma dessas para resumir como foi o seu 2021. Só quem viveu esse ano no Santos sabe o tamanho da pressão que sofreu. A luta contra o rebaixamento no Paulista e no Brasileiro pegou todos de surpresa, mesmo que o ano anterior também tenha sido caótico.

Mas entre as lutas de Marquinhos, os altos e baixos do Santos foi apenas mais uma. O atacante já sabia o que era enfrentar uma torcida inflamada, os xingamentos nas redes sociais e lidar com seus familiares preocupados. Enquanto o Santos lutava contra o rebaixamento no Estadual, o jogador aprendia que essa era uma luta acima de tudo mental. Quando o time venceu o São Bento e escapou, o atacante reconheceu a dificuldade que teria no restante da temporada. A batalha o tornou frágil e pequeno e o marcou em lugares tão profundos que ele precisou de ajuda para vencer.

Foi o mesmo embate que teve no Internacional, no ano passado, quando em meio a um desempenho ruim, quase sucumbiu à depressão. Enfrentou a vergonha de voltar para casa, abraçou as críticas das redes sociais e teve muita dificuldade para seguir adiante. A internet foi um grande empecilho. Mas no Brasileiro de 21, onde o Santos só escapou da degola na penúltima rodada, ele encontrou um lugar seguro, um lugar onde os boleiros de hoje em dia passam cada vez menos tempo: o mundo off-line.

Fora da internet, sem ver os comentários violentos dos haters, Marquinhos encontrou paz e conseguiu cuidar melhor de sua saúde mental. Em entrevista ao UOL Esporte, o atacante de 26 anos conta o que aprendeu na temporada que passou e como vem ajudando jogadores mais jovens a lidar melhor com a internet.

Staff Images / CONMEBOL

Mano, para! Desliga o celular, você não vai ver nada de bom aí. O que tiver que falar, nós falamos entre nós aqui! Nós resolvemos. O que tiver que melhorar vamos melhorar. Mas o que você ver aí [no celular] vai fazer com que você fique pior do que está agora. É besteira.

Marcos Guilherme , sobre o que disse aos jovens do Santos após derrota na Sul-Americana

Entrevista com Marcos Guilherme

Reprodução
Ataques sofridos por Marcos Guilherme no Internacional em 2020

Ofensas e críticas quase levaram atacante à depressão

Marcos Guilherme viu de perto a ira da torcida nas redes. Ele tinha o hábito de correr ao celular após o apito final para ver a avaliação de seu desempenho. Em dias ruins, era chamado de "pipoqueiro" e ouvia pedidos de "cai fora do meu time". Algumas ofensas, acumuladas, abalaram seu estado psicológico.

O camisa 23 do Santos mudou sua rotina de jogo. Sua primeira regra pós-jogo é não olhar o celular e se afastar das redes. A segunda é supervisionar os mais jovens do elenco. Apesar de se ver em seu melhor momento psicológico, o atacante já tropeçou muito nessa luta mental. Foi a parte que mais o atrapalhou, era como se ele fosse corroído por aquilo que lia. O celular foi seu pior inimigo, e ao ler os comentários ele entrava em um ciclo vicioso.

"Eu procuro passar para os mais jovens um pouquinho do que passei. Isso acabou comigo recentemente, ano passado no Inter. Hoje, vendo tudo que passou, eu estava entrando em uma depressão, com certeza. Quando eu ia treinar, estava mal, em uma situação difícil, eu não queria voltar para casa", admitiu o santista ao UOL Esporte. "Eu tinha vergonha de olhar pra minha esposa e filhos, tudo porque eu não conseguia render em campo. E por ficar lendo coisas que me abalavam, eu estava entrando nessa bolha e não conseguia sair."

O atacante lembrou de um episódio após a eliminação do Santos na Sul-Americana para o Libertad, do Paraguai. Na ocasião, ele aconselhou um colega santista a largar o celular." Estava todo mundo ali bem mal, triste, abalado pelo resultado. Peguei um menino no Instagram. Eu procuro passar isso para os mais jovens para que eles tenham essa mentalidade o quanto antes, vai ser importante para o restante das carreiras deles."

"Se você não tiver bem na sua cabeça, as coisas não acontecem"

Apesar de ser o principal alvo de ofensas, Marquinhos não é o único. Sua família o acompanha e às vezes fica mais abalada do que o próprio jogador. Quando ele está em um mau momento em campo, nem sua esposa Karoline Souza e nem seus filhos Guilherme, de cinco anos, e Pedro, de dois, escapam dos ataques. O atleta se revolta com a facilidade que o internauta encontra para despejar ódio e se esconder atrás de um avatar.

