Um belo goleiro

Alisson ignora elogios por aparência para focar no que importa: o que o transformou no melhor goleiro do mundo

Brunno Carvalho Do UOL, em São Paulo Buda Mendes/Getty Images

Alisson foi titular do Inter quando tinha apenas 21 anos. Mas como apenas talento não convence opinião pública, críticos demoraram a aceitar que o gaúcho era mais que um rosto bonito. O peso para convencer que ele era o cara para ser o camisa 1 da seleção brasileira que tentava se recuperar do vexame do 7 a 1 foi alto.

O goleiro teve de ser bancado por Dunga, Taffarel e Tite para convencer. Sorte a nossa.

Hoje o Brasil tem, em seu titular do gol, um astro. Ele é fundamental em um Liverpool campeão europeu, campeão mundial e quase campeão inglês. Com títulos e segurança em campo, superou a alcunha de "goleiro gato" para ser o melhor do mundo na posição - segundo o prêmio The Best da Fifa.

Cinco anos depois da estreia na seleção brasileira, ninguém mais questiona a titularidade do goleiro de 27 anos, que agora quer ser campeão da Copa do Mundo. "Não é uma crítica, uma desconfiança de jornalistas, de torcedores, que vai me fazer parar, desistir dos meus sonhos".

Eu lido com as falas sobre a minha aparência da mesma maneira que lido com as críticas. Se for algo que me ajudará a crescer, absorvo de maneira positiva. Mas se for algo apenas para encher meu ego, jogo fora. Nós, goleiros, temos sempre que ter confiança, mas a confiança nunca pode passar o limite, nunca pode ter o ego maior do que a nossa concentração

Alisson

Michael Regan - FIFA/FIFA via Getty Images Michael Regan - FIFA/FIFA via Getty Images

O jeito de jogar que o transformou no melhor goleiro do mundo

Alisson não é o goleiro clássico que seu avô exaltava. Naqueles tempos, fazer boas defesas era suficiente. Não mais. Em um futebol que prega a posse de bola e uma série de termos que muita gente não entende, o novo goleiro, agora, precisa ser participativo nas jogadas ofensivas da equipe. Alisson faz esse combo como poucos.

"Eu sempre gostei de jogar com os pés, de ajudar na fase de criação. Dou, em média, 30 a 40 passes por jogo. Tem partida que acabo com três ou quatro bolas longas, no máximo. O restante são todos passes curtos para os zagueiros. Muitas vezes, até quando sou mais pressionado, tento sair jogando. Na seleção brasileira é igual. O Tite é um treinador que gosta disso também".

O estilo de jogo de Alisson se encaixa na maneira como atua o Liverpool. O clube inglês é o segundo com mais passes trocados no Campeonato Inglês, atrás apenas do Manchester City de Pep Guardiola, o pai do "tiki-taka".

"Não adianta o goleiro ser bom jogando com os pés se o time não tem a característica para isso. Não vai dar certo. O que faz dar certo não é só a qualidade que eu tenho, mas a qualidade dos meus companheiros, a disposição dos meus companheiros de sempre dar opção para jogar. Quando precisar dar chutão, a gente dá chutão, não tem problema ".

Os números de Alisson na Premier League comprovam isso. Só dois goleiros, na temporada atual, têm assistências registradas em seu nome. Ele e Aaron Ramsdale, Bournemouth. Além disso, Alisson é o terceiro goleiro que mais participa do jogo do torneio, com 29 toques na bola por partida - mas, com 86,3% de acertos em seus passes, ele é mais preciso do que os dois que tocam mais do que ele (Tim Krul, do Norwich, com 35 passes e 59,8% de acertos, e Mat Ryan, do Brighton, com 32, 7 passes, mas 81,7% de acertos).

Andrew Powell/Liverpool FC via Getty Images

Quando o pé funcionou

O ponto alto do jogo com os pés de Alisson aconteceu nesta temporada no clássico contra o Manchester United. No final da partida, o goleiro fez ligação direta para Salah, que avançou e fez o segundo do Liverpool. A felicidade foi tanta que Alisson cruzou o campo para comemorar. Essa é a assistência que ele ostenta em suas estatísticas.

Plumb Images/Leicester City FC via Getty Imag

Quando falhou

Mas o pé já deixou Alisson na mão, também. Na temporada passada, o goleiro tentou driblar Iheanacho, atacante do Leicester, mas acabou desarmado e o Liverpool sofreu o gol. "Foi um processo de adaptação. Talvez em outro campeonato, o árbitro teria marcado falta naquele lance. Foi algo para me deixar esperto".

