"Podemos apagar a história?"

Atletas que marcaram época no Ibirapuera lamentam ideia de demolição

Roberto Salim Colaboração para o UOL, em São Paulo Gabriel Cabral/Folhapress

A tentativa de privatizar e até demolir o complexo esportivo do Ibirapuera, em São Paulo, tem provocado muita discussão. O governador João Doria (PSDB) já recebeu aval da Assembleia Legislativa para seguir com seu plano, o que vem provocando protestos de atletas, saudosos do mais tradicional conjunto esportivo da capital paulista.

Na última quinta-feira (17), após analisar o pedido de um grupo de juristas e atletas, a juíza Liliane Keyko Hioki decidiu suspender a publicação do edital que previa a privatização do complexo, composto de ginásios, estádio, pista, piscina. No plano do governo, o principal ginásio do Ibirapuera poderia dar lugar a um shopping center. Uma arena multiuso, para esportes e espetáculos, também poderia ser construída.

Erguido na década de 50, o ginásio do Ibirapuera e seu entorno já foram palco de grandes momentos do esporte brasileiro. O UOL Esporte procurou alguns atletas que suaram a camisa no local, ouviu suas lembranças e pediu sua opinião sobre a proposta do governo.

A seguir, o que eles disseram:

Gabriel Cabral/Folhapress
Estadão Conteúdo

Dizem que é obsoleto, mas podemos apagar a história?

Norminha (basquete)

Eu joguei vários torneios no Ibirapuera, mas o mais importante foi em 1971, quando foi disputado o primeiro Campeonato Mundial de basquetebol aqui no Brasil. Nós treinamos lá, e a Escola de Educação Física da USP também estava instalada no local. A gente não tinha noção do que era um ginásio superlotado. Todos os dias em que jogamos, tivemos o ginásio com 10 mil a 15 mil pessoas e, no lugar onde havia as arquibancadas, as pessoas nem sentavam. Formavam filas umas atrás das outras para que coubessem mais pessoas.

O Ibirapuera é muito importante para a história do nosso esporte porque foi ali que nós conseguimos a melhor colocação em um torneio tão expressivo: o terceiro lugar. Mas um terceiro lugar por cesta-average [critério de desempate obtido da divisão das cestas feitos pelas sofridas], porque por pontos na tabela, nós tínhamos conseguido ser vice.

Por confronto direto, nós perdemos a prata e ficamos em terceiro lugar, com a Tchecoeslováquia em segundo. Foi um momento maravilhoso, em que o povo gritava. Nunca tínhamos jogado com tanta gente, no máximo para umas 200 pessoas no ginásio. E de repente eu me vi em um palco maravilhoso. E as pessoas levavam suas bandeiras, gritavam nosso nome. Eu nunca me esqueci. Houve outras competições. Mundiais interclubes, Sul-americanos, Pan-americanos...

Eu sei que as pessoas dizem que é obsoleto, mas eu não sei até que ponto podemos apagar a história de tantas modalidades que estiveram ali sendo campeãs. Eu acho que poderiam remodelar, refazer, repaginar o Ibirapuera como fizeram em Wimbledon, que é lindo hoje. Se quisessem, poderiam. Mas quem sou eu, pobre criatura, pra falar não é? Não temos memória esportiva nesse país. Já temos tantos shoppings em São Paulo...

Eu não sei se essas arenas que eles vão por aí vão ser gratuitas ou não, ou se vai ser como eles dizem, com acesso aberto à população. Fico com as minhas lembranças e com muita tristeza se esse ginásio vier abaixo.

Arquivo pessoal

Lutei no ginásio quando Ali veio ao Brasil

Servílio Oliveira (boxe)

Foram muitos grandes momentos no Ibirapuera. Eu estive lá pela primeira vez com 14 anos, em 1962, quando teve o campeonato de "A Gazeta Esportiva". Eu conheci naquela tarde o Éder Jofre, que já era campeão do mundo. Foi neste ano que o meu irmão disputou o campeonato da Gazeta, e o Eduardo Suplicy também. Conhecer o Éder Jofre, para mim, foi uma das maiores e primeiras grandes alegrias e emoções dos momentos que passei no ginásio do Ibirapuera. E depois, como atleta, tive a oportunidade de lutar no ginásio, em setembro de 1971, quando o Muhammad Ali veio ao Brasil. Vivi outro momento mágico ao lutar contra José Cruz Garcia, um boxeador do México — lutador bravo para caramba, que vinha para cima e até xingava a minha mãe. Ele veio para cima, mas eu venci por pontos. Em dez assaltos.