"A rede social dá voz a todo mundo. Se escondem atrás do celular, do computador, escrevem o que querem e não tem consequência alguma. Essa parte mental precisa ser trabalhada. Isso é pouco falado. Ultimamente tem aparecido um pouco mais, como o exemplo da ginasta [Simone Biles] que não conseguiu atuar nas Olímpiadas. Precisamos falar mais disso. A cada dia que passa eu tenho mais certeza de que a parte mental é até mais importante que a física. Se você não tiver bem na sua cabeça, as coisas não acontecem."

Arquivo pessoal
Marcos Guilherme e o amigo Leandro Soares, pastor e cantor

Pastor, amigo ajudou atacante

Quando teve dificuldade para largar as redes e superar a vergonha de retornar pra casa na época que atuou pelo Internacional, Marquinhos recorreu ao tratamento psicológico, mas não teve resultado. Ele então recorreu ao seu amigo Leandro Soares, um pastor evangélico e cantor, que o ajudou a entender o quanto a internet pode ser tóxica.

E mais: o fez perceber que ele pode — e deve — separar sua vida pessoal da profissional. Se ele rende menos do que se espera em campo, precisa se apegar à família e aos amigos para equilibrar seu dia a dia. "Sou um cara um pouco fechado. A pessoa que mudou e fez um "clique" na minha mente foi um amigo, o Leandro Soares. Ele foi a pessoa que mudou meu pensamento de: "Não estou bem no futebol acabou minha vida, não consigo estar bem com a minha família". Não é isso. Esse aqui é meu trabalho, [mas] tenho minha vida fora disso", afirmou o jogador.

"O Leandro conseguiu mudar minha mentalidade com conversas e orações. Me vejo no meu melhor momento. Consegui separar meu trabalho da minha vida pessoal. Hoje em dia eu não paro para ver redes sociais, ver comentários desnecessários", disse.

Ettore Chiereguini/AGIF Ettore Chiereguini/AGIF

Mudança de posição contribuiu para seca de gols

Assim que chegou ao Santos, Marcos Guilherme chamou a atenção por seu poder ofensivo. Em seus primeiros 15 jogos, balançou a rede cinco vezes. "Relâmpago Marquinhos" foi o apelido carinhoso que ganhou da torcida, em referência ao Relâmpago Mcqueen, personagem principal do filme "Carros", em que se destaca por ser o veículo mais rápido em disputas de corrida.

Hoje ele é conhecido como "Coringa", já que atua em qualquer posição que o treinador o coloca. Ala, meia, ponta, falso 9... Marcos Guilherme já explorou todos os setores do Santos, o que, consequentemente, o afastou dos gols. Foram apenas seis na temporada.

"Eu estava incomodado com isso. Eu cheguei, era um gol atrás do outro, depois deu essa estacionada. Isso já estava me tirando o sono isso, mas acho que consegui ajudar de outras maneiras. Não me sinto sobrecarregado [por atuar fora de posição], mas precisava disso para me dar esse alívio", conta.

Guilherme Drovas/AGIF Guilherme Drovas/AGIF

Emboscada a Tardelli abalou elenco

Quando questionado sobre a temporada, Marcos Guilherme mencionou um episódio que abalou o elenco do Santos em 2021: a emboscada de torcedores sofrida por Diego Tardelli em setembro. Na ocasião, o atacante chegou a ser ameaçado de morte e teve o carro depredado. Depois, acabou deixando o clube.

"Vendo a situação do Tardelli, realmente mexeu com todos. Imagino você ir pra sua casa e ser perseguido. Lógico que nesse momento turbulento vi muitos jogadores sentindo, assustados e abalados. Principalmente os mais jovens. Sobretudo pelas redes sociais. Você vê xingamentos, pessoas te humilhando. Se o jogador não estiver com a cabeça boa, acaba influenciado", disse ele, sobre o desempenho da equipe.

O atacante não escondeu o incômodo com o tratamento sofrido pelo Santos por parte da mídia. O time teve quatro técnicos ao longo do ano —Cuca, Ariel Holan, Fernando Diniz e Fábio Carille. O atacante ressaltou a pressão sobre os jovens, que foram acionados com frequência durante, já que o Santos não teve reforços de peso. Kaiky, Gabriel Pirani, Vinicius Balieiro, dentre outros meninos, tiveram de lidar com a pressão de não cair e também de conseguir demonstrar o futebol durante as oportunidades que tiveram.

"Acho que precisamos ter muito cuidado e ser um pouquinho inteligentes para poder analisar todos os fatos que ocorreram na má fase. O Santos teve o momento no Campeonato Paulista de quase rebaixamento, mas conseguiu escapar. A gente teve pouco tempo pra entender melhor a nova filosofia [dos treinadores que chegavam]."

