Pode chamar de Cacá

Ele já escutou até ofensas nos autódromos, mas, na Stock Car, fez de Galvão o seu pai

José Eduardo Martins Do UOL, em São Paulo Divulgação/Duda Bairros

Década de 90, o Brasil ainda tentava se recuperar da morte de Ayrton Senna. Para muita gente, as manhãs de domingo não eram mais as mesmas depois do fatal acidente de San Marino, em 1º de maio de 1994. Nesse período, nas pistas do país, um garoto, um pouco inspirado no ídolo que ele chamava de "tio", dava as primeiras aceleradas.

Além de precisar vencer os adversários nos circuitos, superar medos comuns aos pilotos e sofrer na busca por patrocinadores, Cacá Bueno também tinha de passar por cima do preconceito de ser visto meramente como o filho do narrador que amplificava as emoções geradas por Senna na Fórmula 1.

Em 1997, por exemplo, mesmo sendo o maior vencedor da temporada da Stock Car B, com oito pole positions e sete triunfos, ele percebia os olhares desconfiados em sua direção. De quem achava que ele só estava lá por ser "o filho do Galvão". Assim, mesmo com o título da categoria, Cacá optou por uma mudança drástica em sua vida. Saiu em busca de um lugar em que pudesse ser visto apenas como mais um piloto. Alguém que precisava se firmar pelo talento.

Na Argentina, o forasteiro construiu uma imagem de vencedor e ganhou o respeito de todos. Ainda assim, na volta ao Brasil para disputar a Stock Car em 2002, as dúvidas pairavam sobre o carro número 0.

Demorou, mas, com cinco títulos da principal categoria do automobilismo nacional, o vice-campeão mundial de Jaguar I-Pace e Trophy conseguiu, de certa maneira, inverter ao menos na pista uma situação improvável no restante do país. Para pilotos, mecânicos, engenheiros e torcedores que frequentam os autódromos do Brasil, dá para dizer que Galvão Bueno pode reconhecido como "o pai do Cacá".

Divulgação/Duda Bairros

Assista à entrevista completa com Cacá

Na vitória ou na derrota, ainda um Bueno

O ambiente da Stock Car envolve, claro, a paixão pelo automobilismo, mas não é nada que possa se comparar ao que se vê em estádios de futebol brasileiros, em termos de intensidade. Você não vai encontrar muitos grupos organizados ou mesmo beligerantes. Ainda assim, para Cacá Bueno a relação de amor e ódio com imprensa e torcedores fez parte de sua rotina por um longo período. Escutava até ofensas por ser filho do narrador mais badalado do país —também a voz da Fórmula 1 por aqui.

Se eu ganhava uma corrida, eu sentia meio que: 'Ah, deve ter o melhor carro. É filho do Galvão. Ganhou porque é filho do Galvão'. Quando eu perdia, dava na mesma: 'Tá vendo. Isso aí não é nada. Só está lá porque é filho do Galvão'. Com um cara da mesma idade que eu, o comportamento da imprensa e das pessoas era completamente diferente."

A situação hoje mudou e o respeito por Cacá, 43, no mundo da Stock é enorme. Não por acaso. Ele ganhou um Sul-Americano e é o piloto com mais títulos em atividade na principal categoria do Brasil. Mais que isso, é o segundo mais vitorioso na história, atrás apenas de Ingo Hoffmann, dono de 12 taças. Agora experiente, o competidor do carro número 0 sabe até como é dividir holofotes com o pai. Ou até mesmo ficar à sua frente.

"Comecei a ganhar uma credibilidade muito maior, uma base muito mais sólida, a ponto de, quando o meu pai vai à corrida, tem sempre um cara que está lá no meu box que foi lá para me ver e, não, ver o meu pai. Acaba que essa galera ali trata o meu pai assim: 'Ó, o Galvão tá lá no fundo, mas, Cacá, vem cá tirar foto comigo'", conta.

Mas Cacá também sabe que seu apelo popular tem limite nessa comparação. "Mas o passante que tava indo lá para ver o Rubinho, aí ele entra pra ver meu pai (risos)."

Qualquer coisa que eu falasse, não importando se ganhei a corrida, era: 'Ah, filhinho de papai, arrogante, metido'. Passava a impressão: 'O cara é filho do Galvão'. Já se imagina que o cara tem dinheiro, que não sei o quê: 'Esse aí não batalhou'. Na cabeça do cara, é assim. Ninguém sabe das batalhas de cada um.

Cacá Bueno

Era um tamanho de cobrança muito difícil. Até retrucava muito. As palmas que eu não devia ter recebido elevaram demais meu ego em algum momento. Também as vaias que não devia ter. Porque às vezes não era para mim, nem para o meu pai era. Era pra Globo, que respingava no meu pai, que respingava em mim.

