Coração no saibro

Após campanha inédita em Roland Garros, Bia lembra Guga e resgata empolgação dos brasileiros pelo tênis

Beatriz Cesarini e Rubens Lisboa Do UOL, em São Paulo Robert Prange/Getty Images

O significado do nome Beatriz tem origem do latim "beare", aquela que traz felicidade. É exatamente esse sentimento que Beatriz Haddad Maia vem despertando nas últimas semanas. A tenista fez uma campanha memorável e deixou seu coração em Roland Garros, um torneio que carrega um carinho especial entre os brasileiros por causa de Gustavo Kuerten, campeão em 1997, 2000 e 2001.

Mais de 20 anos depois, Bia mobilizou o país pela modalidade novamente ao alcançar marcas inéditas no tênis do Brasil e ganhar espaço como ídolo nacional mesmo após parar na semifinal diante da atual campeã e número 1 do mundo, Iga Swiatek.

O Brasil sorriu com Bia a cada grito de vibração em pontos conquistados, feições incrédulas e lágrimas quando percebeu o quão longe havia chegado. Ela também emocionou ao deixar um recado aos avós na câmera da transmissão do torneio e fez a torcida revisitar o sentimento de acompanhar Guga desenhando um coração no saibro daquela mesma quadra.

A conquista de Bia faz parte da construção de uma maturidade como tenista que vem ao longo dos anos. Ela está mais forte, mais resistente e consolidou uma equipe multidisciplinar que a ajuda a atingir seu melhor desempenho físico e psicológico. O resultado está aí. A tenista levou o Brasil à semifinal de um Grand Slam após 22 anos e poderá entrar no top 10 do mundo.

Tim Clayton/Corbis via Getty Images
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Relembre a caminhada mágica

Bia estreou em Roland Garros como cabeça de chave e já mostrou para que veio: não deu chances à alemã Tatjana Maria e venceu com tranquilidade por 2 sets a 0, avançando para a segunda rodada.

Em seguida, a brasileira quebrou um tabu e alcançou a terceira rodada pela primeira vez em sua sexta participação em Roland Garros ao superar a russa Diana Shnaider por 6/2, 5/7 e 6/4, na Quadra 7 do torneio parisiense.

Na terceira rodada, Bia mostrou sua força. Precisou salvar match point para vencer a russa Ekaterina Alexandrova. Dois dias depois, viu a espanhola Sara Sorribes Tormo abrir 7/6 e 3/0, mas conseguiu uma memorável vitória de virada em 3h51min — a partida mais longa do circuito feminino em 2023.

Nas quartas, a paulista de 27 anos superou a tunisiana Ons Jabeur, número 7 do mundo, por 3/6, 7/6 (5) e 6/1 e conquistou mais uma marca importante: se tornou a primeira brasileira na Era Aberta do Tênis — a partir de 1968 — a alcançar as semis de Roland Garros.

Bia se despediu da edição de 2023 de Roland Garros nas semifinais, quando enfrentou a melhor do mundo, Iga Swiatek, e perdeu por 2 sets a 0. Em um jogo extremamente difícil, a brasileira se impôs no segundo set e atuou em alto nível, e viu a adversária perder oito games pela primeira vez no torneio.

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A primeira brasileira desde...

A história do tênis brasileiro se confunde com a de Maria Esther Bueno, dona de sete títulos de Grand Slam em simples e 19 na soma com duplas e duplas mistas. E o nome da Bailarina do Tênis — que morreu em 8 de junho de 2018 — voltou à tona por causa das marcas atingidas por Bia em Roland Garros.

Primeiro, ela foi a primeira mulher brasileira a vencer três jogos na chave feminina de simples em Roland Garros desde Maria Esther Bueno em 1968, além de ser a primeira a atingir as oitavas de final desde Patricia Medrado, em 1979.

Ao avançar às quartas de final, voltou a encerrar um jejum brasileiro de 55 anos, também em campanha feita pela maior tenista brasileira.

Por fim, a disputa da semifinal de Roland Garros também foi a primeira de uma brasileira em 57 anos, além da primeira entre os quatro torneios de Grand Slam em 55 anos, desde Maria Esther Bueno.

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Uma brasileira no top 10?

A campanha de Bia em Roland Garros marca uma nova era para o tênis feminino brasileiro também no ranking de simples da WTA. A menos que a número 1 do mundo Iga Swiatek seja derrotada no sábado (10) na final contra Karolina Muchova, a brasileira estreará no top 10 na segunda-feira.

Bia sai de Paris somando 2.910 pontos e só seria superada por Muchova, que vai a 2.995 se conseguir o feito de vencer dois sets contra Iga Swiatek, que não perde um desde as oitavas de final de 2022.

