Desbravadores

Às sombras, brasileiros de mercados alternativos do futebol contam histórias de perrengues e até de amor

Gabriel Carneiro Do UOL Acervo pessoal

Aqui você não lerá histórias de jogadores. Essas, contamos todo dia. Os brasileiros que exploram mercados alternativos do futebol e compartilharam suas histórias ao UOL Esporte estão fora das estatísticas.

Uma consulta ao site da CBF é suficiente para descobrir que 832 jogadores brasileiros (entre homens e mulheres) se transferiram ao exterior para jogar futebol em 2018. Mais uma pesquisa no Google e você encontra o "Global Transfer Market Report", da Fifa, e as pesquisas do Observatório do Futebol do CIES (Centro Internacional de Estudos Esportivos), que levam ao número mágico: mais ou menos 3 mil brasileiros estão espalhados em clubes de cem países pelo mundo.

Sobre eles há registros, informações e acompanhamento.

Mas o assunto aqui é outro. Aqui, os personagens trabalharam na Islândia, na Dinamarca, na Noruega, na China e nos Estados Unidos e você nem viu. Aqui, eles ajudaram a formar a nova geração de jogadores do Qatar e do Paquistão, mas não apareceram em nenhuma lista da CBF. Chegaram como motoristas e terminaram dirigentes. Saíram do país para trabalhar e formaram família. São preparadores, analistas, supervisores, auxiliares... esses profissionais que não viram números.

São nove histórias de brasileiros que você não conhecia, mas vai adorar conhecer. E ainda vai terminar de ler aprendendo até um pouco do idioma indonésio!

Acervo pessoal
Arte/UOL

Pai de pet

O futuro do futebol chinês passa, ao pé da letra, pelas mãos do preparador de goleiros brasileiro Juliano Rodrigues. Ele chegou ao país no fim de 2013 para trabalhar em uma escola de formação de jogadores e depois foi contratado pelas categorias de base do Shanghai Shenhua. Liu Haoran, goleiro da seleção chinesa sub-14, é o principal pupilo. "Você vai ouvir falar esse nome."

Mas a mudança para a cidade mais populosa da China não atraiu só visibilidade ao trabalho. Juliano também descobriu o amor. "Quando vim conversar com o clube, em 2017, eu conheci uma mulher na mesma noite. Ela trabalha aqui (em Shanghai) tem sete anos, é dona de uma empresa aqui. E eu era sozinho...".

Juliano e Emmanuela casaram em 2018, em Pernambuco. "Ela é minha amiga, minha parceira, me ajudou muito na adaptação. É uma história bonita, né?". Hoje eles são "pais de pet", da cachorrinha Doce.

O ex-goleiro de clubes do interior de São Paulo, como Lençoense e Atibaia, parou na China porque um colega repassou a oportunidade ao decidir fazer faculdade no Brasil. Os primeiros treinos eram na base da mímica. Mas agora Juliano não pensa em voltar: "Não está nos meus planos, não, viu? Eu me sinto em casa. O objetivo é ficar mais uns dez anos, se Deus quiser (risos)."

Arte/UOL

Tomando a vodca deles

O bacharelado em Fotografia e a pós-graduação em História da Cultura pareciam o caminho profissional perfeito do paulistano Bruno Gabrieli. Mas, depois de trabalhar como fotojornalista em veículos de comunicação e ser proprietário de um estúdio por três anos, a vida mudou por completo.

"Eu sempre gostei de futebol. Aí descobri que ali no Tatuapé [bairro da capital paulista] tinha uma faculdade que dava curso de treinador. Eu quis fazer só para ter outro ponto de vista que não fosse o de torcedor." Lá, conheceu um professor que trabalhou com Daniel Passarela no Corinthians e tinha contatos na Argentina. Na viagem, conheceu uma nativa com quem se casou e teve filho. E também mudou de profissão.

Depois de estágios de curtos períodos no River Plate e no Argentinos Juniors, aliou a facilidade no tratamento de imagens com os estudos no futebol e começou a trabalhar como analista de desempenho. Foram quatro anos no segundo clube até chegar à seleção argentina sub-17 e sub-20. Em 2018, trabalhou na seleção principal da Armênia.

"Na Armênia, há uma diferença cultural muito grande, as relações são diferentes entre homem e mulher, entre jovens e velhos. Os jogadores não vinham fazer pergunta por medo de questionar a gente. Eles aceitavam tudo, mesmo que tivessem dúvidas táticas. Eu sabia tanto da Armênia quanto qualquer um de nós: porra nenhuma. Mas estudei russo, me virei, quis viver como eles, tomar a vodca deles, comer onde os caras comiam. Mas aí mudaram o presidente da Federação e nos demitiram", conta.

