Não me desvirtuei

Promessa brasileira na Premier League recusou "caminho errado" e pediu comida na rua por sonhos no futebol

Raphinha, em relato a Eder Traskini e Thiago Braga Do UOL, em Santos e São Paulo Robbie Jay Barratt - AMA/Getty Images

Eu preciso te contar uma verdade: é muito complicado. Para quem nasce dentro de uma comunidade, como eu, é difícil manter o foco. É difícil seguir o seu caminho e não se desvirtuar.

As oportunidades aparecem - e são muitas! Convidativas, prometem um jeito mais fácil de ganhar dinheiro. E é aí que as pessoas se perdem. Eu nunca sai do caminho, mas presenciei, andei junto com pessoas que estavam se perdendo.

São momentos, somente. Infelizmente, são momentos em que pessoas que não têm um foco grande, uma família para apoiar, se perdem. Por esses míseros momentos, perdi amigos que jogavam até dez vezes mais que eu, que poderiam estar em um grande clube do mundo.

Ter esses exemplos tão próximos foi um fator importante para que mantivesse meu foco. Eu sabia o que queria desde muito pequeno: ser jogador de futebol. Conseguir esse objetivo saindo de uma comunidade é um sacrifício muito grande. Mas a minha ambição era ainda maior.

A minha família foi muito importante. Eles nunca me proibiram de fazer as coisas, mas sempre me mostraram qual era o caminho certo e o caminho errado. Foi por eles que nunca larguei a escola. Foi pelas conversas com eles que ignorei as oportunidades que tive de seguir pelo caminho errado. Por causa deles estou aqui.

O garoto da comunidade conseguiu passar por tudo isso rumo a grandes palcos. Se hoje falam da minha "magia" em campo, eu digo: essa é a verdadeira magia.

Robbie Jay Barratt - AMA/Getty Images

"Tive oportunidades no lado errado da vida"

Vagabundo pra cima

Eu só queria comer. Seria injusto dizer que passei fome na minha vida. Não. Meus pais nunca deixaram faltar comida em casa. No entanto, para seguir com o sonho de jogar futebol, eu precisava treinar, e o local era longe da minha comunidade.

Eu saía de casa meio-dia e só voltava depois das oito da noite. Mal tinha o dinheiro para a passagem, então você pode imaginar que não tinha condições de comer algo durante esse período.

Quando a fome apertava, eu... eu tinha que pedir. Depois do treino, no caminho até o ponto de ônibus, eu parava as pessoas na rua e pedia para comprarem um lanche, qualquer coisa para eu comer.

Já aconteceu de me ajudarem, mas também já aconteceu de me chamarem de vagabundo pra cima. E não tinha o que fazer: era esperar o ônibus chegar em casa para poder comer algo.

Hoje eu entendo. Querendo ou não, é assustador ser parado por alguém na rua te pedindo comida, dinheiro... é complicado. Eu tinha 12 anos na época, jogava na várzea em Porto Alegre e passei pela base do Porto Alegre FC.

Mas mesmo com todas essas dificuldades, eu nunca mudei meu foco. Segui firme naquilo que eu sonhava e que eu sabia que tinha capacidade para alcançar.

Eu acredito que os momentos ruins são obstáculos que são colocados ali para ver quem realmente quer, quem realmente consegue suportar e superar. Foi isso que me deu força para passar por eles nos momentos mais difíceis.

Raphinha, brasileiro do Leeds United (9º lugar da Premier League)

Eu vi o Raphinha crescendo ao redor dos campinhos da Restinga. Já sabia da qualidade dele antes mesmo de deixar o nosso bairro para atuar no exterior. Na Restinga há vários jovens jogadores de qualidade, que são referência, e ele era uma delas. Quando eu já jogava na Europa e retornava para as festas de fim de ano, presenciava o Raphinha ser o destaque nas peladas dos guris que ocorriam entre um intervalo e outro dos jogos de várzea dos adultos.

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James Williamson - AMA/Getty Images James Williamson - AMA/Getty Images

A decisão

Eu tive entre 20 e 30 minutos para tomar uma decisão que mudaria a minha vida. Pouco, né? Eu tinha feito uma boa temporada 19/20 pelo Rennes (FRA) e tínhamos classificado o time pela primeira vez para a fase de grupos da Liga dos Campeões.