Sempre me senti muito confortável jogando com os pés. É algo que me deixa ainda mais ligado no jogo, por estar participando bastante, mesmo não fazendo defesas. Estou sempre sendo opção, sendo um jogador a mais para a equipe

Alisson

Jogo com os pés começou com Jardine

Alisson chegou ao Internacional aos 8 anos. E foi na categoria de base do clube gaúcho que ele começou a ser incentivado a usar os pés. O incentivador? André Jardine, atual técnico da seleção brasileira olímpica.

"A gente chamava o Jardine de Guardiola, porque ele gostava muito do estilo do Barcelona e do tiki-taka. Ele sempre me incentivou muito a usar os pés. Quando eu cheguei ao profissional, já cheguei com essa característica".

"É uma satisfação ver onde o Alisson chegou", diz Jardine. "É uma grande pessoa, um grande goleiro, desde sempre com muito potencial. Sempre procurei uma saída de bola construída nas equipes que trabalhei e quando ele começou a trabalhar comigo, incentivei muito ele a aprender isso".

Phil Noble/Reuters

"Gosto de fazer o simples"

O jeito "moderno" de jogar assusta quem não está acostumado. Ver um goleiro trocar passes e fazer poucas defesas espalhafatosas pode dar uma impressão de que Alisson não faz os chamados milagres. Mas esse é o jeito do gaúcho. E ele avisa: não espere saltos mirabolantes para defesas simples.

"Para mim, quanto mais a gente simplificar, menos a chance de se atrapalhar. Vou sempre procurar fazer o simples bem feito. Se precisar me atirar, me atiro. Se precisar fazer uma defesa esticada, me estico. Mas vai ser difícil me ver fazendo uma defesa espalhafatosa, saltando sem ser necessário, jogando as pernas para o alto só para aparecer".

Em uma defesa tão bem montada como a do Liverpool, Alisson é o segundo goleiro que menos precisou fazer defesas no Campeonato Inglês até o momento. Mas o brasileiro faz questão de ressaltar que não fazer defesas não significa trabalhar pouco.

"Tem vezes que não faço nenhuma defesa em uma partida, mas meu estilo é muito participativo. Trabalho bastante com os pés, participo da criação de jogadas desde a área defensiva. Tem vezes que vocês falam que só fiz uma defesa. Mas foi uma defesa e cobri três vezes a profundidade que sairia um lance perigoso, cortei cinco cruzamentos. Parece que estou sem fazer nada ali no gol, mas a minha cabeça está trabalhando, estou concentrado no jogo. O goleiro tem que estar pronto para trabalhar a qualquer momento e fazendo a defesa quando for necessário".

David Ramos - FIFA/FIFA via Getty Images David Ramos - FIFA/FIFA via Getty Images

"Não trabalhei pouco na Copa"

A análise sobre trabalhar pouco também surgiu na Copa do Mundo. Alisson foi um dos goleiros com menos defesas durante o torneio na Rússia. "Pouco trabalho depende do ponto de vista. Eu estou todo dia treinando, me dedicando. O jogo é um detalhe. A nossa preparação é diária e o goleiro é um dos que mais treinam. É o primeiro a chegar no campo, é o último a sair".

Na época da Copa do Mundo, o pouco número de defesas era motivo de orgulho para o técnico Tite. Mostrava que seu sistema defensivo era seguro e não deixava quase nada chegar ao camisa 1.

A seleção brasileira levou apenas três gols no campeonato, mas dois deles vieram justamente contra a Bélgica, na partida que eliminou o time de Tite nas quartas de final. "Aquele time não merecia ter sido eliminado. A gente foi o melhor time em campo. Em dois lances, a Bélgica acabou sendo feliz".

"Foi um momento muito doloroso para todos os jogadores, porque é como se botasse um ponto final em um sonho. Alguns não terão outra oportunidade. Eu espero ter outra oportunidade e vou trabalhar para ter essa chance".

Lucas Figueiredo/CBF

Taffarel bancou Alisson titular

Alisson foi titular durante quase todo o ciclo da Copa do Mundo de 2018. Mas isso só aconteceu porque Taffarel o bancou. Se dependesse da opinião pública, ele dificilmente vestiria a camisa 1. Como explicar que o reserva da Roma era a nossa melhor opção para a posição?

"O Taffarel sempre acreditou no meu potencial. Ele é a pessoa que melhor me conhece como jogador. Quando as pessoas criticavam, ele vinha falar que confiava em mim e no meu potencial. Hoje, a gente tem uma relação de amigos, mas, no momento em que estamos na seleção, somos dois profissionais. Eu na minha área, e ele, na dele".

