De repente, a Granja Comary

Alline Calandrini quase desistiu por não encontrar time feminino até parar no portão do CT da seleção

Beatriz Cesarini Do UOL, em São Paulo João Miguel Junior/Globo

Quando o inverno de 2005 chegou, a família de Alline Calandrini — recém chegada ao Rio de Janeiro, vinda do calor de Macapá — queria conhecer o frio. Por isso, o destino escolhido para as férias de julho foi a região serrana de Teresópolis. Malas abarrotadas de casacos e cachecóis no carro e pé na estrada. Mal sabiam que o descanso de meio de ano mudaria a vida deles para sempre.

Após uma hora e meia de viagem e prestes a chegar no hotel, o irmão de Alline pediu para o pai Gastão estacionar o carro. Ele avistou um grupo de meninas jogando futebol em um grande gramado no horizonte da estrada: era a seleção brasileira feminina treinando na Granja Comary.

"Como assim? Existe um time de mulheres jogando futebol?", disse Alline.
"É a chance da Alline. Vamos para lá agora", pediu o irmão.

Esperançoso e ainda sem saber o que era aquele lugar, Gastão mudou o rumo do trajeto e partiu para o portão da Granja Comary. Todos foram barrados em um primeiro momento. Inconformado, o pai de Alline contou uma história um tanto quanto exagerada: falou que ele e a família viajaram de Macapá em busca daquele local por uma oportunidade para a filha que sonhava em viver como jogadora de futebol.

"Após muita insistência do meu pai, os treinadores da seleção feminina vieram conversar conosco e me convidaram para participar de uma atividade no dia seguinte. Enfim fomos para o hotel cheios de empolgação. Quando amanheceu, voltamos para a Granja. Claramente, eu não encostei na bola, mas foi aí que começou a minha história no futebol feminino".

João Miguel Junior/Globo

O sonho

Alline Calandrini nasceu em Macapá, capital do Amapá, na região norte do Brasil, e sua brincadeira preferida sempre foi o futebol: na escola, na calçada ou no campinho do Clube dos Oficiais, com os amigos do pai Gastão. Em festas de fim de ano, enquanto as meninas ensaiavam novas coreografias das músicas da moda, Alline se juntava aos primos para jogar bola na rua.

"Minha avó falava: 'Sai do meio dos moleques, para de jogar bola'. E meus pais sempre respondiam: 'Não, deixa ela aí. Ela gosta disso, ela vai ser atleta'. E quando cresci, de fato fomos em busca de escolinha só de meninas, mas não existia. A gente não tinha conhecimento de futebol feminino no Brasil", relembrou Alline.

A esperança dos pais de Alline era em uma jovem conterrânea que havia deixado o Brasil para jogar vôlei nos Estados Unidos. Eles decidiram enviar um vídeo da filha jogando futebol na tentativa da atleta mostrar para algum treinador norte-americano de futebol. Não funcionou. Até hoje a família não sabe nem se a garota assistiu às imagens.

Preconceito afasta chance

Com o passar dos anos, jogar com os meninos ficou complicado para Alline, porque sua força física começou a destoar. A única chance da atual comentarista do grupo Globo era entrar num time de futebol de salão feminino, mas ela rejeitou a ideia por julgamento e preconceito.

"Sempre me chamavam para esse time, mas com meu preconceito burro, eu não ia por medo de assédio, por medo que as meninas fizessem algo comigo. Eu ainda não tinha me descoberto gay, então eu tinha medo de ser desrespeitada. Evitava esse convívio com as atletas do salão por preconceito idiota, então eu preferia ficar jogando com os meninos.

O pensamento equivocado da ex-jogadora antigamente é, também, reflexo dos ataques que ela sofreu desde criança: tentava se afastar do que as pessoas em volta dela julgavam como um problema. Com o passar dos anos, Alline entendeu que esse medo era inconcebível. Ela se descobriu uma mulher gay e hoje namora a bailarina Stephanie Paula.

