A ascensão de Alcaraz

Quem é o espanhol que, aos 19, virou sensação do tênis com "muitos ingredientes para a salada", como diz Nadal

Alexandre Cossenza Do Saque e Vôleio, coluna do UOL, em São Paulo Soccrates Images/Getty Images

Carlos Alcaraz disputou seu primeiro jogo como profissional aos 14 anos e derrotou o número 292 do mundo, o italiano Federico Gaio, de 25 anos. Com 15 anos, passou a vencer com frequência "jogos de gente grande". Uma dessas vitórias foi em abril de 2019, quando ganhou convite para um evento da série Challenger em Múrcia, sua cidade natal.

Challengers são torneios em geral disputados por tenistas que estão entre 200-400 no ranking mundial e misturam jovens em ascensão, tenista experientes que ainda sonham com a elite e veteranos que caíram no ranking por algum motivo e tentam se reerguer no circuito. Naquela época, o adolescente espanhol era o 25º do mundo como juvenil, mas apenas o número 597 na lista dos profissionais. A página da ATP ainda o chamava de "Carlos Alcaraz Garfia", seu nome inteiro.

Naquele torneio, Alcaraz bateu o #140 do mundo, o também espanhol Pedro Martínez, cabeça de chave 5 do torneio. Alcançou as quartas de final e jogou três vezes com a quadra lotada, torcida a favor, sem se deixar levar por empolgação excessiva nem perder a cabeça — qualidade rara para tenistas dessa idade. Naquele momento, já estava claro que não fazia sentido seguir no circuito juvenil. Ele encerrou sua participação no circuito mundial para atletas de até 18 anos em 2019, quando tinha 16 anos.

Hoje, Alcaraz tem 19, é o sexto do ranking mundial da ATP e a grande atração de Roland Garros, que começa neste fim de semana em Paris. E, sim, essa afirmação vale mesmo sabendo que Rafael Nadal e Novak Djokovic vão jogar no saibro francês.

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Nadal e os ingredientes da salada

Não é por acaso que se ouve aqui e ali expressões como "novo Nadal" ou "o próximo Nadal". Carlos Alcaraz Garfia nasceu em 5 de maio de 2003 e, como todo jovem tenista espanhol que veio ao mundo neste milênio, cresceu vendo Rafa conquistar títulos até tornar-se o maior campeão de slams em simples da história do tênis masculino — são 21.

Os dois foram jovens prodígios que migraram cedo para o circuito adulto e tiveram sucesso imediato. Mas a maior coincidência de todas deve ser a do dia 25 de abril. Ao conquistar o título do ATP 500 de Barcelona, Alcaraz, 19, apareceu pela primeira vez no top 10 da ATP no ranking publicado no dia 25 de abril de 2022. Exatamente 17 anos antes, no dia 25 de abril de 2005, Nadal também entrou no top 10 pela primeira vez, também após ser campeão do ATP 500 de Barcelona e também aos 19 anos.

Alcaraz e Nadal se encontraram nas quadras pela primeira vez em 2021, no Masters 1000 de Madri, no dia em que o jovem completava 18 anos. Alcaraz era o #120 do mundo. Naquele dia, Rafa lhe deu três presentes: um bolo (encomendado pela organização do torneio), uma aula de tênis (na forma de vitória incontestável por 6/1 e 6/2) e um elogio.

Quando alguém na idade dele consegue fazer o que ele está fazendo é porque tem algo especial".

Em seguida, o veterano elogiou a coragem do jovem para ir à rede com muita frequência, chamou de ótimos o forehand e o backhand do rival e disse que era preciso melhorar um pouco o saque. E usou uma metáfora inusitada. "Mas ele só tem 18 anos hoje. Ele tem bastante tempo. Como disse, é humilde e trabalhador, não tenho dúvidas de que irá fazê-lo. Sua movimentação é ótima. Quando você faz uma salada e vai colocando ingredientes na salada... Ele tem muitos ingredientes para se tornar um grande jogador. Isso é o principal."

