Entre sonho e realidade

Em projeto social em SP, técnico vê ex-aluno treinando em Portugal na semana em que outro morre em chacina

Roberto Salim Colaboração para o UOL, em São Paulo Fernando Moraes/UOL

"Infelizmente, não terei mais o Neilson para incentivar a garotada. Ele era um ídolo por aqui e estava nas semifinais de dois torneios que foram interrompidos por conta da pandemia", conta Antônio Cruz de Jesus, o Gibizinho.

Jovem baiano de 21 anos, Neilson Gonçalves Santos foi atingido por 15 disparos efetuados por cinco homens encapuzados há três semanas. Estava dentro da casa de sua companheira quando morreu. O endereço: Rua da Paz, Mata de São João, Bahia.

Na mesma semana em que Neílson morreu, Gibizinho viveu outro sentimento. Oposto. Um de seus alunos mais brilhantes, Wanderson de Oliveira está na equipe olímpica brasileira que treina em Portugal, com custos pagos pelo Comitê Olímpico do Brasil (COB), de olho na classificação para os Jogos de Tóquio, no ano que vem.

Em um país onde os jovens de famílias carentes enfrentam todo tipo de violência, o mundo do esporte muitas vezes é a única saída para sobreviver e sonhar. Vivendo entre o sonho e a realidade, Gibizinho sabe que um ringue de boxe pode significar muito.

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"Eu o aconselhei a não ir"

"Um dos meus melhores alunos", lembra o técnico. "Como os treinos estavam interrompidos por conta da quarentena, o Neilson foi visitar os familiares há um mês e pouco. E nesta terça-feira a mãe dele me ligou dizendo que tinham matado o filho dela".

Neilson (que Gibizinho mostra na foto da direita aí em cima —na esquerda, quem aparece é Wanderson) lutava na categoria 60 quilos, tinha começado no boxe em sua cidade, na academia do professor Zinho, e já possuía o título brasileiro de cadetes.

"Eu até o aconselhei a não ir para Camaçari [cidade que está a 20 quilômetros de Mata do São João], lá o bicho pega. O Neilson tinha um irmão gêmeo chamado Nelson, que tinha alguns problemas na cidade. Pois mataram o Nelson há algum tempo e eu aconselhei o Neilson a não aparecer por lá, que poderia haver confusão. E agora..."

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Foi para a seleção. Depois, para a cadeia

O envolvimento dos jovens com a violência é uma realidade que Gibizinho enfrenta há muito tempo. Quando era um dos treinadores do projeto "Luta pela Paz", no Complexo da Maré, era comum perder lutadores para a criminalidade.

"A sede do projeto era na comunidade de Nova Holanda e um menino que chegou à seleção brasileira está hoje na cadeia. Foi inclusive vice-campeão de um torneio pan-americano de boxe no Equador. Lembro chegando pequeno para os treinos".

No mundo da periferia, as opções são poucas e é por conhecer bem os caminhos e os becos sem saída que Gibizinho se orgulha do que faz. Camelô nas ruas de Salvador aos 12 anos, ele vendia roupas nas ruas por "uns trocados quando" quando descobriu o boxe.

Foi medalha de bronze nos Jogos Sul-americanos de Cuenca, em 1998, e defendeu o país nos Jogos Pan-americanos de Winnipeg, em 1999. "Eu comecei na academia Grêmio, do Augêncio de Almeida". Com o destaque alcançado nos ringues baianos, foi convidado a lutar pelo São Paulo Futebol Clube sob o comando do técnico Antônio Carollo. Chegou à seleção brasileira.

Faltou o gostinho de ter ido a uma Olimpíada. Estive no pré-olímpico de Buenos Aires em 1996 (para os Jogos de Atlanta-1996) e nas competições classificatórias dos Estados Unidos e do México para os Jogos de Sydney-2000. Infelizmente, não obtive a vaga

Gibizinho, ex-lutador da seleção brasileira e criador de projeto social em SP

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O sonho olímpico

O treinador perdeu a chance de ir para as Olimpíadas, mas não a vontade de subir ao ringue olímpico. Agora, com um lutador formado por ele. Como quem vive entre a realidade e o sonho, Gibizinho está tão perto de tragédias como a de Neílson quanto a de triunfos.

No caso, o triunfo é Wanderson de Oliveira, que começou com ele no projeto do Complexo da Maré — e chegava para os treinos ao lado daquele lutador da seleção que hoje está preso. Wanderson está na equipe olímpica brasileira que treina em Portugal. Tem mais de 1,70m de altura, se move com destreza pelo tablado e luta na categoria 63 kg.

"Eu o chamo de Sugar, pelo seu estilo de lutar que lembra o de Ray Leonard. O Wanderson começou comigo aos 11 anos, ganhava 200 reais e uma cesta básica todo mês. Ele era um dos esteios de sua família. Não sei o que poderia ter acontecido com ele se não fosse o esporte".

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Gibizinho investiu R$ 300 mil em sua fundação

O orgulho pela ascensão de "Sugar" Wanderson no mundo do boxe contrasta com a tristeza da difícil semana que teve na "Fundação Gibi Esporte, Educação e Lazer" pela morte de Neílson. Ele criou a entidade em Taboão da Serra, na grande São Paulo, em um terreno que tinha comprado nos tempos de lutador do São Paulo Futebol Clube.

Para montar o seu sonho, investiu cerca de 300 mil reais, juntados com a indenização de seu último trabalho no Projeto "Luta Pela Paz" e mais a venda de alguns imóveis e uma herança da família na Bahia. Mantém a "Fundação Gibi" com o seu empenho, a doação de incentivadores e amigos. Atualmente, a academia conta com 150 alunos que não pagam nada.

"Eu faço um projeto que mescla o social e o alto rendimento. E o Wanderson, quando não está no Rio, vem treinar aqui comigo. Mas eu sei que importante também é não abandonar a juventude e as famílias carentes. Distribuímos 857 cestas básicas para os mais necessitados nesta época de pandemia. E só estou esperando a doação de 20 computadores para dar início às aulas de inglês".

Outra necessidade da fundação: 108m2 de vidro para fechar o andar superior. "Seria bom que conseguíssemos antes da época das chuvas, pois no andar superior é que vai funcionar o curso de inglês". As aulas de boxe foram reiniciadas há uma semana, depois de quatro meses de paralisação.

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