Vulgo: Royal

Apelido e tatuagens conectam Emerson Royal com passado difícil e o animam a não desistir da Copa do Mundo

Emerson Royal Em depoimento a Gabriel Carneiro e Igor Siqueira, do UOL Sebastian Frej/MB Media/Getty Images

Nas férias, sempre vou pra onde eu cresci. Hoje vou menos, o tempo passa e fica mais complicado. Mas a favela é um lugar bom, mano. Quem não conhece pensa que é um matando o outro. Não. Acontece o que acontece em todo lugar.

Eu tenho uma tatuagem da favela e dentro tem uma frase de uma música que meu pai que escreveu: "Eu não sei se é nome ou se é vulgo, só sei que é chamado por nós de favela". Eu trago no corpo. Tenho outra na perna: "Da favela para o mundo".

Essa é uma frase mais forte, que me faz pensar muito nessa coisa de sair do nada pra conquistar tudo, tá ligado? Sair de um lugar humilde e chegar lá. O que foi ruim que eu vivi na favela já deixei pra trás. Agora o bom, a simplicidade, a humildade, o querer ganhar e ajudar a família, isso trouxe comigo e me tornou quem eu sou hoje.

É por isso que eu não desisto nunca dos meus sonhos, tipo jogar a Copa do Mundo esse ano. Outubro tá muito longe, pô, eu tenho condições de estar lá. Eu tô na melhor liga do mundo e em um dos maiores clubes do mundo, que é o Tottenham. Tô disputando em alto nível e com muita intensidade com os melhores jogadores do mundo. Então, a Copa não tá distante de mim.

De onde eu saí, as pessoas são muito desacreditadas. Mas quando eu vou até lá, eu coloco isso dentro da cabeça da criançada: não é de onde você sai, mas a mentalidade que você tem. A minha mentalidade agora é de trabalhar muito e honrar minha história. Deixa eu te contar um pouco mais dela, pode ser?

Sebastian Frej/MB Media/Getty Images

Comecei muito acelerado, né? Então deixa eu me apresentar direito. Meu nome é Emerson Aparecido Leite de Souza Júnior, mas todo mundo, desde moleque, me chama de Royal. Já, já eu explico essa fita (risos). Eu morava na Penha, em São Paulo. Minha família era de Ermelino Matarazzo, mas eu morava na favela da Penha.

Na minha casa era meu pai, minha mãe e meus irmãos. Depois, meus pais se separaram. Mas a princípio meu pai morava com a gente. Sempre fui bem-educado. Meus irmãos também. A gente não era rebelde, não dava chilique, entendia nossa condição. Nunca passamos fome, mas não dava para ter uma vida boa também.

Uma vez por semana, pelo menos, tinha tiroteio onde a gente morava. Era meia-noite e começava, pá, pá, pá. Não é normal. Imagina crescer ali? Hoje, vejo que educar os filhos neste lugar e chegar onde chegamos é muito incrível.

Eu tinha medo do tiroteio, mas era criança e não tinha dimensão do que tava rolando. Minha mãe ligando pro meu pai, chorando, e eu ia pra janela. Queria ver o que tava acontecendo. Eu morava em um prédio, no oitavo andar, e os tiros não chegavam. Eu queria olhar, mas minha mãe pedia pra abaixar. Era um momento de desespero, porque a gente escutava passos no corredor e tinha medo de ser um bandido. Um clima de muita tensão. Isso durava duas ou três horas e depois acabava.

Lucas Figueiredo/CBF Lucas Figueiredo/CBF

"Ele girou e destravou a arma. Ia atirar em mim"

Violência no Brasil é assim. Não tem lugar. Pode ser no corredor de casa ou na rua. Eu quase fui mais uma vítima há algum tempo. Aconteceu no dia 3. Eu tô de férias do clube e fui numa casa noturna em Americana, onde uns amigos meus estavam cantando. Eles me pediram pra estar presente nesse pagode. Eu fui, fiquei umas duas, três horas, no máximo. Quando saí, tinha um policial lá. Ele pediu pra tirar uma foto comigo. Ele tava lá fora, não tava na casa. Eu tirei a foto com ele e ele me acompanhou até o carro, normal.