Em 2022, no segundo jogo entre eles, Nadal precisou suar para fazer 6/4, 4/6 e 6/3. Valia pelas semifinais de Indian Wells — o veterano sofreu uma fratura por estresse em uma costela no torneio e precisou afastar-se das quadras por quase dois meses. Quando voltou, veio o terceiro encontro, nas semifinais do Masters de Madri. O garoto finalmente bateu o ídolo: 6/2, 1/6 e 6/3.

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O garoto sem geração

No momento da icônica vitória sobre Nadal, a ascensão de Alcaraz já estava consolidada. No dia 1º de julho de 2019, ele ocupava o 520º posto na lista da ATP. Em dois anos, ganhou mais de 400 posições. No dia 24 de maio de 2021, com 18 anos recém-comemorados, era o 94º do ranking mundial. Dali para cá, com a possibilidade de disputar torneios do grand slam e eventos maiores, essa ascensão se acelerou —hoje ele é o sexto da lista.

Alcaraz é até difícil de encaixar em uma das "gerações" do tênis. É como se ele estivesse em uma classe separada. O top 100 só tem mais um tenista de 19 anos. O dinamarquês Holger Rune, contudo, é apenas o #42 do mundo e tem muito menos vitórias relevantes que Alcaraz.

A turma dos 20, a mais próxima do espanhol, é liderada por Jannik Sinner (#13) e tem ainda Lorenzo Musetti (#51), Brandon Nakashima (#76) e Jiri Lehecka (#79). Desse grupo, apenas Musetti já fez aniversário em 2022. Todos os outros completarão 21 ainda neste ano. E apenas Sinner chega perto dos resultados de Alcaraz.

Depois, chega o grupo dos 20 e poucos, jogadores de 23 a 27 anos que não são exatamente uma só geração, mas que dominam o topo 10 atual e ameaçaram, mas não conseguiram tirar em definitivo, o Big Three do topo do ranking nos últimos anos. Os grandes ícones desse grupo são Daniil Medvedev (#2), com 26 anos, Alexander Zverev (#3), 25, e Stefanos Tsitsipas (#4), 23.

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O herdeiro do Big Three...

Roger Federer teve sérios problemas de joelho nos últimos anos e passou bom tempo afastado do circuito. O suíço planeja voltar apenas em setembro ou outubro, quando já terá 41 anos.

Rafael Nadal completará 36 em junho e também vive às voltas com lesões. Este ano, o espanhol disse pela primeira vez que chegou a contemplar a aposentadoria no ano passado.

Novak Djokovic, o mais jovem dos três (fará seu 35º aniversário no dia 22 de maio), é o que menos tem problemas físicos e, também por isso, mantém-se no topo do ranking. No entanto, durante a pandemia, o sérvio teve a imagem danificada por negar-se a se vacinar contra covid. Perdeu popularidade e patrocinadores.

Alcaraz parece ser o nome perfeito para preencher a lacuna que eventualmente haverá quando o Big Three abandonar o tênis profissional. Além da precocidade de títulos grandes, o adolescente tem um tênis cativante, faz a torcida se encantar com seguidos pontos espetaculares e jogadas inesperadas. E tem carisma.

Também joga a favor de Alcaraz o fato de que vários dos principais nomes das gerações anteriores, como Daniil Medvedev, Alexander Zverev, Denis Shapovalov e Nick Kyrgios, tiveram posturas condenáveis dentro e fora de quadra recentemente. Medvedev desrespeita árbitros com frequência maior do que o desejável. No ATP de Acapulco, Zverev deu uma raquetada na cadeira de um árbitro, quase acertando a perna do oficial. Kyrgios já foi suspenso mais de uma vez. Shapovalov, que já deu até uma bolada no olho de um árbitro de cadeira, disparou palavrões para o público no Masters de Roma este mês.