Cacá Bueno

Eu entendo que as pessoas do meio já me tratam muito assim [sem ligar à imagem do pai]. A maioria da torcida também. Isso não quer dizer que torçam por mim. Tem a galera lá que vai torcer, logicamente, pelo Rubinho Barrichello, pelo Daniel Serra, pelo Nelsinho e torce pra mim. Isso é normal do esporte.

Cacá Bueno

Divulgação/Bruno Terena

Destino: Argentina

O roteiro mais desejado para um piloto de corridas no Brasil é dar as primeiras aceleradas no kart e causar boa impressão para, depois, tentar desbravar as pistas da Europa. Cacá Bueno foi um rebelde e apostou em outro script. Não só ele não se entusiasmou muito pelos monopostos, como, depois de ganhar a Stock Car Light em 1997, resolveu partir para a Argentina.

"Para mim, o campeonato mais profissional que existia, na época, não era a Stock Car brasileira e sim era o Sul-Americano de superturismo, no qual havia o envolvimento das montadoras, engenheiros europeus, com fabricação de peças vindo do mundo inteiro, um carro igualzinho aos de competição da Europa. Ali poderia mostrar meu valor e poderia, depois, correr em outros lugares do mundo com o mesmo tipo de equipamento."

Depois de dois anos, Cacá já tinha um vice e um título no Sul-Americano, mas a sua equipe na época, a Peugeot, tirou o apoio à categoria e passou a atuar no nacional da Argentina, o TC2000. Assim, veio o convite para ele se fixar em Buenos Aires.

"Eu falei: 'Mas eu sou brasileiro'. A resposta foi: 'Aqui não interessa. Você já está identificado com nosso público, está identificado com o nosso pessoal. Você já fala um espanhol fluente e adoraríamos que você continuasse'. Pediram para que eu morasse na Argentina de vez."

"Era um desafio, no meu ponto de vista, maior do que enfrentar os dinossauros da Stock Car, com todo o respeito que eu tenho a eles todos, e que eu tive, depois, quando voltei. Mas, para mim, o grande desafio, naquele momento, era esse", afirma.

A mudança de país também ajudou no amadurecimento de Cacá. O piloto se distanciou das piadas e comentários sobre seus laços familiares —embora diga que esse não tenha sido o principal fator para a mudança para o Sul do continente. "Não faz parte de por que escolhi a Argentina. Mas depois de eu ter feito a escolha, também fez parte da minha evolução até como pessoa."

Levo um pouco o paralelo para o futebol. Tem uma certa pendenga com os hermanos —embora eu não tenha. Sou Fluminense. Um dos grandes jogadores do Flu nos últimos anos foi um argentino, o Conca. A torcida inteira o aplaudia. Quando um atleta vem representar a suas cores, mesmo sendo argentino, e joga muita bola, não interessa mais que ele é argentino, ele é o cara que tá representando as suas cores. Foi o que aconteceu comigo na Argentina."

Reproduç?

Dois Buenos se acidentam no mesmo dia

O dia 24 de junho de 2001 ficou marcado de forma negativa na história da família Bueno. Cacá disputava uma série de provas na TC2000, na Argentina, e sofreu um grave acidente. Em suas estimativas, cerca de 30 minutos depois, a milhares de quilômetros dali, o irmão Popó Bueno capotou seu carro em uma corrida da Fórmula Renault italiana, em Monza.

Meu acidente nem se compara com o dele, mas foi fortíssimo, no mesmo dia, na Argentina. Estava disputando a ponta com mais dois pilotos. Numa manobra dos três, eu espirro no meio da reta, saio rodando, varo o guard rail, varo o alambrado e bato em um ônibus dentro do estacionamento. Com o impacto, tudo bem, não foi nem perto do dele, mas bato o rosto no cano, quebro um dente, quebro o maxilar."

Já Popó precisou ficar internado na Itália. Ele sofreu uma fratura na vértebra e precisou ficar um ano longe das pistas. Nos primeiros dias de choque, os Buenos contaram com o apoio da família de Felipe Massa, que morava na Europa. O ex-piloto da Fórmula 1 sempre foi muito próximo de Popó.

A distância, as limitações na comunicação da época e o fato de ainda estar em competição na Argentina fizeram com que Cacá demorasse a tomar nota do acidente em Monza, apenas horas depois do ocorrido. Para compreender exatamente o quão impactante foi a batida, então, levou ainda mais tempo.