Nisso, ele me acompanhando, chegando no estacionamento, um bandido entra na minha frente, coloca a arma na minha cara e me pede pra passar o relógio e a corrente. Nesse momento, tinha meu tio e meu primo perto de mim. Eles entraram em pânico e meio que reagiram, aí o bandido começou a falar que se eles se mexessem, ele iria me matar.

Eu tranquilizei todo mundo, acalmei o cara, tirei o relógio, falei pra ele: "calma, eu vou te entregar". Nisso, entrego o relógio na mão dele, ele girou na minha direção e destravou a arma. Ia atirar em mim. Eu reagi, empurrei ele e dei um tapa na arma. Quando dei o tapa na arma, ele se desequilibrou, atirou pro alto. Foi nesse momento que o policial deu um tiro nele. Acabou que ele foi atingido enquanto a gente saia correndo.

Eu tô bem. Só no primeiro dia que foi um pouco complicado. Depois disso, assimilei bem. Serve de aprendizado. Graças a Deus estou vivo e muito bem.

Reprodução/Instagram
Emerson Royal, o primeiro da esquerda para a direita, na infância, sem o sorriso

Royal e "um tal de Emerson no seu lugar"

Se tem uma coisa que sempre me perguntam é sobre o apelido. Foi uma tia que colocou. Tinha o comercial da gelatina Royal uns anos atrás, lembra? Tinha até uma música: "abre a boca, é Royal". Quando eu era bebê, dizem que eu chorava muito, mais que o normal. E essa minha tia falava: "Sai daqui Royal, seu bocão". E eu chorava mais (risos).

Dali pra frente, todo mundo começou a me chamar de Royal e o apelido pegou. Desde os dois anos de idade eu sou o Royal. Cresci com o apelido e ainda bem que eu amo gelatina. Eu uso o apelido até hoje porque me leva pra minha origem. Na família, nunca fui Emerson, sempre fui Royal. Então, levando o Royal comigo, levo a família e amigos.

Só teve uma vez que eu fiz merda. Quando eu cheguei na Ponte Preta, perguntaram meu nome. Eu falei Emerson. Pra quê... Quando eu fui falar do Royal, não pegou. Só me chamavam de Emerson. No profissional ficou Emerson. Eu tentava emplacar o Royal, mas não ia. Tem uma história engraçada disso: tenho um tio que nem sabia que eu chamava Emerson, só me conhecia por Royal. Um dia, ele ouviu um jogo da Ponte no rádio. Eu falei que ia jogar. Cheguei em casa depois do jogo e ele me liga: "Pô, falou que ia jogar e nem jogou. Jogou um tal de Emerson na sua posição". Acredita?

Veja os melhores momentos de Emerson Royal na temporada

Rodrigo Buendia/Reuters Rodrigo Buendia/Reuters

Expulsão na seleção deixou lições

Hoje em dia, sou alegre, extrovertido. Não sou tão chorão. Chorei recentemente quando minha avó faleceu. Ela sempre foi minha segunda mãe e eu senti muito. Eu quero ser o durão e agora eu sei que nem sempre vale a pena. Chorar não é feio.

Em janeiro, aconteceu um negócio muito foda e eu quase desabei. Acho que você deve lembrar: Equador 1 x 1 Brasil, pelas Eliminatórias da Copa do Mundo. Eu fui titular da seleção. Titular da seleção, mano. Ano de Copa! Dani Alves, meu ídolo, no banco.

Só que eu fui expulso com 19 minutos do primeiro tempo. Mano, ninguém é expulso na seleção com o Tite, já se ligou? O time é muito disciplinado.

Pra mim, o lance do primeiro amarelo não foi nada. Na Premier League, não seria nem falta. Eu tô acostumado a jogar em uma liga em que tem mais contato. Não tô dizendo que é culpa do juiz, a culpa é minha, mas ele tava com má intenção com a gente. Ele expulsou o Alisson duas ou três vezes e voltou atrás. Eu não sei. Foi atípico.