Xinhua/Meng Dingbo

...que supera o Big Three

Aos 19 anos, Alcaraz tem um histórico contra adversários do top 10 impressionante: 11 vitórias e seis derrotas. O currículo inclui triunfos sobre Djokovic, Nadal, Zverev, Tsitsipas (três vezes), Casper Ruud, Hubert Hurkacz, Matteo Berrettini (duas) e Jannik Sinner.

É um retrospecto digno dos maiores nomes da história do tênis. Melhor, inclusive, que o Big Three nessa idade. Quando completou 19 anos, Rafael Nadal tinha seis vitórias e seis derrotas contra oponentes do top 10 — 50% de aproveitamento, o que não é nada mau. Roger Federer, por sua vez, somava dois triunfos e dez reveses e e Novak Djokovic, uma vitória e cinco derrotas.

Juan Medina/Reuters Juan Medina/Reuters

O que dizem sobre ele

Tudo sobre o jogo dele é impressionante. Ele é muito completo. Ele consegue jogar tão bem ofensivamente quanto defensivamente. Ele é o assunto do esporte e acho que é ótimo para o tênis ter alguém tão jovem e que se mostra bom o bastante para desafiar os melhores do mundo e ganhar troféus, mas ao mesmo tempo seja legal e humilde fora de quadra, o que ele é".

Nivak Djokovic, durante o Masters 1000 de Roma

Agora você é o melhor tenista do mundo. Mesmo tendo apenas 5 anos idade, você está ganhando de todos nós. Então, é bom para o tênis que temos um novo superastro, que vai ganhar muitos slams e vai ser número 1 do mundo e vai ganhar este torneio muito mais vezes. É ótimo ver que você está indo tão bem".

Alexander Zverev, após perder a final do Masters 1000 de Madri

Ele tem uma curtinha extraterrestre. É insano. Ele é um showman que gosta de torcida e é consistente, feito do mesmo material de Nadal. Ele é Federer, Nadal e Djokovic no mesmo pacote. Ele nasceu para isto. Estamos vendo algo tão especial que nem consigo te dizer."

Rick Macci, ex-técnico de Venus e Serena Williams

Nunca vi alguém com sua maneira de atuar e seu frescor. Sempre está dentro da partida; está relaxado na quadra, é uma sensação contrária à que você tem quando vê Nadal, que nunca parece estar relaxado. Carlos mostra tudo de positivo que tem dentro com sua linguagem corporal. É algo difícil de aprender. É muito importante para o tênis que haja um jogador que goste tanto de competir e odeie perder. É um exemplo a seguir. Não quero que alguém seja como Nadal, Federer ou Djokovic. Quero que seja como Alcaraz porque ele tem tudo."

Mats Wilander, ex-número 1 e comentarista do Eurosport

O rei da curtinha

É unânime entre os analistas do tênis que Carlos Alcaraz tem um jogo sem pontos fracos evidentes. Há golpes que ainda podem evoluir, mas nenhuma parte de seu tênis está em um nível que não seja compatível com seus resultados.

Há, contudo, um elemento essencial para o seu sucesso e que chamou atenção nas vitórias mais duras - especialmente contra Nadal e Djokovic em Madri: as curtinhas. Alcaraz tem um aproveitamento muito acima da média quando parte para um drop shot, e isso tem a ver tanto com o efeito surpresa quanto com a variedade com que o espanhol usa o recurso.

O primeiro diferencial de Alcaraz no quesito é sua capacidade de disfarçar o golpe, ou seja, de não deixar o adversário perceber que ele vai fazer uma curtinha na bola seguinte. E o adolescente consegue fazer isso tão bem com a direita quanto com a esquerda (algo raro até entre a elite do tênis). Veja esses dois exemplos. O primeiro, de backhand, é contra Djokovic em Madri. O segundo, de direita, é contra Tsitsipas em Barcelona.

A curtinha de backhand:

O drop shot de direita:

O segredo do sucesso das curtinhas de Alcaraz, porém, não se limita à execução. Além de disfarçá-las e de mostrar a precisão necessária para deixar seus adversários sem reação, o adolescente também tem uma capacidade extraordinária de matar os pontos mesmo quando os oponentes alcançam a bolinha. Seja indo à rede para volear ou se antecipando a um golpe ofensivo.