Meu outro momento histórico, esse fatídico, no Ibirapuera foi no dia 3 de dezembro de 1971, quando eu lutei contra o Tony Moreno, um adversário duro, muito forte e sofri um descolamento de retina.

Mas esses momentos para mim foram maravilhosos: quando conheci Éder e quando participei de um evento em que esteve presente o Muhammad Ali.

Montagem UOL com fotos de Reprodução/Facebook e Divulgação

Não entra na minha cabeça o Ibirapuera acabar

Vera Mossa (vôlei)

Eu joguei bastante no Ibirapuera. Fiquei alojada lá durante o Campeonato Sul-Americano infantil, em 1980, que a gente jogou no Poliesportivo [um ginásio menor dentro do complexo do Ibirapuera]. Em 1982, joguei o Mundialito lá com a seleção brasileira. E a gente falou: "Caramba, a gente vai jogar nesse ginásio enorme. Não vai ter ninguém assistindo". E por incrível que pareça, por conta também do saudoso Luciano do Valle, que fez as transmissões pela Record, o ginásio lotou e foi uma emoção enorme. E foi a primeira vez que conseguimos ganhar da Coreia do Sul. Foi muito emocionante jogar aquele Mundialito, eu tenho as melhores lembranças do Ibirapuera.

Depois eu joguei uma final do Campeonato Brasileiro 82-83 pela Pirelli contra o Paulistano. Ginásio lotado também, foi muito lindo. Acompanhei muitos eventos ali. A vida inteira eu vivi ali dentro. Mesmo morando em Campinas [no interior de São Paulo], depois mudando para o Rio e Itália, eu estava sempre ali no Ibirapuera, pelo menos duas vezes por ano. Competi também na piscina, com oito anos de idade. Eu ainda nadava pelo clube Fonte São Paulo, aqui de Campinas, fomos para essa competição no Ibirapuera e eu tirei meu RG para participar dela.

Como eu era muito pequena, a competição não era de 50 metros, mas apenas de 25 metros. A gente nadou na lateral da piscina. É uma super lembrança. Tenho milhões de lembranças do Complexo do Ibirapuera e adoro aquele lugar. Não consigo imaginar aquilo acabado. É uma coisa que não entra na minha cabeça.

Mike Powell/Allsport/Getty Images

Minha vida mudou de forma drástica lá

Zequinha Barbosa (atletismo)

Meu maior momento na pista do Ibirapuera foi no dia 23 de junho de 1983, quando eu fiz a melhor marca do mundo nos 800 metros, 1m44s03, e bati o recorde do Troféu Brasil, valendo o recorde sul-americano e brasileiro, que era do Joaquim Cruz.

E ali a minha vida mudou de uma forma drástica pro bem. Carimbei meu passaporte não só para ir para os Jogos Pan-americanos de 1983 em Caracas, na Venezuela, e para o Campeonato Mundial em Helsinque [Finlândia]. E eu carimbei também meu passaporte para fazer parte de um grupo seleto que foi treinar nos Estados Unidos.

E este foi o meu melhor momento dentro do estádio do Ibirapuera: cheguei à frente do Joaquim Cruz e do Agberto Guimarães.

Justiça suspende edital de privatização

O Complexo foi esquecido pelo Poder Público e não se mostra tão grandioso como outrora, há deterioração das áreas e dos aparelhos, porém, isso não pode ser motivo para se destruir um marco da cidade. A preservação, como em qualquer país civilizado, deve prevalecer, porque nisso está o interesse público.