"Não me contaram nada. Eu acabei correndo, depois, a final. Os caras ficaram três horas trabalhando no meu carro. Corri com o carro todo o torto. Não foi uma boa corrida, me ferrei, mas eu corri a final", recorda. "Depois, já voltando pra casa, aí me contam: 'Olha, o teu irmão sofreu um acidente. Está tudo bem com ele. Ele está já amparado no hospital, e está tudo bem'. Eu só fui me dar conta da gravidade do acidente do meu irmão um dia depois, quando começaram a chegar as imagens".

O dia assustador levou a família a ponderar se não era a hora de mudanças de direção, sem trocadilho.

Nessa mesma época, a minha mãe [Lúcia] volta e meia perguntava: 'Mas vocês têm certeza do que vocês tão fazendo?'. E ela falou: 'Não está na hora de vocês pararem, não? Você bateu lá num ônibus, não aconteceu nada. Teu irmão está em uma cama de hospital na Itália. Vamos parar?'. Eu falei: 'Não'. Não tinha a menor chance de querer parar'."

As consequências para Popó foram ainda mais graves e a preocupação familiar, mais que natural. "O acidente foi capa de várias revistas especializadas na época, na Europa. Foi um dos acidentes do ano na Europa. Pra quem não sabe, ele sofreu umas fraturas na coluna, ele tinha dois trilhos, seis parafusos para fixar, mas foi duro porque aí começaram a chegar os relatos. Ele ficou uma semana sem sentir direito um lado do corpo", detalha Cacá.

"Foi uma loucura até que a família pudesse chegar na Europa e pudesse prestar auxílio. Nisso aí, cara, foi muito bacana a família do Felipe Massa, que tava na Itália, que deu todo o amparo para o meu irmão, na época. Foi importantíssimo na recuperação dele. Então, eu só consegui encontrá-lo quase uma semana depois."

Mesmo assim, a resposta de Popó à mãe foi a mesma:

Quando eu chego na Itália, a primeira pergunta do meu irmão é: 'Será que vai dar pra correr em Spa, na semana que vem?'. Sem dúvida nenhuma foi uma quinzena bem complicada, mas só reafirmou minha paixão pelo motorsport."

Divulgação/Duda Bairros Divulgação/Duda Bairros

Feliz Dia dos Pais (e muito mais)

Com a derrocada da economia argentina na virada do século, os patrocínios ficaram escassos, e Cacá Bueno voltou ao Brasil em 2002 para construir uma carreira de conquistas. Mas não é que estivesse tudo dado, fácil para a captura.

Nas pistas daqui, teve de buscar patrocinadores, se adaptar rapidamente ao novo carro e a competir com os chamados dinossauros. Nessa época, a Stock Car, principal categoria de turismo do país, era dominada por pilotos experientes, como Ingo Hoffmann, Chico Serra e Paulão Gomes.

Ao longo do ano de retorno, Cacá conseguiu se acostumar ao Vectra e conquistar vitórias. Quando levantou a taça no Rio de Janeiro no Dia dos Pais, dedicou triunfo a Galvão. Detalhe: o narrador transmitia a prova ao vivo na Globo.

Muitas outras vitórias viriam. Cacá venceu a Stock Car em 2006, 2007, 2009, 2011 e 2012. Ainda terminou o campeonato entre os três primeiros colocados em mais oito temporadas.

Divulgação/Bruno Terena/Red Bull Divulgação/Bruno Terena/Red Bull
Acervo pessoal

Por que não um monoposto?

Cacá Bueno traçou desde cedo uma rota diferente da usual no automobilismo brasileiro não só quando rumou para a Argentina. O piloto não quis disputar provas de fórmula (carros com rodas não carenadas). Optou por competir em corridas de turismo (com bólidos visualmente mais parecidos com os veículos utilizados nas ruas)."Tive algumas oportunidades na carreira de trocar isso, no começo. Na verdade, eu sempre fui um apaixonado pelos carros de turismo. Por algum motivo, não sei qual."

O fato de ser um obstinado pela vitória também contribuiu para que Cacá construísse a sua carreira nas competições de turismo. Curiosamente, tal fato chama a atenção até mesmo do pai, Galvão.

"Eu queria ser o melhor possível no que eu me propus a fazer. [Nos monopostos] Quando não se chega à Fórmula 1, a prática comum é se aposentar com 25 anos de idade. O cara que não chega vira um aposentado. Então pensei: 'Vou pra esse lado de cá'. Talvez tenha sido um dos primeiros a fazer isso."

"Talvez os europeus entendam isso, os americanos mais ainda, os australianos entendem muito bem, os japoneses entendem muito bem. Existem categorias muito fortes nesses países. A Argentina entende isso perfeitamente bem, que não existe só Fórmula 1."