As críticas sobre Alisson ficaram mais pesadas após a Copa América de 2016. O Brasil teve uma eliminação precoce para o Peru e ele falhou em um gol que acabou anulado pela arbitragem porque a bola havia saído. Mesmo assim, as pessoas não esqueceram que quando a bola chegou, Alisson deixou passar.

"Não é fácil receber crítica porque, normalmente, ela vem por um lance ou uma falha. Não analisam o geral, seu desempenho. Eu entendi isso e assimilei. Naquele momento, tive todo o apoio da comissão técnica, do Taffarel, do Dunga".

Dunga caiu junto com a seleção brasileira na Copa América, e Tite assumiu seu lugar. Mas duas coisas não mudaram: Taffarel como preparador de goleiros e Alisson titular do gol. "Foi uma continuidade natural. O Tite disse que confiava no meu potencial. Ele sempre fala que seleção brasileira é momento. Eu tive a oportunidade naquele momento e aproveitei".

O Alisson foi uma aposta minha, depois do Dunga e do Tite. Sempre soube que com o tempo ele ia agradar todo mundo. Agora é fácil acreditar com todo o sucesso dele. Mas infelizmente as pessoas são assim, sempre querem ver para depois crer

Taffarel

Buda Mendes/Getty Images

Ele quer a Copa do Mundo

O gosto amargo de uma eliminação em Copa do Mundo ainda está na boca de Alisson. Com as Eliminatórias batendo à porta, o goleiro não quer cravar sua titularidade, mas não esconde o desejo de disputar mais um Mundial e colocar o título inédito no currículo.

"Eu vou trabalhar sempre para corresponder às expectativas que as pessoas têm em cima de mim na seleção brasileira. Estou em um nível que o mínimo que posso fazer é manter. Trabalho forte para melhorar a cada dia e poder fazer o sonho de vencer uma Copa do Mundo se tornar realidade".

Desde a Copa passada, o principal adversário de Alisson no gol da seleção brasileira é Ederson. O goleiro do Manchester City foi para o último Mundial como reserva e foi eleito o melhor da posição no Campeonato Inglês passado. Além dele, Santos (Athletico), Cássio (Corinthians) e Weverton (Palmeiras) colecionam convocações com Tite.

"A seleção conta com grandes goleiros. Tem o Ederson, o Weverton, os jovens da seleção olímpica. Eu não temo perder a titularidade. O mais importante para mim é fazer parte do processo, estar no meio da seleção brasileira. Mas sou uma pessoa com muita ambição, então eu quero sempre jogar, sempre ser titular".

Harold Cunningham - UEFA/UEFA via Getty Images Harold Cunningham - UEFA/UEFA via Getty Images

Liverpool dominante quer acabar com a seca em casa

Para realizar o sonho de jogar mais uma Copa do Mundo, um bom desempenho pelo clube é fundamental, e Alisson tem os méritos de integrar o melhor Liverpool dos últimos tempos. Campeão da Liga dos Campeões na temporada passada, a equipe inglesa caminha para conquistar pela primeira vez o Campeonato Inglês desde que virou "Premier League".

O domínio da equipe de Jürgen Klopp inclui uma sequência invicta de 42 jogos no Campeonato Inglês, menor apenas que a de 49 do Arsenal entre 2003 e 2004. Com mais 13 jogos para o fim da competição, o Liverpool poderá deixar mais essa marca para trás. Assim, não é exagero dizer que os feitos do clube serão lembrados por muito tempo.

"A gente sabe que entrou para a história com o título da Liga dos Campeões, na temporada passada, e, agora, com a campanha que estamos fazendo no Campeonato Inglês", admite Alisson. "Mas nosso foco não são os recordes, mas manter esse desempenho para conseguir o título".

A iminente conquista do Campeonato Inglês tem um peso diferente para o Liverpool. O jejum desde a temporada 1989/90 já deixou marcas pelo caminho. Um dos grandes ídolos do clube, Steven Gerrard acabou marcado por escorregar contra o Chelsea e entregar o gol que acabou com o sonho da conquista na temporada 2013/14.

O próprio Alisson já se frustrou na busca pelo título. Na temporada passada, o Liverpool foi derrotado apenas uma vez no Inglês: para o Manchester City. E foi justamente o time de Pep Guardiola que ficou com a taça, somando um ponto a mais que o Liverpool.

"Com o passar do tempo, você vai atingindo uma certa maturidade para lidar com essas situações. Depois da derrota amarga do ano passado, estamos em um nível de concentração suficiente para não diminuir o ritmo até sermos matematicamente campeões".