Desde o surgimento do ranking WTA, jamais uma brasileira esteve entre as dez mais bem colocadas do mundo. Maria Esther Bueno, que já estava nos anos finais da carreira, havia sido 29ª do mundo após a criação do ranking oficial.

Ainda que Muchova seja a campeã e tire Bia Haddad Maia no top 10, a 11ª posição já será a melhor de uma brasileira desde a criação do ranking de simples, em 1975. Entre homens e mulheres, apenas Guga atingiu a lista dos dez mais bem colocados de simples.

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Mais forte e mais resistente

Se antigamente Bia era obrigada a abandonar um jogo que se estendia por problemas musculares, agora é ela quem força a partida longa e cansa as adversárias. A ascensão da brasileira está ligada, também, à evolução da forma física, que a ajuda tanto no desempenho quanto na prevenção de lesões graves. A tenista está cada vez mais forte e resistente.

Em Roland Garros, contra a espanhola Sara Sorribes, a Bia protagonizou a partida mais extensa na categoria feminina deste ano no torneio: foram 3h51min. Além disso, a atleta paulista disputou uma terceira rodada difícil em simples e horas depois foi para o segundo jogo nas duplas, quando acabou eliminada com Victoria Azarenka. Bia chegou à semifinal com 12h59min em quadra contra 5h36min da adversária Iga Swiatek.

"O mérito disso é do meu profissionalismo junto com toda a minha equipe que faz um trabalho integrado em toda essa área, principalmente meu preparador físico Rodrigo Urso e meu fisioterapeuta Paulo Cerutti. Há uma ótima comunicação entre eles e com o Rafael Paciaroni, meu treinador. Tudo isso faz muita diferença no processo", disse Bia ao UOL pouco antes de Roland Garros.

A cada início de ano, essa equipe citada por Bia se reúne para definir a rotina diária da atleta, com muito cuidado no pré e pós-treino. Isso vale para exercícios físicos, alimentação e vida fora das quadras. Junto com a tenista, os profissionais conseguem ajustar qualidade de sono, desconfortos musculares e até nível de ansiedade e humor.

Força de Bia Haddad Maia impressiona

Tenista brasileira teve uma grande transformação física nos últimos anos

Divulgação/RTB

A importância de Paciaroni

Desde outubro de 2020, Bia treina com o técnico Rafael Paciaroni, que trabalhou em academias no Reino Unido e na Espanha e tem um livro publicado sobre trabalho com tênis profissional. Antes de receber o convite da própria atleta paulista, ele atuava com tenistas de categorias de base e transição, com um perfil mais discreto.

Bia sempre faz questão de exaltar que, além de melhorar seu tênis, Paciaroni foi responsável por sua evolução psicológica. O técnico ajudou a atleta a entender melhor sobre a pressão, assumindo a exposição de erros e acertos em cada jogo. Era com ele que Bia se comunicava durante todos os jogos de Roland Garros.

"Ela pode estar super preparada, treinando muito bem, com as informações claras na cabeça, mas se ela entrar na hora do jogo e ela pensar duas coisas erradas e se perder nos pensamentos, acabou tudo. E acaba tudo na hora", disse Paciaroni em entrevista recente ao Saque e Voleio.

"Não consigo ver muita evolução sem exposição. Em um esporte que te expõe 100% do tempo. Um esporte que te deixa o tempo inteiro flertando com a pressão. Não acredito em nenhum mecanismo de tirar pressão, então o meu papel não é tirar pressão da Bia. O papel dela não é tirar pressão. O papel dela é assumir a pressão e aprender a lidar com aquilo. Porque a partir do momento que ela aprende a lidar com isso, o céu se torna o limite", explicou o técnico.

Pierre Suu/WireImage
Guga acompanhou a última partida de Bia em Roland Garros com a família

Passagem de bastão

Os feitos de Bia em Roland Garros resgataram o que o torcedor brasileiro viveu na Era Guga e deu um gostinho aos que não eram nascidos na época em que o tricampeão reinou no saibro de Paris. O ídolo da tenista estava na Philippe Chatrier acompanhando a semifinal, como esteve próximo em diferentes momentos da carreira dela.

Quando tinha 14 anos, Bia encantou Larri Passos, o mentor de Guga, e se juntou à equipe do técnico na academia dele em Balneário Camboriú, onde chegou a treinar com o ex-tenista. Ainda no período em que era treinada por Larri, ela venceu seu primeiro jogo de WTA em Florianópolis com Kuerten no box, inclusive chegando a ser instruída por ele.

Guga também foi importante para Bia ao conseguir o apoio financeiro de um banco para apoiá-la nos primeiros anos de circuito profissional. E durante a campanha até a semifinal em Paris, ele foi citado como inspiração pela tenista:

"Guga é um ídolo para mim. Quando ele ganhou o primeiro título, eu tinha um ano de idade, mas cresci ouvindo o nome dele. É um cara muito bacana, um cara muito importante para a gente, e certamente fui inspirada por ele".