"Obviamente, enquanto eu jogava no meio dos meninos, sempre tinha uma piadinha, uma gracinha. Falavam que era mulher macho e sapatão por estar no meio dos meninos. É um fator que faz parte da infância de muitas meninas que jogam futebol: ser chamada de mulher macho. Isso ficou marcado", comentou Alline.

Basquete vira alternativa

Alline perdeu as esperanças de se tornar uma jogadora profissional de futebol, mas não aceitava desistir do esporte. Por isso, ela passou a praticar basquete. Quando ela fez 15 anos, a família precisou se mudar para o Rio de Janeiro, porque o pai militar foi transferido. Lá, ela entrou na equipe do Botafogo e encontrou um time de beach soccer para matar as saudades da bola no pé. O futebol seguiu distante.

"A gente chegou a pesquisar clubes de futebol feminino, porém encontramos o Botafogo e o time de basquete. Então terça e quinta treinava basquete e segunda, quarta e sexta fazia beach soccer, mas não conseguia conciliar com os estudos e tive que escolher. Como não via futuro e perspectiva de fato em competir no futebol no Brasil, eu acabei optando pela bola laranja", relembrou a comentarista.

"Só que minha mãe não deixou. Ela falou: 'Filha, é uma escolha sua, mas você veio predestinada a jogar futebol. É seu sonho desde criança, eu sei que falaram que não tem clubes de futebol feminino aqui, mas acho que vale a pena a gente continuar acreditando. Se você for deixar algo, eu prefiro que seja o basquete, que é uma coisa que veio com um tempo, por sua dedicação ao esporte, mas você nasceu para jogar futebol'", descreveu Alline.

Enfim, a Granja Comary

É aí que entra aquela história lá do início, da Granja Comary. Eis que chegou julho de 2005 e a família decidiu viajar para a serra e conhecer o frio. No meio da estrada, todos se depararam com o CT da CBF e, graças a Paulo Dutra - então diretor da seleção brasileira feminina - Alline, aos 17 anos, teve sua primeira chance de mostrar seu talento a um time feminino. Só que era a seleção brasileira.

"Foi um desastre. Eu mal toquei na bola. Eu não tinha base e nem treinava todos os dias em campo como aquelas meninas. Os treinadores pensaram que eu seria um destaque, por toda a história vendida, mas para não acabar com meu sonho, falaram que dava para ver que eu tinha bom toque de bola e tudo mais", contou Alline.

"Paulo Dutra e a comissão técnica falaram que eu precisava ser lapidada e, para isso, teria que entrar em um time de futebol. Explicamos que sempre procuramos, mas não tínhamos visto nenhum. Aí mencionaram, então, o São Caetano, de São Paulo, e até disseram que poderiam entrar em contato com eles", acrescentou.

Saímos dali da Granja numa felicidade que eu nem consigo descrever. Caramba, a gente vai conseguir realizar o nosso sonho, porque não é só meu, era o sonho do meu pai, da minha mãe e do meu irmão, foi a vida inteira em busca disso. Todo mundo ficou anestesiado e a gente já foi pensando como ia ser"

Alline Calandrini, Ex-jogadora da seleção e comentarista

São Caetano e Juventus

A esperança da família foi renovada. O pai telefonou para Cláudio - técnico do time feminino do São Caetano na época, mas recebeu um balde de água fria. "Ele falou que tinha conversado com o pessoal da CBF e sabia da minha história, só que o clube escolheu acabar com a equipe de mulheres", relembrou Alline.

O treinador aconselhou que os pais levassem Alline até lá de qualquer forma. Além disso, a família tinha uma carta na manga: o Juventus - que não animava muito, porque eles tinham na cabeça que o clube masculino do ABC era grande e, portanto, o feminino deveria ser mais forte também.

"A gente também tinha marcado com a Magali, que era técnica do Juventus e a realidade foi diferente do que tínhamos visto no São Caetano. Tinham meninas mais novas assim como eu na época e no São Caetano somente experientes. Lembro que a Thaisinha [Duarte], Erikiquinha [Alves de Moura] e Kelly [Rodrigues] estavam. Então eu me senti super feliz ali por aquela recepção", comentou Alline.