Precisamos de um pouquinho de inteligência na hora de cobrar e analisar a situação. Ângelo com 16 anos, Kaiky com 17. Imagine um jogador dessa idade lutando contra rebaixamento, com a torcida cobrando. Sai jogador, entra treinador. Entra jogador, sai treinador. Fica complicado ter um conjunto para brigar por coisas grandes.

Marcos Guilherme, sobre as cobranças na imprensa

Arquivo pessoal

Jogador já trabalhou como roupeiro e gandula na várzea

O amor de Guilherminho, como era conhecido pelos amigos quando criança, pela bola começou muito cedo. Era normal vê-lo pular o muro de casa pra ir até o campinho de terra, pertinho dali. Sua mãe, Eva, brigava com o menino de cinco anos para ir tomar banho e jantar porque se dependesse dele passaria a noite jogando futebol

Em Itararé, interior de São Paulo, o garoto era movido pelo esporte por influência de seus tios, Daniel e João, que disputavam um campeonato de várzea com o time "Café Tetra". Marcos Guilherme estava sempre junto. Viajou com o time, já foi roupeiro, gandula e fez de tudo um pouco, só para estar próximo da bola.

Os tios eram uma grande inspiração. Na época, recebia ajuda, conselhos e jogava bola praticamente todos os dias com a dupla. Apesar da pouca idade e estatura, Guilherminho não se importava de jogar com os mais velhos. "Como eu era pequenininho e magrinho, o apelido "Guilherminho" pegou. Até hoje o pessoal de Itararé ainda me chama assim", disse.

"A Eva ficava louca que eu levava ele pra jogar em outras cidades", disse Daniel, tio do atacante. "Aos domingos nós íamos jogar de ônibus e ia o time inteiro, inclusive o Guilherme. Levava água, lanche, bola. E era campo aberto, não tinha alambrado, arquibancada, nada. Era só o campo, em uma fazenda aberta. E quando o time estava perdendo, o adversário dava chutão no meio do matagal. Eu só via o Guilherme correndo no meio da soja para pegar a bola. Ele já nos ajudou a vencer várias vezes por conta da velocidade dele."

Reprodução/Instagram

Pais vetaram viagem a Itália

Marcos Guilherme despontou para o mundo da bola muito cedo. Um dos pontos fortes do menino era sua agilidade e técnica, e isso quase o fez passar um período na Itália jogando futsal. Aos oito anos a proposta chegou, mas seus pais recusaram por acharem muito cedo. O menino bateu o pé para ir.

Na época, ele não entendeu as implicações da proposta. Nem sequer que ir a Itália significava ficar ficar longe dos seus pais. Mas acreditava que teria mais estrutura pra continuar fazendo o que ele mais amava. Hoje ele reconhece que não ter ido foi a melhor decisão possível.

"Eu não cheguei a brigar [risos]. Mas eu lembro de dizer: 'Poxa, pai! Quero ir, é meu sonho, quero ir para lá'. E ele respondeu: 'Não dá, joga sua bola na escolinha.'"

"Vou ser sincero, na época eu até fiquei um pouco bravo [risos] com a situação. Hoje que estou mais maduro, sei com certeza que foi a melhor escolha que meus pais fizeram. Não tinha cabimento nenhum eu, com oito anos, estar em outro país sozinho. Foi uma situação atípica. E era pra jogar futsal, que eu amava. Ainda bem que meus pais não me deixaram ir, porque poderia ser outra trajetória", conta.

Thiago Ribeiro/AGIF Thiago Ribeiro/AGIF

A corrida em direção ao futuro

Para fazer a ala do Santos, correr ao ataque com ar e energia suficiente para recompor a defesa em caso de contra-ataque, Marcos Guilherme tem um segredo: o passado no atletismo.

Na época de escola, o atletismo lhe deu medalhas de ouro nos 200m e 400m livres. Apesar de ter descoberto seu talento de uma forma improvável, ele ainda usa desse artifício para se destacar.

"Na minha escola tinham jogos escolares, e eu me inscrevi pro atletismo. A prova foi bem amadora [risos]. Fiz a inscrição, tinha uma quadra na escola e falaram: 'Quem se inscreveu vai para o final da quadra apostar corrida. Os cinco primeiros que chegarem vão poder competir nos jogos escolares'. Essa foi a seleção", ele conta, rindo. "Descobri meu talento dessa forma. Apostando corrida de um lado para o outro na quadra."

Superada a pressão de 2021 e com o Santos mantido na série A, Marcos Guilherme pode diminuir a passada e respirar um pouco mais aliviado. Agora a luta é pelo futuro dos Meninos da Vila. Contra a opressão nas redes sociais. Contra o celular no pós-jogo.

Ivan Storti/Santos FC Ivan Storti/Santos FC

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