Bruno Gabrieli começou 2020 no JJ Urquiza, da Terceira Divisão da Argentina. "Nunca tive essa de ser um brasileiro desbravando o mercado internacional. Eu nunca trabalhei com futebol no Brasil, sou um analista e técnico argentino. Se o cara é bom, ele derruba as fronteiras."

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Ela queria ser normal

Quando jogava bola com os meninos nas ruas de Niterói, assistia à Copa do Mundo de 1990 pela TV ou treinava escondida da família na escolinha do Túlio Maravilha, Christiane Lessa não esperava chegar aos 37 anos com experiências no futebol em cinco países.

Ela jogou nas categorias de base do Vasco e do Fluminense, mas quis deixar o Brasil logo que completou 18 anos: "Eu achei que nunca teria uma chance. Queria estar em um lugar onde o futebol feminino fosse normal. Depois da Olimpíada de 1996 com estádio cheio, eu vi que esse lugar eram os Estados Unidos." E partiu.

"Joguei nos Estados Unidos, fui para a Islândia e no meu segundo ano lá virei jogadora e auxiliar técnica. O salário era baixo, precisava de um complemento", explica. Chris conciliou as tarefas até quando deu. Aos 27 anos decidiu focar na área técnica. Aí trabalhou em um clube da Noruega, na seleção chinesa sub-15 e no Shandong Luneng sub-20 até a volta aos EUA, quando dirigiu a estrela Carli Lloyd. Em pouco tempo virou auxiliar de um clube masculino profissional, o Atlanta Soccer Club.

"O treinador e o auxiliar eram meus amigos, fizeram o convite para uma conversa e gostei da ideia de ser a primeira mulher a trabalhar como treinadora na Liga. Fiz uma entrevista de quatro horas, passei e aprendi bastante", conta a auxiliar, que também trabalha em um time feminino de base afiliado ao Atlanta: "Eu quero dar para as minhas jogadoras tudo que eu queria ter tido."

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Indiana Jones

Escolhido pela Chapecoense como o primeiro preparador de goleiros do clube depois da tragédia aérea de 2016, Marcelo Costa Schroeder vinha de longa história no futebol do Qatar: ao longo de oito anos, trabalhou no Al Rayyan, na seleção sub-20 do país e na academia Aspire, de formação de jogadores. Depois da Chape, ainda trabalhou na seleção do Paquistão.

"Eu gosto de me aventurar. Minha filha me chama de Indiana Jones, porque quando vêm essas propostas eu gosto de ir."

As aventuras se acumulam: no período do Ramadã, quando o muçulmano jejua do nascer ao por do sol, havia treinos às 23h, 0h, 1h... Ele também lembra de quando um técnico o chamou durante o jogo para deixá-lo no comando, porque era hora de rezar: "Imagina essa cena no Brasil."

No Qatar, Marcelo Schroeder conta que seus jogadores de 15 ou 16 anos iam para os treinos dirigindo Land Rovers. E que quatro comandados até morreram em acidentes: "Eles correm muito, o trânsito é um grande problema do país". No Paquistão, a preocupação foi mais suave: o talento dos jogadores. "A técnica deles não é certa ou errada, mas é completamente diferente, então colocar seu conceito é complicado." Boa parte dos jogadores da seleção paquistanesa joga na Primeira e na Segunda Divisões da Dinamarca. "Seleção é seleção, não interessa qual."

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Carona para o sonho

Teve um dia em que o zagueiro Alex Silva, destaque do São Paulo na década passada, precisava ir a um evento e não tinha como. Acionou um funcionário do clube, que descolou o contato de um amigo que poderia fazer o serviço. Foi assim que começou uma parceria de oito anos de Anderson Hernandes como motorista e segurança de Alex Silva.

Por meio do zagueiro, Anderson conheceu funcionários do Jorge Wilstermann, clube boliviano em que ele encerrou a carreira. Dentro do mundo do futebol, o motorista fez cursos fora dos horários de serviço e se especializou em observação de jogadores. Hoje é supervisor do time sul-americano, leva e acompanha garotos em testes e ajuda na coordenação da escolinha no Brasil.

"Eu avalio os atletas e ajudo a desenvolver", conta o brasileiro. "Mas tenho contato com o Alex Silva até hoje. Trabalhei com ele, e o vínculo ficou de amizade, afinidade e muito respeito. Ele que me indicou para esse trabalho que é meu sonho, né?".

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Sebelas

O analista de desempenho Raphael Cabral não esquecerá tão cedo de como se fala os números em indonésio. Ele virou piada entre os jogadores durante um treino do Persipura ao usar o raciocínio lógico para tentar aplicar um exercício.

"Do número 12 em diante, até o 19, é só você introduzir uma palavra. O 12 é "dua belas", o 13 é "tiga belas", que é como se fosse 2 mais 10 ou 3 mais 10. Eu usei essa lógica para o 11, falei "satu belas", que é 1 mais 10. Só que essa palavra não existe, o pessoal caiu na risada. É o raciocínio que eu peguei lá na hora, mas não era assim", diverte-se o profissional.