"A Magali tinha esse dom de lidar com meninas mais novas. Escolhi ficar, para, finalmente, começar minha trajetória no futebol em agosto de 2005. Ao mesmo tempo que ficaram felizes, meus pais choraram muito. Tiveram medo, porque eu sou de família classe média, sempre tive tudo de uma maneira muito fácil: estudo, casa com duas secretárias e, de repente, eu tinha que lavar minha roupa, fazer minha comida, pegar ônibus e ir para escola pública. Mas nunca tive dúvidas", concluiu Alline.

Tatiane Moreno/Band Tatiane Moreno/Band

O início no Santos

Foi Magali quem fez de Calandrini a zagueira que todos conheceram. Mas após quatro meses, essa história se encerrou, porque a técnica decidiu dispensar algumas atletas que participaram de um torneio de várzea sem autorização e a jovem amapaense optou por acompanhar suas amigas.

"Voltei para Macapá e passei a virada do ano lá, mas decidi ir para São Paulo de novo, morando na casa da Érika. Ficamos dois meses sem clube e aí que entrou o Santos na minha vida. Já estava com medo de retornar à estaca zero até que o Cleiton [treinador da equipe litorânea] telefonou para a mãe da Érika, porque a queria no elenco", relembrou Alline.

Érika era um dos grandes destaques do Juventus e a mãe dela topou a proposta do Cleiton, mas deu uma condição: que levasse a Alline junto, num pacote. Ele topou e, após vê-la atuando, disse que "daria um bom banco".

"Fui para jogar de graça. A Érika ganharia R$ 250 por mês. Mais uma vez foi um choque de realidade. O time era da prefeitura. A gente morava no ginásio, dormíamos em beliches espalhados pela quadra. A gente tomava banho no vestiário do ginásio. Íamos de bicicleta para treinar na praia de São Vicente todos os dias, porque não tinha campo disponível", contou a ex-jogadora.

Bongarts/Getty Images for DFB

Alline volta à Granja. Agora como jogadora

Dedicada, Alline logo virou titular. Após quatro meses de treino, ainda em 2006, Alline e a equipe foram disputar um campeonato despretensiosamente. Afinal, elas estavam bem longe das favoritas que formavam o elenco do Botucatu.

"A gente foi passando e chegamos na final: vencemos o Botucatu. E eu me destaquei nessa campanha, joguei muito bem. Acredite ou não, o técnico da seleção brasileira da época estava lá e aí me surgiu a primeira convocação. Muito antes do esperado. Eu tinha quatro meses de Juventus, quatro meses de Santos", exaltou Alline.

Menos de um ano depois, o massagista, da comissão técnica, olhou para mim e falou assim: 'Você não estava aqui fazendo um teste na seleção brasileira? Veio com os teus pais aqui?'

Alline Calandrini, Ex-jogadora da seleção e comentarista da Globo

'Bonitas para conquistarem os velhos'

A campanha das meninas que representavam a cidade do litoral paulista não impressionou somente a comissão técnica da seleção brasileira. O Santos Futebol Clube finalmente resolveu dar uma oportunidade e investir no futebol feminino.

"Começaram a incentivar e nasceu a marca Sereias da Vila. A gente começou a ter uniforme e acesso ao clube. Tiraram a gente do ginásio, colocaram a gente numa casa próxima ao clube e os bons resultados foram aumentando. Fomos campeãs paulistas em 2006 e nos convidaram para receber uma premiação na sede", contou Alline.

Esse dia e a criação da marca Sereias, com calendários de fotos sensuais e entrevistas sobre comportamento é um retrato do que o futebol feminino sofreu e ainda sofre: a sexualização das mulheres. Em uma fala com boas intenções, mas que reflete o preconceito estrutural, o técnico pediu que as jovens do elenco fossem bem arrumadas à homenagem.

"Queriam dar uma medalha de honra ao mérito para a gente. O Cleiton, que era treinador, falava: 'Gente, pelo amor de Deus, vocês têm que estar todas bonitas, de vestidinho, vocês têm que conquistar os velhos, porque eles têm uma imagem deturpada do futebol feminino. Vamos tentar mudar isso'. E todas se arrumaram comigo", destacou Calandrini.