Infelizmente, eu estava ciente do interesse de outros clubes somente pelas notícias, pelas redes sociais, não por alguém do Rennes. Ninguém chegou em mim e explicou a situação, me contou o que estava acontecendo e o que poderia ocorrer. Eu fiquei no escuro, e confesso que aquilo me deixou um pouco chateado.

Foi logo depois do jogo contra o Reims. Eu tinha feito uma boa partida, tinha até marcado um gol. O presidente e o diretor me chamaram em uma salinha, me falaram o que estava acontecendo e me falaram para tomar uma decisão. Ali. Naquele momento. Eu não poderia esperar o dia seguinte, pois a janela se fecharia.

Eles me disseram que ficariam felizes eu se ficasse no clube, mas também aceitariam e ficariam agradecidos se eu optasse por deixar o Rennes. Conversei com meu empresário e com minha família para rapidamente decidir meu futuro. Foi complicado sair de lá daquela maneira, mas cara... era a Premier League, o campeonato de tantos craques que eu sempre acompanhei com os olhos brilhando. Era meu sonho de criança.

E, olha, a minha escolha não poderia ter sido mais acertada. Estou sendo muito feliz vestindo a camisa do Leeds.

Alex Dodd - CameraSport via Getty Images

Loucura de Leeds por Bielsa

É engraçado a loucura da cidade pelo Bielsa. Esses dias estava indo para o estádio. Quando parei no sinal, tinha um desenho do Bielsa pintado em toda a parede de um prédio. Os caras são realmente malucos pelo clube! Pena que eu não pude sentir esse calor de perto. A pandemia fez com que a gente não pudesse nem ter contato com os torcedores [nota da edição: o retorno do público aconteceu só nas rodadas finais]. Quando cheguei ao Leeds, o Bielsa veio me dar as boas vindas. Falou que estava disposto a ajudar na minha evolução, para acelerar na minha adaptação ao clube, para eu conseguir mostrar o meu melhor futebol. E falou que sempre que eu quisesse poderia bater na porta dele.

Divulgação/Leeds

Treino é treino, jogo é magia

Trabalhar com o Bielsa é saber que tem hora para brincar, mas só nos intervalos dos treinos. No campo, o bicho pega. É um cara muito exigente, não vê adversário, não se importa contra quem vai jogar, seja contra Guardiola, Klopp. E eu gosto de trabalhar com pessoas exigentes. A Premier League é um campeonato de jogadores de qualidade, mas mesmo assim tenho conseguido fazer aquilo que mais gosto: driblar. Nos treinos eu sou mais contido, não driblo os companheiros. Tento fazer o básico, focar mais no tático e deixar tudo guardado para o jogo, que é quando é mais gostoso, na verdade. Os marcadores são difíceis, mas com minha magia tenho conseguido fazer algumas coisinhas em campo.

Dificilmente algum jogador brasileiro não sonha em vestir a camisa da seleção. Eu venho planejando isso desde que eu tinha 10 anos de idade, me preparando a cada ano, a cada treino, a cada jogo. Não cabe a mim decidir, mas cabe a mim dar sempre o meu melhor. Se um dia acontecer, vou ficar muito feliz e estarei preparado.

Raphinha, sobre o sonho de vestir a camisa da seleção brasileira

Amigos em United e Liverpool

É difícil definir como me sinto quando ouço especulações sobre equipes gigantes como Liverpool e Manchester United interessadas em me contratar. Cara, eu cresci vendo esses times pela televisão. Vi Rooney, Van Nistelrooy, Cristiano Ronaldo, mas também vi Gerrard, assim como outros tantos como Henry, Deco, Lampard...

São muitos jogadores de tanta qualidade que é difícil falar se eu me espelhei em algum deles. Acho que eu me espelhava no campeonato, sabe? Adorava assistir e sonhava em jogar aqui.

E hoje eu estou deixando as pessoas felizes com o meu futebol. Não falo só dos outros clubes, mas também o Leeds, que foi quem apostou em mim. Estão todos muito contentes, inclusive os torcedores que parecem ter um carinho grande por mim. Eu tenho contrato por mais quatro anos e nem penso em sair daqui exatamente por isso: estou feliz e fazendo os outros felizes.

