Kevyn foi ao estádio

A história do torcedor que superou violência familiar e sustenta a mãe e três irmãos com sua pensão

Bruno Fernandes e Josué Seixas Colaboração para o UOL, em Maceió (AL) Augusto Oliveira/CSA

Há pouco mais de quinze anos, o alagoano Kevyn Matheus Oliveira da Silva nasceu. Teve de ser prematuro porque o amor que sobrava à mãe faltou ao pai. O homem batia sempre na mulher e, com seis meses de gestação, o menino veio ao mundo. Não enxergava, algo que só foi descoberto dez meses depois de seu nascimento.

Há 15 anos, Kevyn, a mãe e os três irmãos mais novos sobrevivem com o benefício da aposentadoria do garoto — um salário mínimo que dá conta de cinco bocas. Apesar das dificuldades financeiras, ele nunca se importou com isso. Somente queria estar presente em um jogo do CSA, na arquibancada, no meio daquele clima que ouvia pelo rádio religiosamente.

Aconteceu quando a mãe, Márcia Silva, entrou em contato com a torcida Azulcrinadas. O grupo é formado por mulheres que acompanham o clube. Elas descobriram a história do menino e se mobilizaram. As torcedoras compraram ingressos para mãe e filho.

A camisa do clube já estava garantida. O avô do menino tinha dado de presente em dezembro do ano passado, em comemoração aos seus 15 anos. Kevyn conheceu os jogadores no vestiário antes da partida, participou da oração do grupo e entrou em campo com os jogadores - estava ao lado de Rafael Bilu, seu favorito.

Augusto Oliveira/CSA

Fosse somente isso, já seria uma grande história. Só que, antes da partida, enquanto conversava com a mãe e as pessoas ao redor sobre a emoção de estar ali, Kevyn fez uma previsão. O jogo daquele dia, contra o Coruripe, acabaria 4 a 0 para o seu CSA — algo que parecia improvável, já que o Azulão vinha de oito jogos sem vencer.

Quem assistiu aos primeiros 45 minutos do jogo certamente não acreditava que o sonho do garoto se tornaria real. O primeiro gol saiu apenas aos 52 minutos, nos acréscimos do primeiro tempo, com Renatinho. Depois disso, não parou mais. Rodrigo Pimpão, Allano e Gustavo Hebling marcaram.

O último só saiu aos 48 minutos do segundo tempo. Rafael Bilu, o favorito de Kevyn, fez um lindo lançamento para Hebling, que dominou com estilo e tocou para o fundo do gol. 4 a 0, apito final. Kevyn sorria e brincava: "Eu acertei, eu acertei".

Dificuldades são compensadas por sonhos realizados

"Em casa, ele pulava, gritava, cantava e fazia uma verdadeira festa. Ele sempre quis ir para o meio da torcida, ficar perto da bateria e sentir a vibração dos instrumentos. Ano passado, sempre me dizia que queria ir para o jogo. Eu não tinha como comprar o ingresso, não tinha como correr atrás para ele conhecer os jogadores e fazer ele sentir essa emoção", explica a mãe sobre a luta pela realização do desejo do filho.

Antes do seu momento de maior felicidade, como ele mesmo define, Kevyn passou por problemas grandes demais para alguém de apenas 15 anos. Sua mãe casou novamente e foi espancada pelo novo companheiro na presença do então garoto. Teve todos os seus dentes quebrados e se separou há três anos. Esse é o pai dos três irmãos.

"Depois de 12 anos, o pai do Kevyn voltou à nossa vida, pediu para conviver com o filho e eu deixei, mas de uma hora para outra ele foi morar em São Paulo, não ligou mais para ele e não deu mais satisfação. O Kevyn sempre pergunta por ele, mas infelizmente não posso fazer muita coisa", contou.

Bruno Fernandes/Josué Seixas

Em Alagoas, que possui a segunda menor renda per capita do país, R$ 731, à frente apenas do Maranhão (R$ 636), os últimos anos têm sido marcados pelo aumento no número de casos de feminicídios e agressões que chegam ao Poder Judiciário do Estado. Desde 2016, quando esses crimes passaram a ser acompanhados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a quantidade de processos só cresce.

Em 2018, o aumento foi de 650% em relação a 2016, passando de 2 casos para 15. Os tribunais de Justiça também perceberam crescimento no número de processos pendentes relativos à violência contra a mulher.

Em 2016, foram 5110 casos assim. Um ano depois, o número pulou para 5666. No ano passado, chegaram 6436 casos. As medidas protetivas também aumentaram ao longo desses três anos, de 40 casos em 2016 para 748 em 2018. Os dados referentes ao ano de 2019 ainda não foram divulgados oficialmente, mas, de acordo com o compilado realizado pela Secretaria de Estado da Segurança Pública (SSP-AL) durante o Carnaval, já é possível ter uma ideia.