Bob Paulino/Globo Bob Paulino/Globo

Uma montanha-russa

Com o passar dos anos, a marca e o time Sereias da Vila se tornaram uma potência no futebol feminino brasileiro e, em meados de 2008, trouxeram nomes como Aline Pelegrino, Cristiane e Marta. Todas as atletas passaram a receber salário e até ganharam bolsas de estudos na faculdade. Pensando no futuro, Alline decidiu pelo jornalismo.

Cleiton, o técnico, assumiu a seleção brasileira sub-20 e levou todas as suas crias. "A minha base foi mais ou menos essa. Aprendi muito no Santos como ser humano e como atleta", destacou Alline.

"Estava tudo maravilhoso com bons resultados a cada temporada, até que o Santos decidiu acabar com o departamento de futebol feminino em 2011, 2012. Não foi uma derrota só para o Santos ou para nós, representou uma derrota para o futebol feminino", lamentou a atual comentarista.

Todas as meninas decidiram ir unidas para um mesmo time. Arthur Elias — atual treinador do Corinthians — as convidou para entrarem no Centro Olímpico, equipe também paulista. Alline decidiu ir e seguiu evoluindo seu futebol até, anos depois, que retornou ao Santos em 2014 a pedido do então presidente Modesto Roma.

Bob Paulino/Globo Bob Paulino/Globo

Lesão, depressão e virada de chave: Alline jornalista

Foi no Santos que Alline ficou até sofrer a lesão que quase a afundou na depressão. Quando se recuperava de um rompimento do ligamento cruzado do joelho em 2016, ela foi convocada à seleção e, durante um treinamento, se machucou novamente.

"Dias depois da convocação eu rompi o joelho novamente, o mesmo. Foi o pior momento da minha história com a Alline e como jogadora. Não aceitava de jeito nenhum ficar mais um ano parada. Eu era capitã da equipe e de repente eu perdi tudo. Tive que lidar com a questão de não estar mais aparecendo e deixando de fazer o que eu mais gosto de fazer", relatou a ex-zagueira.

Para não embarcar na depressão, comecei a focar em terminar a faculdade e trabalhar na Santos TV. Entrevistava as pessoas que iam lá e isso foi me dando um novo gás. Foi passando o tempo e eu fui me preocupando justamente com o que eu ia fazer depois de jogar futebol", comentou Alline.

Manoella Mello/Globo

Sai a zagueira, entra a comentarista

Alline até voltou a jogar após se recuperar da terceira lesão. Ela foi para o Corinthians, mas não tinha o mesmo espaço de antes, ficava no banco. Então, ela foi convidada para fazer participações em programas e jogos transmitidos pela Band e pediu autorização ao clube. O time não deixou, mas Calandrini já estava decidida a se reinventar.

Após aparições pontuais e competir no reality Exathlon, Alline foi contratada de vez pela Bandeirantes, em 2019. Foi uma das principais comentaristas da Copa do Mundo e se tornou referência. Quatro anos se passaram, um novo Mundial feminino se aproxima, e ela deixou Band para trabalhar no Grupo Globo, a maior audiência do país.

"A Band foi uma escola gigante para eu chegar até a Globo. Sou muito grata. E agora, eu fui muito muito abraçada por todos. Globo, para mim, obviamente, é a maior emissora do país. Quando aconteceu, eu não tive reação, porque acho que o objetivo de todo mundo é você poder trabalhar e mostrar o que você sabe, o seu conteúdo, comentar futebol", disse.

"Quando olho para trás, vejo que sem dúvida alguma tudo isso aconteceu graças ao apoio e incentivo dos meus pais e do meu irmão, além da minha dedicação. Eu sou de Macapá, e eu fico pensando: imagina minha avó me vendo nos programas da Globo?", explicou.

Eu sinto muito orgulho da trajetória ao ver que hoje eu estou representando mulheres e rompendo barreiras, falando de futebol tanto masculino quanto feminino

Alline Calandrini, Ex-jogadora da seleção e comentarista do grupo Globo

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