Jan Kruger - UEFA/UEFA via Getty Images Jan Kruger - UEFA/UEFA via Getty Images

A virada sobre o Barcelona de Messi

A campanha vitoriosa do Liverpool na Liga dos Campeões foi marcada por uma virada improvável sobre o Barcelona depois de uma derrota por 3 a 0 no primeiro jogo. Na volta, com o Anfield lotado, o clube inglês venceu por 4 a 0 com um gol de Origi que ficou marcado pela esperteza de Alexander-Arnold. Na cobrança de escanteio, o lateral percebeu a defesa espanhola desatenta e cobrou rápido. O atacante recebeu, livre, dentro da área e mandou para as redes.

"Na hora desse lance, o Messi e o Suárez estavam na minha frente. Os dois começaram a olhar para o chão, colocar a mão na cabeça. Tenho certeza de que passou pela mente deles: 'não é possível que vai acontecer outra vez'".

A "outra vez" também teve Alisson envolvido. O brasileiro era goleiro da Roma na temporada 2017/18, quando os italianos eliminaram o Barcelona nas quartas de final. Depois de perder por 4 a 1 no Camp Nou, a Roma avançou com uma vitória por 3 a 0 no Estádio Olímpico.

"Não consegui chegar à final com a Roma. Mas ter conseguido no ano seguinte ser campeão com o Liverpool foi muito gratificante para mim".

Andrew Powell/Liverpool FC via Getty Images Andrew Powell/Liverpool FC via Getty Images

Klopp é desse jeito mesmo

Os times de Jürgen Klopp costumam ser um retrato do que é o treinador: intensos e explosivos. Se a pressão sobre o adversário é altíssima quando a bola é perdida, os gritos e trejeitos à beira do campo mantêm a proporção. Tudo vindo de um Klopp autêntico, sem ser um personagem, como garante Alisson.

"O Klopp é daquele jeito mesmo. Ele não finge nem atua nas entrevistas. É um cara apaixonado por futebol, pelo que faz. A gente acredita naquilo que ele acredita. Dentro do clube, ele trata todo mundo bem - não só os jogadores. Ele se importa com todos. Além de um ótimo treinador, é um ótimo ser humano, que é o mais importante".

O alemão é um dos grandes entusiastas do futebol de Alisson na Europa. Em entrevista recente, Klopp disse que se soubesse que o brasileiro fosse tão bom, teria pagado o dobro dos 72,5 milhões de euros (R$ 317 milhões na época) desembolsados pelo Liverpool.

"O Klopp conhece bem todos os seus jogadores, esse é um ponto positivo dele. Ele consegue extrair 100% de todo mundo. Não importa quem esteja em campo, a equipe continua jogando da mesma maneira".

"Aquilo não foi uma despedida, foi um 'até logo'"

Divulgação/Internacional

As luzes do Beira-Rio já estavam se apagando. Na arquibancada, os torcedores que aguardaram para celebrar o título gaúcho de 2016 já se dirigiam ao túnel de saída. Alheio a tudo isso, um Alisson descalço sentava junto à trave de um dos gols com lágrimas nos olhos e pensamentos infinitos na cabeça.

O momento solitário era o capítulo final de uma história que começou aos 8 anos. O menino de Novo Hamburgo realizava o sonho de vestir a camisa do clube do coração. Vendido à Roma, o homem de 24 se preparava para os novos desafios que viriam, em um lugar bem distante daquele que se acostumou a chamar de casa.

"Foi difícil, cara. Por mais que eu estivesse realizando meu sonho de jogar na Europa, não foi fácil me despedir do Inter. O choro ali era de emoção por ter vivido tudo o que vivi dentro do clube. Eu sabia que estava tomando a decisão correta para a minha carreira, mas o Inter é meu time do coração, onde eu cresci, onde aprendi os valores da vida. No meu choro não tinha tristeza, só alegria e gratidão".

Desde que deixou o Beira-Rio e foi para a Europa, Alisson pôde trazer de volta o lado corneta. "Hoje, eu sou um total torcedor do Inter. Tem vezes que estou em casa e xingo alguns jogadores quando tomam uma decisão errada. Aí, eu viro torcedor mesmo", brinca.

Aos 27 anos, Alisson vive o melhor momento da carreira e tem muito para conquistar pela frente. Quando o ciclo europeu se encerrar, o torcedor do Inter não descarta voltar a ser jogador do clube do Beira-Rio. "Aquilo não foi uma despedida, foi um 'até logo'. Quem sabe, mais para frente, não volto a jogar naquele gramado, usando aquela camisa".

Divulgação/Internacional

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