A gente nunca quer passar por isso, mas faz parte da profissão. É inevitável. Um deslize. Eu não acreditava quando cheguei no vestiário. Quando eu saio expulso, não quero falar com ninguém, é um momento meu. Se alguém vier, eu não tenho cabeça. O Tite me deixou respirar. Ele esperou o jogo acabar, eu já tinha tomado banho. Primeiro, ele me ofereceu um abraço. E disse que eu sabia que tava errado. E é verdade. Ele também falou que sabia do meu talento e que não cortaria cabeça de jogador por isso, que ele já jogou bola e entende.

Eu fiquei chateado, mas sei do meu potencial. Já joguei em grandes ligas mesmo sendo muito novo. Hoje eu tô trabalhando pra voltar pra seleção.

Mano, eu vou trabalhar até o último dia antes da convocação. Jogar a Copa do Mundo é um sonho e eu não vou desistir. Tem uma frase assim: 'Trabalhe até que seu ídolo se torne seu concorrente'. Descreve exatamente minha situação na seleção. Eu aprecio o Daniel Alves, sempre apreciei. Mas hoje eu disputo uma vaga na Copa do Mundo e ele vai querer a dele. À parte a admiração que eu tenho por ele, eu sou profissional e estou na disputa."

Emerson Royal, sobre a concorrência na lateral da seleção

Tottenham Hotspur FC via Getty Images Tottenham Hotspur FC via Getty Images

Em um ano, duas dispensas

No passado, eu tive chances muito maiores do que essa para desistir. Pra falar a verdade, jogar futebol nunca foi minha paixão de molequinho. Eu gostava é de empinar pipa, de jogar bola de gude. Só que eu tenho um primo, que até mora comigo hoje, o Lucas. É como se fosse um irmão. A gente brincava no quintal da minha avó. Ele sempre foi habilidoso e ficava me dando caneta. Sempre fui competitivo, não gostava. Falei: "Vou aprender a jogar só para driblar você". Foi quando eu comecei a pegar gosto.

Como estava perigoso na Penha, minha família se mudou pra Americana. Foi lá que eu comecei a jogar de verdade, num projeto social. Com dez anos, fui parar no Palmeiras. Era no sub-11, joguei um Paulista. Mas eu ficava muito no banco, fiquei triste e quis sair. Fui para o Independente de Limeira. De lá, o São Paulo me chamou.

Fiquei dos 12 aos 15 anos. Joguei com o Igor Gomes, Luan, Helinho, Antony, com o Militão, que era uma categoria acima, Liziero, Brenner, Walce, Rodrigo... Era uma boa geração. Lá que eu virei lateral, porque tinha chegado como volante.

Mas aí, depois de três anos e meio, fui mandado embora. Meu pai foi me contar, eu tava jogando bola na rua. Ele chegou e disse: "O São Paulo ligou e te dispensou". Assim. Curto e grosso. Eu falei: "Tá bom". Voltei a jogar bola. A ficha só caiu em casa, aí eu chorei e minha mãe me abraçou, me consolou. Doeu muito.

No mesmo ano, fui para o Grêmio, mas fiquei seis meses e fui dispensado de novo. Tristeza dobrada. Em um ano, duas dispensas? Eu pensei: "acho que agora não vai dar". Disse, na época, que não queria mais pensar em futebol. Mas aí apareceu a Ponte Preta e tudo aconteceu.

David Rogers/Getty Images

As brincadeiras no vestiário do Tottenham e o "sacana" Lucas

Nossa, lembrei de uma história da hora agora. Eu jogo com o Lucas Moura lá no Tottenham, é meu amigão. Mas eu conheci ele como fã, acredita? Minha família inteira é são-paulina, menos meu pai. E eu segui meu pai, torço pro Santos. Um dia, lá em Cotia, o Lucas passou. Ele já era profissional, voando. Eu olhei, saí correndo e pedi uma foto. Eu nem lembrava mais. Aí, outro dia, um menino que estudava comigo na época mandou e eu falei: "Caraca, e a gente jogando junto hoje!".