O relatório da pasta divulgado na quarta-feira, 26, mostrou que 141 casos de violência contra a mulher foram atendidos pela Polícia Militar. Os dados são do Núcleo de Estatística e Análise Criminal (Neac) da SSP. A Secretaria de Segurança considera seis dias de carnaval: da sexta-feira até a quarta-feira de Cinzas.

Augusto Oliveira/CSA Augusto Oliveira/CSA

Entrada em campo foi um pedido de aniversário

O futebol está na internet, nos rádios, na TV e até nas primeiras páginas dos jornais, pronto para consumo de qualquer espectador. Para que Kevyn também participasse, ele teve a ajuda de amigos. E desenvolveu uma paixão pelo seu rádio vermelho, que pendura no pescoço e não deixa ficar longe.

"Meu presente de aniversário de 15 anos veio um pouco depois, mas eu estou muito feliz, nem imaginava que ia acontecer isso", agradece Kevyn, citando Deus e sua mãe, que o ajudou a realizar o sonho. Durante o jogo, Kevyn pulava e cantava as músicas do CSA com alguns amigos em meio a dezenas de milhares de torcedores vestidos de azul.

Alguns dias antes, Kevyn teve uma crise de ansiedade. O CSA foi derrotado por 2 a 0 pelo Bahia, na Copa do Nordeste, e ele ficou apreensivo com a situação em que o clube se encontrava. Era a oitava partida sem vitória, dentro ou fora de casa. "Ele ficou no quarto passando mal, estava chorando, pedindo para Deus cuidar do time, pedindo para que Deus fizesse com que seu time ganhasse", conta a mãe.

O momento de desespero do filho por um esporte que ele nem mesmo enxerga fez despertar um sentimento na mãe, que começou a correr atrás de realizar o sonho do filho. Ela, então, foi conversar com uma colega que está sempre presente nos jogos do Azulão. "No outro dia, a Fernandja Campos [presidente da torcida Azulcrinadas] entrou em contato comigo pedindo os dados do Kevyn. Depois desse contato, o resto do dia foi de ansiedade para saber se iria entrar em campo ou não", conta.

Augusto Oliveira/CSA Augusto Oliveira/CSA

A missão de levar o garoto para dentro do campo foi abraçada pelos próprio elenco do CSA. "Falei com alguns jogadores para conseguir o contato do Rafael Bilu, para quem eu tinha mandado mensagem também. Assim que soube, ele nos respondeu. Depois, o assessor dele falou comigo e conseguimos fazer o Kevyn entrar no vestiário", explica Fernandja, que também teve auxílio de Gisa Mello, ex-funcionária do CSA. Foi ela a responsável pela maioria dos registros e também pela entrada do garoto em campo.

No rádio, Kevyn ouvia, como sempre, o narrador Wellython Martins, da CBN de Maceió. Ele conheceu o profissional da narração esportiva naquele mesmo dia. "Quando cheguei no Rei Pelé, o Kevyn estava sendo conduzido por um grupo de meninas que me chamaram para apresentá-lo. A emoção dele, a energia positiva e o amor dele pelo CSA é coisa contagiante e grandiosa".

O narrador acompanhou o adolescente pelo túnel que dá acesso ao gramado do Rei Pelé, no bairro do Trapiche da Barra, e ouviu confissões sobre seu amor pelo rádio alagoano e quanto gosta de suas narrações. "Kevyn me mostrou com seu jeito simples que a vida pode ser muito mais especial do que já é, pode ser muito mais formidável pode ser muito mais emocionante", disse Wellython.

Bruno Fernandes/Josué Seixas

O momento de alegria foi registrado pelos fotógrafos, torcedores e pela própria mãe dentro do estádio. Era uma escapatória dos problemas que o menino de 15 anos enfrenta todos os dias. Um dos irmãos também tem um problema de visão, mas não é cego — precisa trocar de óculos todo ano, cada vez mais caros.

Kevyn e sua família moram no bairro João Sampaio, em Maceió. A casa foi doada pelo avô de Kevyn. O garoto estuda dois dias em uma escola própria para cegos e nos outros três frequenta uma escola regular.

"Enfrentamos um pouco de dificuldade mas sempre passa, até por que é um salário mínimo para cinco pessoas. Para tudo: remédio, roupa, alimentação, água, luz e gás. É pouco, realmente. Às vezes, ele quer alguma coisa, mas nem sempre posso dar".

Sobre a camisa que ganhou de seu jogador favorito, Kevyn resume em uma frase. "Ela será sempre meu manto". Assim que acabou o jogo, ele pediu para que a mãe lavasse a camisa. Saiu vestido nela no dia seguinte, como se ostentasse um troféu. Vestiu-a também no primeiro dia de aula, porque de todas as histórias que construiu é essa a que menos esperava.

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