"Você não iria voltar"

Boxeador brasileiro conta como é lutar com o resultado vendido: "Combinado era não passar do terceiro assalto"

Roberto Salim Colaboração para o UOL, em São Paulo Arquivo pessoal

Depois de mais de um ano afastado para tratar lesões nas duas mãos, o baiano Robson Conceição, campeão olímpico na Rio-2016, voltará na noite deste sábado aos ringues. Ele passou por uma cirurgia em novembro para corrigir micro-fraturas, heranças de 428 lutas nos tempos de amador.

"Ele fez todo o tratamento, está bem motivado e nós torcemos que agora na luta ele não sinta nada", disse o técnico Luiz Dórea, o mesmo que treinou Acelino "Popó" Freitas nos títulos mundiais, antes do embarque em Salvador.

Por mais que esse retorno seja importante para o esporte nacional, a grande história da noite estará no outro corner. Seu rival é Eduardo Pereira dos Reis, que contou ao UOL Esporte a história de uma luta de que participou em 2015 que estava vendida. Ninguém o avisou, mas os seis mil dólares prometidos para ele pelo combate só seriam pagos se... perdesse.

Arquivo pessoal

No quarto assalto, em uma troca de golpes no centro do ringue, eu estava batendo quando senti um vento. Escutei o árbitro da luta gritando "stop". Tinham jogado a toalha

Eduardo Pereira dos Reis, boxeador

No vestiário, o técnico falou assim: "Se eu não tivesse jogado a toalha, você não iria voltar para o Brasil. Na beira do ringue tinha um turco me fulminando com os olhos"

Eduardo Pereira dos Reis, boxeador

Reprodução Reprodução
Arquivo pessoal

A história do "Dinamita Reis"

Quando veio o convite para enfrentar o único brasileiro campeão olímpico do boxe na história, Eduardo Reis já tinha desistido do esporte. Ele se casou com Carolina no dia 22 de maio desse ano e trabalhava com ela em um projeto educacional em Blumenau. O casal já espera um filho.

Eduardo, que no mundo do boxe também é conhecido como "Dinamita Reis", estava até fora de forma, com oito quilos acima do seu peso normal. Após aceitar o convite, começou a treinar na academia KO Boxing, com o técnico Evandro "Japa" Cavalheiro, que vai ser seu instrutor na luta contra Robson Conceição.

A menção ao técnico no corner é importante por causa da história daquela luta de cinco anos atrás. O relato é tão insólito que lembra os velhos filmes da máfia do esporte.

Com a palavra, Eduardo, 30 anos, 31 lutas, 24 vitórias, sendo 17 por nocaute e 7 derrotas, 4 pela via rápida:

Arquivo pessoal

A grande chance

Era dezembro de 2015 e a minha carreira era apenas média, nada fora do normal. No amador, 30 lutas com 20 vitórias, não tinha chegado à equipe olímpica. No profissionalismo, as chances de evolução eram poucas. Mas eu sempre amei o boxe, desde criança. Foi quando recebi o telefonema do empresário Mauro Katzenelson.

A oferta era a chance de disputar uma luta na Alemanha. Valia um título internacional da FIB (a Federação Internacional de Boxe, uma das principais entidades que regem o esporte). Parecia algo grande, mas não me animei. Depois, pensei um pouco. Aquela luta poderia abrir as portas internacionais. Afinal, era a disputa de um título, o cinturão intercontinental dos leves.

Analisando o adversário, o cartel, achei que poderia ganhar. O nome era Yavuz Ertuerk. Era turco e lutava em categorias mais pesadas. Eu pensei assim: ele vai ter dificuldade para baixar para os leves (61,23kg), enquanto esse era o meu peso. Era a chance de cortar o cara ao meio.

Reprodução

Viagem sem técnico

A bolsa pela luta seria de 6 mil dólares. E me pareceu atraente.

