Uma chance

Vencer em Mônaco e liderar a F2 pode não ser suficiente para levar Drugovich à F1. É preciso encantar

Fábio Seixas Colunista do UOL, em São Paulo Dutch Photo Agency

Felipe Drugovich tem um olho na pista, outro no calendário. O brasileiro mais próximo de uma vaga na F1 sabe que vive uma temporada decisiva, crucial.

O olho na pista: vencer o campeonato da F2, o último degrau antes da categoria máxima do automobilismo. Até agora, tudo vai bem. Venceu quatro das dez etapas do ano, conquistou duas pole positions, cravou uma volta mais rápida. Lidera a temporada com 113 pontos contra 81 do francês Théo Pourchaire. É o grande nome da categoria em 2022.

O olho no calendário: acertar com alguma equipe de F1 até o fim do ano, mesmo que seja como reserva. Aos 22 anos, já começa a ficar velho para a F2 —Pourchaire, por exemplo, tem 18. Não quer nem pensar em mais uma temporada por lá. Em 2023, ou estará na categoria de cima ou mudará o foco para Fórmula E, Indy, endurance... O relógio está correndo.

"O objetivo pro ano que vem é ser piloto titular na F1. Ficaria contente também com uma vaga de reserva. Mas um quarto ano na F2, não. Acredito que algumas portas da F1 devam se abrir. Obviamente há alguns pilotos, como o (campeão de 2021 da F2, o australiano Oscar) Piastri, na fila de espera, então a gente tem que ver como isso vai pra frente. Mas acredito que, sim, possam surgir alguns espaços...", disse, em entrevista ao UOL, direto de sua casa em Desenzano del Garda, no norte da Itália.

O mercado pode jogar a seu favor. Dos 20 pilotos da F1, 9 oficialmente ainda não têm presença confirmada na próxima temporada. É algo raro, um acontecimento que pode beneficiar quem busca uma chance. Pode ser a chance de uma vida.

Drugovich está de olho.

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Tem que ter um plano B. Agora eu não tenho. Mas se o plano A não funcionar, você tem que buscar outra oportunidade. E aí pode ser Fórmula E, pode ser WEC [Mundial de endurance], pode ser Indy... Há várias opções".

Felipe Drugovich

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Felipe no campeonato sul-brasileiro de kart em 2010, em Florianópolis

Havia um kart

Drugovich vem do eslavo e significa "o filho do dragão". É o sobrenome da mãe, Marcia. Sua família tem origem austríaca, chegou ao interior de São Paulo no início do século passado e estabeleceu-se no norte do Paraná no fim dos anos 40. O pai, Fernando Roncato, morreu num acidente de moto em 2010. Felipe tinha 10 anos.

Até os 8, Drugovich não ligava muito para o automobilismo. Mas, no ambiente em que cresceu, seria difícil ao menos não se interessar pelo assunto. Sua família comanda uma grande empresa do ramo de peças para caminhões e ônibus, com lojas espalhadas pelo país. Dois tios, Oswaldo Júnior e Sérgio, pilotavam na extinta Fórmula Truck _em 1997, foram respectivamente campeão e vice. Outro tio, Claudio, correu de Fórmula Ford na juventude.

E havia um kart.

"Quando eu era criança, 4, 5, 6 anos, não tinha interesse. Mas havia um kart do Felipe Nasr no fundo da empresa do meu tio. Quando eu tinha 8 anos, meus tios tocaram no assunto. Daí eu falei: 'Eu quero andar, mas numa pista'. Minha mãe até reclamou, não gostava do barulho... Daí eu fui testar e me apaixonei pelo esporte. Depois, com as vitórias, fui me apaixonando pela competição. A sensação de ganhar é absurda e isso vai te levando pra frente."

Seu xará Nasr foi o penúltimo brasileiro a correr uma temporada completa na F1, em 2016. Outro Felipe, o Massa, foi o último, em 2017. Desde então, o Brasil não tem um piloto titular na categoria, interrompendo uma tradição que vinha desde 1970, com Emerson Fittipaldi.

O kart que une os dois Felipes foi um presente de Amir Nasr, nome conhecido dos autódromos brasileiros e tio do ex-piloto da Sauber, para o garoto de Maringá. "As famílias sempre foram muito amigas. O Amir cuida da minha carreira hoje em dia, me ajuda muito", conta Drugovich.

Mario Ferreira/Divulgação Mario Ferreira/Divulgação

O preparador

"Meu nome é o mais estranho que você vai ouvir hoje", diz Nilzimar Ferreira de Oliveira, o Mazinho. Ele foi o preparador de kart de Drugovich nos seus melhores anos de Brasil.

Os dois se conheceram em 2010 numa etapa do Sul-Brasileiro em Pato Branco, no Paraná. Mazinho trabalhava com os irmãos gaúchos Matheus e Arthur Leist, que dividiram boxes com o paranaense. Claudio Drugovich gostou de seu trabalho e o contratou no fim daquele ano.

Foram três anos juntos, viajando pelo país e ganhando praticamente tudo. Ninguém viu o atual líder da Fórmula 2 andar tanto de kart quanto Mazinho.