No lance abaixo, Djokvic alcança a curtinha de Alcaraz e devolve com uma excelente contra-curta. O espanhol, porém, lê bem a jogada do número 1 do mundo, antecipa sua corrida, alcança a bola e faz uma paralela espetacular que deixa o sérvio sem reação.

Abaixo, na final de Madri, vemos Zverev sair em disparada do fundo de quadra para alcançar uma curtinha. Na bola seguinte, porém, Alcaraz não perdoa e faz um lob que o alemão de 1,98 não consegue alcançar.

Resumindo: quando Alcaraz decide partir para uma curtinha, a chance de que ele ganhe o ponto é muito maior.

Tim Clayton/Corbis via Getty Images

O técnico pés no chão

Juan Carlos Ferrero foi número 1 do mundo, conquistou Roland Garros e, junto com a Espanha, foi campeão da Copa Davis três vezes. Um currículo para poucos na história. Um dos donos da academia JC Ferrero-Equelite Sport Academy, em Villena, na Espanha, Ferrero poderia ter optado por um estilo de vida tranquilo, apenas administrando os negócios.

Preferiu o caminho mais longo e incerto. Em 2019, começou a treinar um garoto de 16 anos que — diziam — teria futuro no tênis profissional. Os resultados vieram, e muitas das características de Alcaraz, sobretudo seu trabalho duro e sua humildade, são qualidades em comum com o Ferrero dos tempos de jogador.

"Tinha que viajar com ele de carro para os torneios, ir até o Brasil e percorrer o país de carro para jogar dois ou três torneios... Pensei bem e, para mim, era uma aposta pessoal e de crescimento profissional também como técnico por trabalhar com um garoto desde pequeno e lhe preparar bem, fazê-lo melhorar. Eu topei", contou Ferrero em entrevista ao programa de rádio espanhol El Larguero.

Estava claro que ele seria muito bom. O 'quando' era o dilema. Quando o coloquei para treinar com jogadores melhores que ele, sempre subiu o nível, e isso te diz muito sobre um jogador e sua capacidade de se adaptar a situações mais complicadas e solucioná-las. Isso me mostrava como a coisa seria".

Fernando Meligeni, ex-top 25 e atual comentarista do grupo Disney, trata a parceria com Ferrero como essencial para que Alcaraz conseguisse o que já alcançou no circuito. "Alcaraz tem uma grande vantagem, que é um grande exemplo. Ele tem o Ferrero do lado. Ele pegou o melhor cara para poder ajudá-lo e mostrar o caminho. Ele investiu para ter um cara desses do lado. Ele tem várias coisas que chamam muita atenção, por isso que todo mundo fala que ele vai ser número 1 do mundo", avaliou.

"Alcaraz está na elite da elite da elite, e ele trata a elite da elite da elite do jeito que ela tem que ser tratada. É uma briga que a gente tem muitas vezes no tênis brasileiro. Às vezes, parece que a gente desrespeita a dificuldade. Pô, você está no circuito que tem Federer, Djokovic, Nadal, Medvedev... Se você não fizer 150% das suas coisas, você não tem chance nenhuma. E ele tem essa consciência. O Ferrero colocou essa consciência nele", completou Meligeni.

Javier Soriano/AFP

Quero ser número 1 do mundo, campeão de grand slams e vencedor de medalhas olímpicas. Sou um rapaz que pensa grande. Agradeço que as pessoas vejam que eu possa ser o melhor do mundo, mas minha equipe e eu sabemos o quão difícil é. Tenho Juan Carlos [Ferrero, seu técnico], que já foi número 1 do mundo e pode me dizer o quão difícil e sacrificante é. Até o momento, estou no caminho correto e se não me desviar desse caminho e continuar fazendo as coisas certas, terei oportunidades. Não é garantido que serei número 1 do mundo, mas terei oportunidades".

Juan Medina/Reuters Juan Medina/Reuters

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