Eu iria viajar com dois amigos. Um servia de sparring e o outro seria meu técnico na Alemanha. Um era o Tiago do Carmo e o outro, o Sérgio Carvalho. Acontece que, pouco antes da viagem, me informaram que só haveria uma passagem. Eu iria sozinho.

Tentaram me acalmar dizendo que isso não seria problema, pois o empresário argentino que intermediou a luta iria me encontrar no aeroporto na Alemanha e haveria um técnico argentino para subir comigo — outros lutadores de Buenos Aires estariam na mesma programação que eu. Até fiquei um pouco mais confiante. Este técnico certamente era uma pessoa mais experiente. Imaginando isso, fui em frente.

Embarquei um dia depois do Natal de 2015 no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, em um voo de várias escalas.

Arquivo pessoal

"Não parece em fim de carreira"

Quando eu cheguei à Alemanha, não era o empresário argentino quem me esperava. Eu falo bem espanhol, mas não consegui me comunicar com quem estava lá. Era outro empresário, europeu, que me levou ao hotel. Lá, fui apresentado a um argentino — que não era o empresário que tinha me contratado, mas um técnico que iria me acompanhar (na foto acima, ao meu lado). Até aí, não tinha percebido nada de diferente.

Demoramos para fazer uma refeição e eu estava faminto. Quando chegou a hora, comi um filé de frango com salada. O argentino estranhou meu físico e meu peso, ambos em dia. Ele comentou em castelhano que eu não parecia estar em fim de carreira. Na hora, não entendi o comentário.

De repente, chegaram ao quarto o empresário da luta, um médico e o lutador que eu iria enfrentar. Os três me mediram com o olhar e disseram que a luta seria um peso abaixo. Eu protestei, tinha assinado um contrato para lutar como peso leve. Eles insistiram: seria super-pena e não tinha conversa. No leve, eu podia pesar até 61,2 kg. Como super-pena, o peso cairia para 58,9 kg.

Arquivo pessoal

A toalha voando

No dia seguinte, na pesagem, os olhares ficaram mais desconfiados ainda. Mas eu dei o peso. Antes da luta, comi algumas coisas que tinha levado do Brasil. Tinha paçoquinha. E então uma van nos pegou no hotel e levou para o Teatro Antoniushaus, em Regensburg, local das lutas. O combate começou e eu estava lutando realmente bem. Existe até o vídeo no YouTube para provar o que eu estou falando. Eu estava vencendo a luta...

Até que, no quarto assalto, em uma troca de golpes no centro do ringue, eu estava batendo e depois realizando dois bloqueios quando senti um vento. Escutei o árbitro da luta gritando "stop" e vi que o meu "técnico" havia jogado a toalha.

O público vaiou. Eu não me conformei, mas não teve jeito. Quem estava no teatro disse que, um pouco antes, um grupo de turcos grandalhões havia subido ao canto do ringue e pressionado o técnico argentino. Isso não aparece no vídeo, não sei se editaram.

O que sei é que fui roubado.

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

"Você não iria voltar ao Brasil"

No vestiário, o argentino falou exatamente assim: "Se eu não tivesse jogado a toalha, você não iria voltar para o Brasil. Na beira do ringue tinha um turco me fulminando com os olhos".

Aos poucos, iam chegando as informações. Após o exame antidoping, que levou 40 minutos, eu já sabia que aquele empresário europeu tinha pedido ao empresário argentino um "morto" para enfrentar o Yavuz. Por isso, desde o começo tinham estranhado ao ver "um morto" com o meu físico, com o meu peso. Eu não era o morto que eles tinham contratado.

Eu tinha sido roubado no ringue e nos meus sonhos, mas ainda haveria problemas. Na volta para o hotel, achei mais seguro ir com os dirigentes da FIB. A esta altura eu já estava com medo. Quando cheguei ao hotel, eu me tranquei no quarto.