"No primeiro contato vi que ele era muito arrojado. É determinado, aguerrido, ataca na hora certa. A dedicação dele é fora de série. Se ele tomava um décimo de segundo num treino, vinha conversar, pedir ajuda para melhorar. Em 2011 foi um absurdo. Ganhamos tudo o que disputamos", conta o preparador, que além de Matheus (ex-Indy) e Arthur (Stock Light) Leist, já havia trabalhado com Vitor Meira (ex-Indy) e Nelsinho Piquet (ex-F1, hoje na Stock Car).

Drugovich conquistou nove títulos nacionais, em diversas categorias, entre 2011 e 2013, ano em que acelerou na Europa pela primeira vez. Foi na pista de Lonato, na Itália, uma espécie de meca do kartismo mundial. Foi o início de uma nova fase para o então adolescente.

Em 2014, ele e a mãe mudaram para uma cidadezinha a 4 km do kartódromo italiano. A partir de então, Drugovich começaria a sua formação como piloto "europeu".

Arquivo pessoal

O Felipe nunca foi aquele cara nervosinho, de discutir fora da pista com um adversário ou com a equipe. Ele mantinha a calma. Puxou isso da mãe, dona Marcia".

Mazinho, preparador de karts.

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Em 2016, Felipe estreou na F4 alemã, em sua primeira experiência com fórmulas

Piloto da escola europeia

"Tenho muito mais experiência de Europa do que de Brasil. Já sou da turma e isso me ajudou muito. É uma parte fundamental da carreira."

Nascido em Maringá, Drugovich é um piloto da escola europeia. Cresceu e foi subindo de categorias junto de toda uma geração que hoje bate às portas da F1.

Em seu primeiro ano de automobilismo, 2016, correu com Mick Schumacher na F4 alemã. Naquele mesmo campeonato, enfrentou o estoniano Juri Vips, que testou para a Red Bull em Barcelona no mês passado. Em 2021, seu companheiro de equipe na Fórmula 2 foi o chinês Guanyu Zhou, hoje titular da Alfa Romeo.

"Os brasileiros que querem chegar à F1 têm que vir pra Europa. Primeiro, pra competir com os melhores, com as equipes profissionais... E tem também esse choque de vir do Brasil pra Europa, que faz muitos pilotos perderem a cabeça, perderem o foco", diz.

Manter o foco foi um desafio para Drugovich em 2021. Depois de um ano de estreia muito bom na Fórmula 2, com três vitórias e o nono lugar no campeonato, deixou a equipe MP Motorsports e se deu mal. Na UNI-Virtuosi, esperava ser campeão. Não ganhou nenhuma corrida e viu Zhou disputar o título até o fim.

"O ano passado foi complicado. Por diversos motivos eu não consegui ter a performance que que queria. Mas não posso dizer que foi perdido... Talvez tenha sido perdido em termos de resultado, mas eu consegui aprender muito com isso. Corrigi muitas coisas para este ano, então não foi perdido", conta.

Entre essas correções de rota, um bem-sucedido retorno para a MP Motorsports e a contratação de um preparador mental.

Dutch Photo Agency Felipe em 2020, seu primeiro ano na F2

Felipe em 2020, seu primeiro ano na F2

Minha velocidade é a mesma do ano passado, mas eu melhorei muito na parte mental. Foquei em ser constante neste ano. E a partir do momento em que você começa a ser constante, fica mais fácil mudar de degrau".

Felipe Drugovich

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Preparação mental após 2021 ruim

Antes de cada treino, classificação ou corrida, Drugovich medita.

É uma nova rotina que começou em janeiro, quando ele passou dois dias em Brasília fazendo um workshop de mindfullness com o psicólogo e preparador mental Pedro Lôbo.

Desde então, eles fazem sessões semanais de meditação por vídeo. E conversam antes de cada atividade da Fórmula 2. "Cada corrida é uma pizza. O primeiro treino é uma fatia, o segundo treino é outra... Tem que comer fatia por fatia, focar no agora", explica Lôbo, exemplificando um dos pilares do treinamento mindfulness: a habilidade de se concentrar no presente.

Mais uma vez, a trajetória de Drugovich cruza a de seu xará Nasr. O primeiro cliente de Lôbo no automobilismo foi o então piloto da Sauber, em 2016. De lá para cá, outros pilotos passaram por ele, como Felipe Fraga (DTM, o Turismo alemão) e César Ramos (Stock Car).

"Depois de um ano tão difícil como 2021, foi muito importante recuperar a confiança, acreditar no que você tem. Está funcionando, então estou muito contente com isso. A gente faz muita meditação, exercícios de respiração, treinamentos mentais. A gente treina bastante para chegar na hora agá e estar 100% preparado mentalmente", diz Drugovich.

Lôbo contou como foi a conversa com o pupilo antes de Mônaco, vitória mais importante de sua carreira pela repercussão que sempre gera. "Falei pra ele: 'Tem tesão maior do que estar em Mônaco, acelerando ao máximo? Quantas pessoas têm uma oportunidade como essa? E você vai ficar pensando no campeonato? Nada disso! Divirta-se!'."