Engraçado que eu tenho amigos nos dois clubes. O Bruno Fernandes jogou comigo durante um ano que pareceram muitos mais no Sporting (POR). Ele se tornou quase um irmão mais velho. Nos falamos todos os dias, mas nada de futebol, só nossas palhaçadas. Mesmo de longe, ele me ajuda muito.

No United tem o Alex Telles. Joguei nem sei quantas vezes contra ele, marcador duro, mas sempre com respeito. Tem o Fred, que é do Sul também. Mas aí no Liverpool tem o Alisson que é do Sul também, então fica tudo igual. Ainda tem o Fabinho que é do mesmo empresário que eu e o Firmino. Aliás, sabia que o Firmino foi o primeiro cara que me mandou mensagem quando vim para cá? Ele é um grande amigo.

Neil Hall - Pool/Getty Images Neil Hall - Pool/Getty Images

A música é meu refúgio

Meu pai é músico, é do pagode. Acho que isso sempre esteve comigo. Sempre acompanhei ele nos grupos em que ele tocava. Eu cresci no meio do samba e por meio do samba. Foi com a música que ele criou eu e meu irmão, junto com a minha mãe, que é pedagoga.

Muito por isso, a música está sempre sempre comigo. É meu refúgio. Quando tenho um tempo, quando estou indo para o treino, ou mesmo antes das partidas, a música está comigo. Quase sempre ele: o pagode do meu pai. Pra mim, é como se fosse um remédio relaxante que me ajuda a focar.

Eu sempre gostei de ir no pagode, de ouvir, de cantar, até de tocar. Eu, de origem pobre, mas com coração nobre, gosto muito de escutar aquela música do Zeca Pagodinho, "Deixa a Vida me Levar". Mas tem uma que talvez seja mais especial ainda. Meu pai gravou com o Ronaldinho Gaúcho e eu escuto bastante. Chama-se "Goleador" e canta assim:

"Muita gente acha que ser jogador
É uma facilidade viver no Esplendor
Não sabe que a arte é até mais
Difícil que ser um doutor
Driblar a vida encontrar a saída
Pra não ser mais um sofredor"

Se você chegou até aqui, já sabe que essas curtas estrofes contam muito da minha vida. Toda a dificuldade para ser um jogadorpara chegar aqui... mas, com ajuda da minha família, eu driblei a vida, encontrei a saída para não ser mais um sofredor. E sigo driblando, agora no campeonato mais difícil do mundo.

Carl Recine - Pool/Getty Images Carl Recine - Pool/Getty Images

Dispensado pelo Audax

Depois da várzea e da base do Porto Alegre FC, surgiu uma chance no Audax (SP), que era comandado pelo Grupo Pão de Açúcar. Passei um ano ali, e os investidores decidiram vender o clube. Quando isso aconteceu, fizeram uma lista de dispensa e meu nome estava nela.

Felizmente, não tive tempo para lamentar. As mesmas pessoas que me ligaram para comunicar a dispensa, já me apresentaram outro projeto: um time em Imbituba (SC) em que o objetivo era disputar um torneio sub-20 como vitrine para vender os jogadores.

Eu topei na hora, e eles nem acreditaram. Pra mim, aquilo era uma oportunidade, e eu prometi pra mim mesmo que iria agarrar todas as oportunidades que me surgissem pelo caminho. Três meses depois, o Imbituba estava na final da segunda divisão do estadual sub-20. Não deu para ser campeão, mas foi o suficiente para chamar atenção dos olheiros dos maiores clubes catarinenses ali presentes.

Foi assim que fui parar no Avaí, o clube que mais se interessou no meu futebol. E foi aí que começou o sonho de jogar profissionalmente na Ressacada. Uma vez fui convocado para um jogo do profissional e viajei ao Rio de Janeiro para enfrentar o Fluminense. Não entrei em campo, mas a experiência foi muito marcante pra mim.

Queria muito ter jogado pelo clube que abriu as portas para mim, mas minha história era diferente. Muitos jogadores não têm oportunidade de jogar no Brasil, mas conseguem seu espaço na Europa. Eu sou um deles.

Peter Powell/PA Images via Getty Images Peter Powell/PA Images via Getty Images

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