22 anos depois, é Bia Haddad Maia quem inspira tantos brasileiros em Roland Garros.

Guga é um ídolo para mim. Quando ele ganhou o primeiro título, eu tinha um ano de idade, mas cresci ouvindo o nome dele. É um cara bacana, muito importante para a gente, e certamente me serviu de inspiração"

Bia Haddad Maia, sobre a influência de Gustavo Kuerten

Pressão na era dos haters

Aos 27 anos, Bia teve uma carreira de recomeços e foi nas dificuldades que se deparou com os haters. Independente de tudo o que já tinha conquistado, se estivesse na pior, os comentários ruins chegavam.

"Quando venço, aparece um monte de foto minha criança com pessoas que nunca mais tinha visto; apareceram amigos que nunca mais haviam falado comigo. Isso mostra o quanto as pessoas são 'resultadistas' no Brasil. Ter vivido tudo isso cedo fez com que eu aprendesse a lidar com a pressão", disse Bia em entrevista ao UOL em fevereiro do ano passado.

A discrição nas redes sociais é a forma que Bia usou para se blindar de qualquer tipo de ataque. Um mês antes de competir em Roland Garros, a tenista caiu nas quartas do WTA 1000 de Roma e recebeu inúmeros comentários negativos. O ex-atleta Fernando Meligeni ficou indignado e saiu em defesa da atleta, enquanto ela decidiu não responder às provocações e preferiu não comentar sobre o assunto.

EMMANUEL DUNAND/AFP EMMANUEL DUNAND/AFP

Uma vida marcada por recomeços

Bia Haddad vive o auge da carreira como tenista aos 27 anos, que completou na última semana em Paris. Com juros, ela corresponde ao potencial e à pressão que recebeu desde os primeiros anos de carreira, como nas finais juvenis que fez em Roland Garros. A vida da paulistana no tênis foi marcada por recomeços.

Lesões no ombro, cirurgias de hérnia de disco, suspensão por doping, perda de patrocínios, perda de pontos no ranking. Dos 17 anos, quando jogou pela primeira vez um torneio WTA até os 27, quando foi à semifinal de Roland Garros, foram muitos meses com interrupções, mudanças de local de treinos, de equipes multidisciplinares e de treinadores. Muitas vezes precisando remar tudo de novo, do zero.

Se esses fatores atrapalharam para que ela não pudesse atingir os resultados antes, hoje fazem da brasileira uma jogadora muito forte mentalmente e que se recusa a perder, mesmo estando contra as cordas em um dos templos do tênis. Bia representa bem um esporte em que é preciso recomeçar a cada semana.

Stephen Pond/Getty Images for LTA Bia Haddad durante o WTA de Birmingham

Bia Haddad durante o WTA de Birmingham

O que vem por aí

Além de romper barreiras no tênis brasileiro, Bia está construindo um legado na modalidade e, principalmente, no feminino. Aos 27 anos, a tenista está em seu melhor momento, mostrou potencial para brigar pelos maiores torneios e até brigar por medalha no próximo ano, em sua provável primeira participação em Olimpíadas.

A campanha histórica de Bia em Roland Garros une forças com a própria boa sequência no ano passado e com o bronze inédito de Luisa Stefani e Laura Pigossi em Tóquio-2021.

Se até hoje discutimos se foi aproveitada a Era Guga, a realidade no Brasil é que não há um torneio para que os novos fãs possam ver Bia e Luisa jogando e inspirando novas meninas e meninos para o interesse no esporte, já que desde 2016 o país não recebe um WTA, Bia inclusive já fez campanha pedindo "Rio Open para elas", já que hoje o evento se estende apenas aos homens.

"A gente está merecendo não só por mim, mas pelas meninas, pelo que elas vêm fazendo, a Laura [Pigossi] por dois games não passou o quali de Roland Garros, a Carol [Meligeni] teve um jogo duro também na segunda rodada do quali, a Ingrid [Martins] agora no top 100 ganhando rodada em Grand Slam, a Luísa [Stefani] nem se fale com os resultados que ela tem. Enfim, a gente tem um monte de jogadoras e a gente está merecendo sim mais oportunidades, mais apoio, mais torneios. Acho que tudo isso pode talvez despertar também, possibilitar a oportunidade de meninas jovens poderem jogar, ter mais contato com a gente", afirmou.

Enquanto luta fora de quadra, Bia já sabe seus próximos passos dentro dela. A brasileira mira agora a temporada de grama, onde emplacou dois títulos seguidos no ano passado, em Nottingham e Birmingham. O maior desafio será Wimbledon, quando a brasileira terá mais uma oportunidade de quebrar barreiras em um Grand Slam.

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