Raphael trabalhou por cerca de 50 dias na Indonésia antes de voltar ao Brasil para trabalhar no Boa Esporte no Campeonato Mineiro: "Foi uma experiência muito válida, quero voltar." Ainda mais agora que ele sabe que 11 se fala "sebelas".

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Herdeiro coreano

Maranhense, Irwing de Freitas já trabalhou como preparador físico do Sampaio Corrêa durante a passagem do técnico Lisca. Mas suas experiências mais doidas foram mesmo fora do país. Passou por Arábia Saudita, Coreia do Sul e China.

Ele estava no Tianjin Quanjian, time onde jogavam os brasileiros Alexandre Pato e Geuvânio, quando Shu Yuhui foi preso. O chinês era dono do clube e foi acusado de propaganda enganosa e formação de pirâmide depois que uma criança de 4 anos que fazia tratamento contra câncer com produtos farmacêuticos da empresa de Yuhui morreu. Ao todo, 18 membros do grupo controlador do clube foram parar na cadeia, e o time simplesmente acabou.

O preparador físico foi contratado pelo Shangai Shenhua depois de um tempo desempregado e continua por lá até hoje. "Eu sou o único brasileiro da comissão. Trabalho com seis coreanos, é uma vida de lobo solitário. Mas eu trabalhei mais fora do que dentro do Brasil, então me acostumei."

Irwing diz que há um tradutor no clube para ajudar com o idioma e que não há qualquer dificuldade em comprar arroz, feijão, picanha, cuscuz e café. Ele só estranhou um pouco a rígida cultura coreana, quando trabalhou no Pohang Steelers. Mas, curiosamente, foi neste país onde nasceu seu filho Davi.

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Gafanhoto é pra turista

"Eu não sou conhecido no Brasil. Sou conhecido na Coreia e na China", conta Fabio Lefundes. Em 2013, ele foi incentivado pelo técnico coreano Choi Kang Hee a migrar da preparação física para a área técnica e até substituiu o comandante do Jeonbuk Motors por seis meses como interino. Hee estava a serviço da seleção do país.

Anos depois, outro gringo passou pela vida do brasileiro. Mas desta vez o deixou na mão. Auxiliar de Li Xiaopeng no Shandong Luneng, Fabio saiu de férias em 7 de dezembro de 2019. "Ele falou: vai para o Brasil e aguarda minha mensagem. Existiam possibilidades para ele". Xiaopeng esperava um convite para dirigir a seleção da China, mas isso nunca aconteceu. "Em 3 de janeiro eu cobrei e ele disse que nos separaríamos. Depois de dois anos de trabalho fui dispensado por uma mensagem. Imagina minha reação...".

Cotado para ser auxiliar da seleção, Fabio acabou desempregado em época de mercado fechado. Mais de dez anos depois de sair do Brasil está de volta e quer ser treinador. Não importa onde. "Depois do que vivi na Arábia Saudita e na Coreia do Sul, me adapto em qualquer lugar do mundo."

"Não é inteligente lutar contra o sistema. Se tem uma regra, ou você aceita ou nem vai para o lugar. Até porque tem muita coisa que é factoide: 'ah, eles comem gafanhoto'. Isso hoje em dia é muito mais para turista do que para morador."

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Bom dia, amor

Desde 2014, quando pintou o primeiro convite, são idas e vindas entre Brasil e Indonésia. "Eu vim trabalhar em uma terra onde eu não sabia nem dar bom dia, na cara e na coragem", conta Lydio de Souza. A indicação de um amigo para trabalhar no continente asiático fez mudar tudo na vida do ex-jogador. Inclusive a alimentação.

"A comida é muito apimentada. Os brasileiros que vêm para cá demoram a se adaptar. Aqui é só arroz e fritura. Eles comem fritura o tempo todo. E qualquer tempinho deles é para comer. Não sei se eles vivem para comer ou comem para viver", brinca o preparador físico brasileiro. "A alimentação aqui deixa a desejar."

Na Indonésia, ele começou a dividir o arroz e a fritura com uma mulher nativa, a Luri. "É tudo pela misericórdia de Deus. Acabou que minha esposa é indonesa. Conheci ela aqui e tivemos um envolvimento, tudo aquilo que acontece."

O problema é que o contrato com o time Persipura, o mesmo do analista de desempenho Raphael, acabou no fim de 2019, após quatro temporadas. Lydio agora trabalha como personal trainer no Rio de Janeiro à espera de novas propostas. O casamento continua de pé, mas à distância. "A Luri veio comigo, mas estava com saudade da Indonésia e decidiu voltar." Lydio embarca de volta à Ásia ainda neste semestre. É para acompanhar o parto de Luri.

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