Hoje em dia somos, muito amigos. Só que ele é sacana, viu? Uma vez, mandaram a programação do time em inglês, eu coloquei no tradutor e não ficou claro. Eu perguntei pro Lucas. Ele falou: "É obrigatório ir para a concentração às 19h". Já eram 18h. Saí correndo, achei que ia atrasar e já entrei no carro. Na metade do caminho, tive a ideia de ligar pra um amigo e pedir pra ele traduzir. Ele fala: "Pode ficar no hotel hoje, amanhã tem que chegar no CT até 12h para almoçar". Liguei pro Lucas e ele tava rindo, muito traíra (risos).

Mas o meu jeito é assim também. Tento levar a vida com um sorriso no rosto. Aqui no Tottenham, os ingleses são pessoas boas, mas não são muito de brincar. Eu já chego no vestiário fingindo que vou chutar os outros, a gente começa a rir, empurro. Eles olham e pensam que eu sou doido.

Eu respeito mais só quando eu admiro o cara, assim. O Neymar sempre foi meu ídolo. Na seleção, no primeiro dia, eu me pegava olhando para ele, admirando. E com outros caras, tipo o Joaquín (no Celta), o Kane e o Son (no Tottenham), o Thiago Silva (na seleção), eu queria me aproximar, fazer amizade. Mesma coisa com o Daniel Alves. Fiquei uma hora ao lado dele, conversando. Eu quero aprender com os vencedores.

Tottenham Hotspur FC via Getty Images

"Barça é top, mas não é o único time do mundo"

Só não deu muito tempo de fazer isso no Barcelona, né? Quando saí do Atlético-MG, eu pensava em ir pra Europa. Recebi a proposta do Barcelona, que foi conjunta com o Bétis. Eu não conhecia muito o Bétis, mas o Carlos Amadeu e o Ricardo Oliveira me contaram coisas incríveis e eu assinei o contrato. Fui muito feliz.

Aí fui pro Barcelona, que era o clube que eu queria estar desde que comecei a jogar futebol. Joguei três jogos até que me ligaram umas quatro da tarde de um dia. Era pra falar que tinham uma proposta por mim e que era importante pra eles. Apesar de estar chegando, eu senti que já tava na hora de sair. Pelas conversas com os diretores, não ia me fazer bem continuar.

Minha ideia nunca foi sair do Barcelona, queria fazer história. Fiquei umas duas, três horas no quarto, pensando. Perguntei a opinião de toda a família. Aí resolvi sair.

Eu tinha muita dúvida sobre meu futuro se eu ficasse, acho que a forma que eles me passaram a situação do clube não foi muito correta. Eu me perguntava se teria oportunidades. Não queria perder tempo porque carro parado enferruja. Acertei com o Tottenham à meia-noite. Pensando em seleção, não tinha tempo a perder.

O Barça é um time top, dispensa comentários. Era um sonho. Mas não é o único time do mundo. Tem outros times top e eu tô num deles. Vou jogar a Champions na próxima temporada e trabalhar até o fim pra estar na Copa do Mundo. Eu acho que Deus abençoa quem trabalha. Essa frase combina muito comigo.

Ryan Pierse/Getty Images

Quem é Emerson Royal

Emerson Royal é lateral direito, tem 23 anos e joga no Tottenham, da Inglaterra. Revelado pela Ponte Preta, chegou ao Atlético-MG com 19 anos e logo foi vendido para o Barcelona —que o emprestou ao Bétis. Quando o empréstimo acabou, foi rapidamente vendido para o futebol inglês. Na seleção, foi chamado seis vezes por Tite, incluindo presença na Copa América de 2021. Atualmente, Tite conta com Danilo, da Juventus, e Daniel Alves, do Barcelona, como suas principais escolhas para a posição. Emerson é o terceiro da lista.

Lucas Figueiredo/CBF Lucas Figueiredo/CBF

+ histórias

Javier Soriano/AFP

Rodrygo amadurece no Real Madrid e na seleção sem abandonar espírito jovem

Ler mais
Mike Egerton/PA Images via Getty Images

Raphinha recusou "caminho errado" e pediu comida na rua por sonhos no futebol

Ler mais
Sergio Perez/Reuters

Matheus Cunha fala sobre as dificuldades de ser negro e nordestino no futebol

Ler mais
Topo