Liliane Keyko Hioki, juíza da 2ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo

Satiro Sodré/Divulgação CBDA

Torcemos e trabalhamos para isso não acontecer

Fabíola Molina (natação)

Não foram poucas, foram várias competições que eu fiz no Ibirapuera. Nadei o Campeonato Paulista e o Brasileiro juvenil, quando consegui o meu primeiro troféu de melhor performance. Lembro até hoje desse dia. É o maior troféu que eu recebi e foi conquistado na piscina do Ibirapuera. Nadei também o Troféu Brasil lá.

É muito triste você ver uma estrutura esportiva ter que ser não mais utilizada. Faz parte não só da minha história, mas também da de muitos atletas. Outros locais podem ser utilizados para outras atividades privadas, não um local público como este. Infelizmente nós não temos tantos locais como esse no Brasil. Isso não pode ser perdido. A comunidade, os atletas e a população de maneira geral deixam de ganhar.

Lá podem ser desenvolvidos muitos projetos sociais. Não tenho conhecimento do que acontece lá, mas ele pode ser revitalizado e utilizado pela população, além das competições que acontecem ocasionalmente. Sou muito contra esse fechamento do Ibirapuera. Estamos torcendo e estamos trabalhando para que isso não aconteça.

José Nascimento/Folha Imagem

Estudei e disputei um Mundial no Ibirapuera

Marcel (basquete)

A minha maior experiência no Ibirapuera foi, sem dúvida, a disputa do Campeonato Mundial em 1979 com o time do Sírio. Nós ganhamos o título, e uma particularidade daquela conquista é que nós estávamos concentrados no alojamento. Fazíamos a refeição lá e com isso já tirávamos de nossa frente o trânsito caótico de São Paulo. Os outros times ficavam no hotel, mas nós não precisávamos nos deslocar para treinar, fazer as refeições e para jogar. E dava mais união no time, porque não era um hotel, era um alojamento. Na época, eu estava de prova na Faculdade de Medicina. Acordava às seis horas da manhã, ia para Jundiaí, que era a minha cidade e fazia a prova (a prova terminava onze e meia, meio-dia). Às vezes dava tempo de treinar com o time na parte da manhã. Às vezes não dava, e aí eu descansava à tarde e jogava de noite. Eu jogava e jantava e no outro dia era outra prova. Ficava estudando e jogando o Mundial.

E tem outra boa história. Em 1985, eu jogava pelo Monte Líbano, e a gente estava disputando as finais do Campeonato Estadual. Foi na época em que nasceu a minha filha. Minha filha nasceu numa quinta ou sexta-feira, e o jogo em que o Monte Líbano foi campeão foi naquele final de semana. Eu ia toda noite visitar a minha filha no berçário antes e depois do jogo, sempre que eu tinha tempo. No último jogo a Ivonete, minha primeira esposa, teve alta e foi assistir ao jogo. Mas a Gabriela, minha filha, não teve alta. Teve que ficar mais uns dias internada porque estava com icterícia [coloração amarelada na pele e olhos, comum em recém-nascidos].

Mas foi uma memória muito boa aquela lá porque eu estava com filmadora. Tenho filmado a gente treinando — tudo naquelas filmagens velha. Não sei onde elas estão, mas eu tenho.

Reprodução

Governo Doria afirma que complexo é deficitário

Entre os argumentos para privatizar o complexo esportivo do Ibirapuera, o governo João Doria afirma que o espaço gera um déficit anual de R$ 10 milhões e que sua concessão à iniciativa privada faria aumentar a arrecadação estadual.

"A Secretaria de Esportes do Estado esclarece que o processo de concessão do Complexo Esportivo do Ibirapuera segue integralmente a legislação, com aprovação na Assembleia Legislativa, realização de audiências públicas e consulta pública, sempre respeitando o preceito de publicidade", escreveu a Procuradoria-Geral do Estado, em nota.

"O processo de concessão prevê investimentos integralmente privados de aproximadamente R$ 1 bilhão, que incluem a construção de uma arena multiuso com mais de 20 mil lugares, totalmente moderna, climatizada e pronta para sediar eventos esportivos e de outros segmentos em nível nacional e internacional, gerando mais visibilidade ao segmento esportivo, além de mais emprego e renda para a capital."

De acordo com o governo, os atletas que hoje usam o espaço seriam realocados para outras estruturas.

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