A vitória rendeu convite para o tradicional jantar com a família real, no domingo. E aí o brasileiro precisou se virar. Não tinha levado nenhum terno na bagagem.

"Tive que sair correndo pra comprar um terno. Teve a janta lá com o príncipe, então foi duro. Tinha a opção de alugar em Mônaco, mas era muito caro, então fui até Nice, ali do lado, comprei um terno básico na Zara e voltei", conta, rindo.

Ele medita antes de entrar no carro. Eu guio a meditação. O cockpit é a caverna dele, o lugar em que ele se sente mais seguro".

Pedro Lôbo, psicólogo e preparador mental

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Felipe e o tio, Claudio, nos tempos de F3

Revolução em Maringá

Figura conhecida em Maringá, Claudio Drugovich, 69, virou uma espécie de Google nos últimos meses. "As pessoas ficam me parando pra perguntar do Felipe. Eu não paro de dar informações", diz, rindo. "Tem até velho acordando de madrugada para ver as corridas dele."

Os Drugovich estão na cidade desde a fundação, em 1947. E é para lá que o piloto volta quando tem uma folga da Fórmula 2, algo cada vez mais raro. A categoria, como a F1, viu seu calendário inchar nos últimos anos. O atual campeonato é o maior da história, com 28 etapas.

"Desde o ano passado, quando volto pra Maringá, que é uma cidade relativamente pequena, dá pra ver muita gente mais interessada. Tem até amigo meu dizendo que comprou ingresso para a F1, tal... Eu fico: 'Ahn? Não sabia nem que você gostava disso'", conta o piloto.

A idolatria, que já superou os limites da cidade de pouco mais de 400 mil habitantes, pode preencher uma lacuna de todo o país, acredita Claudio, que correu na Fórmula Ford nos anos 70 e disputou campeonatos de Turismo com Mavericks, Fuscas e Corceis. "Sabe aquela coisa que deixa todo mundo feliz? Desde o Ayrton Senna não temos um grande ídolo no automobilismo. Agora que apareceu uma possibilidade, todo mundo fica louco!"

E qual é o ídolo do aspirante a ídolo? São dois. E, curiosamente, o líder da Fórmula 2 não era nascido quando eles corriam na F1. "Como brasileiro, sempre o Senna. E também um pouco o [Niki] Lauda. Hoje com YouTube, com leitura, você vê tudo, sabe praticamente tudo."

Entre os pilotos atuais, Drugovich é fã de Verstappen. "É um cara honesto com ele mesmo, né? Ele tem algo que eu tento ser, aquela coisa de: 'Meu, se errou, errou, se acontecer alguma coisa errada você vai lá e fala'. Ele não é um cara nem um pouco político e eu admiro muito isso, além das qualidades na pista. Pra mim ele é o cara mais rápido hoje em dia."

O Felipe foi abandonado pela equipe no ano passado. Tinha muito dinheiro em cima do Zhou. Vi muita sacanagem".

Claudio Drugovich

Dutch Photo Agency A vitória em Mônaco

A vitória em Mônaco

Título não garante nada

Conquistar a F2 não é garantia de promoção para a F1. Dois dos últimos campeões que o digam. Nyck de Vries (2019) hoje corre na Fórmula E. Oscar Piastri (2021) é reserva da Alpine.

Mais importante do que o título na categoria de acesso é integrar o programa de desenvolvimento de alguma equipe. Foi o caso de Mick Schumacher. Não, o alemão não chegou à F1 por ter conquistado a Fórmula 2 em 2020. Chegou por ter o sobrenome que tem e, por consequência, fazer parte da Academia Ferrari.

Outra opção é levar dinheiro para conseguir uma vaga, como Nicholas Latifi na Williams. Ou ter um pai tão rico a ponto de comprar uma equipe. É o caso de Lance Stroll na Aston Martin.

Drugovich hoje não se encaixa em nenhuma das situações acima. Hoje, a única arma que tem é fazer um campeonato tão bom, mas tão bom, a ponto de tornar impossível passar despercebido pelos chefes da F1. Precisa mostrar que é especial, que tem algo diferente, que merece uma chance de testar e ser testado. E as últimas corridas trouxeram isso.

Além de Jeddah, em março, o brasileiro venceu as duas provas de Barcelona e a etapa do domingo de Mônaco —corrida que todo mundo no paddock acompanha com atenção especial.

Seu status mudou. Os tapinhas nas costas ficaram mais frequentes, as menções na imprensa especializada também. São bons sinais, este zunzunzum ajuda. Mas o caminho ainda é longo.

"Não houve nada de muito concreto até agora, mas um contato ou outro, um cumprimento... Isso, sim. Mônaco é a corrida mais importante da F2. Realmente dá uma repercussão absurda", diz. "Não tento me colocar pressão. Mas não é 'deixa a vida me levar'. A gente tem que levar a vida, no caso. Posso garantir que faço de tudo para um dia chegar lá."

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