Reprodução/Globo

O tio Ayrton

A maior parte dos brasileiros que viveu nas décadas de 80 e 90 tem Ayrton Senna como um herói intocável. Cacá Bueno mantinha uma relação diferente com o tricampeão mundial. Como Galvão era amigo do piloto da F-1, era comum que Senna frequentasse a casa dos Buenos. Virou, então, o "tio Ayrton" para o então garoto, nascido em 1976.

"Tenho várias lembranças, mas eu era pequeno. Era uma relação de olhar e chamar: 'Oi, tio'. Uma época em que a gente não tinha esses telefones para tirar um monte de foto, então, eu tenho pouquíssimas fotos. Tenho poucos momentos lembrados, realmente, muito firmes. Eu lembro muito dele na minha casa."

Quando Cacá dava as suas primeiras aceleradas no kart, em 1988, Senna abria a sua coleção de títulos na F-1. Como consequência, o astro virou figura ainda mais popular. Seus compromissos comerciais e o trabalho na categoria fizeram com que o convívio com Cacá diminuísse.

O Senna tinha mais contato com a gente quando ainda não era tão famoso. Lembro que faziam os testes de pneus de Jacarepaguá, e ele ia lá para casa, que era na Barra da Tijuca. Eu me lembro de ir para o autódromo junto com ele. De a gente ter passado um final de ano juntos, em uma casa que o meu pai tinha alugado em Búzios. Ele [Senna] ia jogar tênis com o meu pai, e a gente também ficava doido de ir na casa do Senna para usar os jet skis que ele tinha. Então, tinha uma interação de criança com o tio: 'Caraca, aquele cara da TV está próximo'."

Zé Paulo Cardeal/TV Globo

Vida de esportista

O esporte corre nas veias da família Bueno. Mesmo sem ter sido um atleta profissional, Galvão praticou esportes quando adolescente. Mas é claro que seu trânsito por diversas competições por ser um dos principais narradores do país desde a década de 70 acaba sendo a maior influência na vida dos filhos.

"Eu não sei se com vocês é diferente, mas o que eu vejo é que, na maioria das vezes, o filho é muito interessado no que o pai faz. Eu não era diferente. Eu frequentava muito autódromo, estádios de futebol, ginásios para ver vôlei e basquete."

Assim, os dois também procuraram a modalidade que mais lhes agradava. O automobilismo surgiu então como a opção preferida da dupla Cacá e Popó. Os fins de semana nos kartódromos do Rio de Janeiro viraram frequentes na vida dos adolescentes.

"Eu tentei de tudo. Adoro futebol, sou um apaixonado por futebol, mas eu era um péssimo lateral direito. Gostava muito de jogar tênis e jogar vôlei. O vôlei eu me defendia razoavelmente, joguei bem. O tênis, não. Peladeiro. Dentro de todos eles, o dia em que eu experimentei um kart, eu falei: 'Cara, é isso'".

"Minha mãe era uma grande incentivadora disso. Ela achava que o esporte, realmente, fazia parte da educação de uma pessoa, onde você aprende a receber ordens, a ter alguém no comando, a fazer determinada função, aprende a ganhar, aprende a perder, a respeitar o próximo amiguinho e a se superar sempre, superar seus limites."

Lucas Merçon/Fluminense FC

Um Fla-Flu em casa? Mais ou menos

Na casa dos Buenos não há consenso quando o assunto é futebol. Galvão já assumiu sua torcida pelo Flamengo, e Popó seguiu por esse caminho rubro-negro. Já Cacá é torcedor fanático pelo Fluminense. O piloto acompanha as partidas e já até levou a camisa do seu time do coração para o pódio da Stock Car. Ainda assim, não há briga, garante Cacá.

"Meu pai também já se declarou flamenguista, mas eu falo que ele é meio de araque. Quando eu era criança, eu não me lembro de ele ser flamenguista. Acho que isso foi positivo para o meu pai, porque ninguém sabia o time dele."

Na realidade, para Cacá, Galvão só tem mesmo um time do coração. Para ele, o narrador torce mesmo para a seleção brasileira. O filho faz questão de defender a isenção do pai no trabalho.

"Até em casa a gente não sabia direito o time dele. Ele sempre foi Brasil. Ele foi meio que torcedor, sim, imparcial, vendedor de emoção para o Brasil, mas quando faz dois times brasileiros, ele sempre foi muito imparcial. Toda vez que um brasileiro chega na decisão de um título mundial, ele veste aquela cor e sempre foi muito isso."

Darwin, né? A evolução da espécie.

Cacá Bueno, sobre escolher o Fluminense em vez do Flamengo, do pai

Divulgação/Duda Bairros Divulgação/Duda Bairros
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