Da garupa até a Austrália

Zagueira da seleção, Lauren viajava mil quilômetros por semana numa moto para jogar futebol

Beatriz Cesarini e Paulo Favero Do UOL, em São Paulo Erin Chang/ISI Photos/Getty Images

Não importava se o céu estivesse desabando de tanto chover ou se o frio fosse daqueles que faz qualquer um apertar a função soneca do alarme para ganhar mais alguns minutos na cama quentinha. Lauren nunca perdia um treino no Centro Olímpico. Quando chegava o horário, a jovem corria ansiosa e pulava na garupa da moto de seu pai, Erymar Alexandre, mais conhecido como Lekão, e ambos partiam de Votorantim, no interior de São Paulo, à capital.

Pai e filha fizeram o percurso pela Rodovia Castello Branco por cinco anos. Mas como há pedra em todo o caminho, não poderia ser diferente com eles. A sorte é que Lauren era rodeada de pessoas que apoiavam seu sonho, como os amigos do trabalho do Lekão, que aceitavam trocar horário e não hesitavam ao emprestar um veículo quando se deparavam com o desespero de Lauren ao ver a moto do pai falhando no meio da estrada.

A família também se desdobrava para ajudar, inclusive financeiramente. Afinal, era caro viajar todos os dias de uma cidade a outra para jogar bola de graça. Toda essa mobilização era uma aposta no futuro da menina que queria ser jogadora de futebol. E valeu a pena. No próximo mês, Lauren Leal vai para o outro lado do mundo, desta vez de avião, defender a seleção brasileira na Copa da Austrália.

Erin Chang/ISI Photos/Getty Images

Esse período de ir e voltar de São Paulo todos os dias, faça chuva ou faça sol, foi bem complicado, mas muito bom. Acho que foi ali que eu realmente percebi que era realmente aquilo que eu queria para a minha vida"

Lauren Leal, zagueira da seleção brasileira

Buda Mendes - FIFA/FIFA via Getty Images

O apoio da família

Quando percebeu que Lauren realmente tinha jeito para jogar futebol, a família foi atrás de uma escolinha que acolhesse meninas. Em Votorantim, onde eles vivem, não tinha nada, era só brincadeira na rua ou aulas para meninos. Em 2014, Lekão encontrou o time feminino Centro Olímpico, na Zona Sul da cidade de São Paulo, e decidiu levar sua filha para uma peneira. Lauren passou e começou a construir a carreira.

"Eu saía da escola mais cedo, normalmente eu não fazia a última aula porque não dava tempo. Ia para casa, almoçava correndo, me trocava e ia pra São Paulo de moto com meu pai. Só que ele também tinha que trabalhar, então era complicado em relação aos horários, porque ele tinha que ir para o serviço na madrugada e o treino acabava tarde", relembrou Lauren.

Lekão e Lauren contavam com o apoio de familiares, que sempre incentivaram a jovem, e de colegas da concessionária da rodovia que percorria diariamente, onde ele trabalha até hoje.

"Eu sou muito grata ao meu pai e me sinto privilegiada por ter esse apoio em casa. Não só exatamente dele, mas também da minha mãe, irmã, tios e minha avó. Todo mundo sempre se mobilizou para tentar ajudar que acontecesse e realmente desse certo".

Michael Regan - UEFA/UEFA via Getty Images Michael Regan - UEFA/UEFA via Getty Images

Menina pode ganhar, sim, de menino

É praticamente uma infeliz unanimidade: quase toda a história de uma jogadora de futebol tem um caso de machismo por trás. Não foi diferente com Lauren, que sentiu o preconceito contra mulheres na modalidade quando ela e as jovens do Centro Olímpico conquistaram um torneio masculino e geraram revolta.

"Em 2016, lembro que a gente estava sem campeonato para jogar e uma das alternativas foi participar de um torneio masculino. E a gente foi campeã dessa competição, ou seja, vencemos os meninos. Neste processo, os pais dos garotos não aceitaram de jeito nenhum porque 'o filho perdeu para uma menina'. Fizeram protestos e nos xingaram muito, mas ficamos com o título", recordou Lauren.