O empresário do lutador turco queria falar comigo. E eu não respondi. Como a decisão foi absurda, repercutiu mal na imprensa local. No dia seguinte, aquele empresário me apanhou no hotel para me levar para o aeroporto. Antes, iria me pagar. Primeiro, passou em um banco que estava fechado. Depois, foi em um lugar estranho e conversou com uns caras mal-encarados. Até filmei a cena com o celular e falei: "Eu não sei onde estou, nem o que vai acontecer".

Acho que ele viu o celular, mas voltou sem o dinheiro. E eu pensando o tempo todo: eles vão fazer alguma coisa comigo. Vão me zoar. O que eu ouvi é que parece que tinha negócio de lavagem de dinheiro em toda a história.

Até hoje o dinheiro não chegou

Já no aeroporto, ele pediu o número de minha conta e disse que depositaria o dinheiro. Disse que dariam 10 mil dólares, como um cala-boca, pelo que tinha ocorrido. A esta altura eu estava com mais receio ainda, chorando e com uma baita fome.

No aeroporto, aquele técnico argentino que jogou a toalha disse que o combinado é que eu não passaria do terceiro assalto. Eu chorava de soluçar.

Cheguei ao Brasil arrasado. Contei a alguns jornalistas. Fui reclamar com o Mauro Katzenelson e ele me disse que não sabia de acerto algum. Que ninguém tinha pedido um "morto" para ele, somente um pugilista brasileiro.

Tentei contato com o empresário alemão, por telefone, tentei contratar um advogado na Alemanha, mas entendi que, por conta da repercussão, eu não receberia nada. Eu não engulo essa história até hoje. Também não recebi nada. Até hoje.

Certa vez, no início da minha carreira, o lutador Nelson Gomes me disse: "Você só vai saber o que é o boxe quando lutar na Europa". Acho que agora eu sei o que ele queria dizer.

Mauro Katzenelson: "Eduardo foi para ganhar"

Empresário que mandou Eduardo Reis para a Alemanha, Mauro Katzenelson é de uma família com tradição no boxe brasileiro. Abraham Katzenelson foi o empresário do campeão mundial Eder Jofre. Mauro seguiu os passos de seu pai. Ele diz que não fez acordo com o empresário argentino que o procurou em dezembro de 2015 para mandar um "morto" para lutar contra o turco Yavuz Ertuerk.

"O Eduardo Reis viajou para ganhar e eu acreditava muito nisso", afirmou o empresário ao UOL Esporte. "Tanto que, antes dele sair do hotel para ir ao local da disputa, eu conversei com o Eduardo por telefone e o orientei a ir para cima do adversário, que não era tão bom. Eu tinha certeza de que o Eduardo venceria. E meu objetivo era abrir o caminho para que ele fizesse outras lutas internacionais".

Katzenelson diz que se estivesse junto na Alemanha e visse coisas irregulares acontecendo antes da luta — como a mudança de peso ocorrida às vésperas do combate — teria feito as malas junto com Eduardo e voltado ao Brasil. Quando Eduardo retornou a São Paulo, o empresário disse que entrou em contato com o empresário argentino e com o responsável pelo evento em Regensburg.

"Eles me contaram versões diferentes. E eu fiquei no meio da história. Não posso falar nada porque eu não estava lá. O [promotor europeu] disse que pagou ao Eduardo, mas eu fico com a versão do Eduardo. E a verdade é que o fato me deixou tão desanimado que eu me afastei por uns tempos do boxe".

+ Especiais

Fernando Moraes/UOL

Sonho e realidade: Gibi, um ex-aluno com sonho olímpico e outro morto em chacina.

Ler mais
The Ring Magazine via Getty Imag

Maguila e o nocaute para Foreman: "Parece que uma carreta passou por cima de mim".

Ler mais
Arquivo

Campeões sem milhões: a vida dos brasileiros donos de cinturões do MMA fora do UFC.

Ler mais
UOL

Lutador sai da cadeia após assassinato do filho, fala em injustiça e tenta recomeçar.

Ler mais
Topo