"O mais curioso é que os próprios meninos eram super respeitosos, mas os pais deles, que deveriam dar o exemplo, infelizmente xingavam e nos desencorajam. Mas nunca pensei em parar", acrescentou.

James Williamson - AMA/Getty Images James Williamson - AMA/Getty Images

A primeira ajuda de custo

A primeira ajuda de custo de Lauren veio após quatro anos, quando ela alcançou a primeira convocação para defender a seleção brasileira sub-17. Mas como o próprio nome diz, esse valor só ajudava e não cobria todos os gastos que ela tinha como atleta. A vida começou a mudar quando a zagueira começou a jogar no São Paulo e, então, se mudou para a capital.

"Em 2019, quando eu fui morar em São Paulo, foi o primeiro ano que os gastos que a minha família tinha comigo foram diminuindo. E aí eu comecei a criar uma independência financeira, passei a dar conta da minha vida", disse Lauren.

Ela novamente destacou o apoio da família para conseguir chegar ao nível de se sustentar. Durante sua carreira, a jovem conviveu com muitas meninas que não conseguiram seguir no futebol justamente pela falta de dinheiro.

"No Centro Olímpico, vi algumas meninas pararem por não conseguirem um sustento ou também por precisarem fazer a escolha entre o futebol e um trabalho com retorno financeiro rápido. Chega uma idade que a gente tem as responsabilidades dentro de casa e tudo mais, e inúmeras jogadoras não foram em frente por esses motivos", comentou a jogadora.

No São Paulo, Lauren conquistou a primeira convocação à seleção principal, em 2021. Depois, no ano seguinte, a zagueira passou a vestir a camisa do Madrid CFF e ficou na Espanha até o meio de 2023. Atualmente, Lauren está sem clube espera encontrar um novo destino em breve.

Lucas Figueiredo/CBF Lucas Figueiredo/CBF

Os últimos amistosos mostraram o quanto nossa seleção é forte e como os outros países e o povo brasileiro também têm que acreditar e respeitar o nosso time, porque há um trabalho muito bom"

Lauren Leal, zagueira da seleção brasileira

Marc Atkins/Getty Images

Expectativa para a Copa

Lauren foi convocada para a Copa do Mundo da Austrália e Nova Zelândia, que acontece entre 20 de julho e 20 de agosto. A zagueira está confiante no trabalho da seleção brasileira ao longo dos anos e acredita em uma boa atuação da equipe.

"As expectativas estão muito altas. Estamos nos preparando para chegar o melhor possível na Copa e conquistar o objetivo, que é o sonho de colocar a primeira estrela na camisa. Vamos entrar para ganhar, assim como em qualquer outra competição", exaltou Lauren, que aproveitou para destacar o trabalho da técnica Pia Sundhage.

"É uma excelente treinadora. A Pia tem um currículo muito extenso e vitorioso. Ela levou uma outra perspectiva para a seleção, e não só à principal, mas estendeu em todo o trabalho que a CBF tem com o futebol feminino. Hoje temos algo integrado entre as equipes de base e a principal. E então já temos as mesmas concepções, ideias de jogo e estilos parecidos", explicou.

Lucas Figueiredo/CBF Lucas Figueiredo/CBF

'Futebol feminino ainda será potência'

Lauren tem apenas 20 anos, mas tem esperança que o esporte proibido às mulheres por 40 anos até 1983 tenha um domínio maior no futuro.

"A minha geração é uma geração que pegou tudo mudando. O futebol feminino está em constante evolução, e todos têm que acompanhar isso: entidades, clubes, confederações, federações, para que realmente possa continuar crescendo em passos mais rápidos. O futebol feminino tem tudo para ser uma potência", pontuou a defensora.

"Quem diz que o futebol feminino não vende, que as pessoas não gostam, que as pessoas não assistem, é mentira. O futebol feminino vende, as pessoas gostam, as pessoas assistem, só precisa de mais investimento, de um projeto para visibilidade, por exemplo, porque só assim a gente consegue evoluir: com a ajuda de todos", concluiu.

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