Admirável mundo novo

Olimpíadas projetam futuro de eventos globais num planeta ainda ameaçado pela covid-19

Adriano Wilkson e Felipe Pereira Do UOL, em Tóquio (JAP) Ezra Shaw/Getty Images

Às 2 horas da manhã no aeroporto de Doha, no Qatar, Gabriel Medina curvou a coluna para escorar os cotovelos em uma grade na frente do guichê da companhia aérea, à espera de seu voo para Tóquio. O brasileiro é o melhor surfista do mundo, o grande astro da estreia do surfe no programa olímpico.

Mesmo assim, seu acesso ao avião está fechado. O voo está atrasado e não há nenhum funcionário para orientá-lo. Ele está sozinho. Abduzido pelo telefone, é trazido de volta quando um jornalista o aborda, mas ele explica que não dará entrevistas porque está "resolvendo tretas".

A pandemia de covid-19, as restrições e protocolos que ela criou fizeram o favorito ao ouro olímpico viajar ao outro lado do mundo sozinho, sem nenhum amigo ou funcionário para ajudar no desembaraço burocrático que uma viagem dessas exige. Talvez pela primeira vez na vida. Talvez não pela última.

A chama olímpica se acenderá na manhã desta sexta-feira e dará início ao primeiro grande evento global desse novo mundo assolado por um vírus mortal em constante mutação. Serão 80 mil pessoas de todo o planeta reunidas em uma cidade de 20 milhões de habitantes, que teme um surto incontrolável. Os erros e acertos de Tóquio devem projetar as possibilidades dos próximos eventos, a começar pela Copa do Mundo do Qatar no ano que vem.

Ezra Shaw/Getty Images

Tóquio deixará como legado seus protocolos anticovid

Os fogos de artifício da cerimônia de abertura, marcada para às 8h (de Brasília), anunciarão a primeira tentativa da humanidade em ir na contramão do distanciamento social, medida efetiva para deter a propagação do vírus. Para minimizar os riscos, o Comitê Olímpico Internacional apostou em outras iniciativas, como vacinação, testes em massa e rastreio de contatos.

A própria abertura, palco tradicional do desfile de atletas, esse ano terá apenas quatro pessoas por país. Jornalistas, patrocinadores e autoridades também ganharam menos convites. A maior parte das competições acontecerão sem torcedores.

Quando uma cidade se candidata a sediar uma edição das Olimpíadas, ela costuma justificar o investimento na infraestrutura com a promessa de que o evento deixará um legado para a população. Tóquio-2020 entregará para a população mundial os protocolos anticovid.

Como o novo coronavírus dificilmente será erradicado do mundo, será preciso conviver com ele por muito tempo. Máscaras continuarão fazendo parte do uniforme das delegações e muito álcool em gel ainda vai evaporar das mãos de atletas e equipes de apoio.

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Pessoas comuns em tempos incomuns

Algumas pessoas sentem de perto a vida voltando ao normal, ainda que gradualmente, graças aos Jogos. Na véspera da abertura, o guia turístico Yutaka Ito levava alguns jornalistas a um tour pela baía de Tóquio, uma das raras exceções nas regras do protocolo olímpico. Aos 65 anos, ele se dizia um vencedor por conseguir trabalhar, mesmo em condições incomuns.

Há dois anos minha empresa avisou que eu trabalharia nas Olimpíadas, mas aí veio o coronavírus e mudou tudo. Os japoneses são amigáveis e sabem receber bem, mas com essa situação é muito difícil ter hospitalidade.

Yutaka Ito, guia turístico em Tóquio

Valery SharifulinTASS via Getty Images Valery SharifulinTASS via Getty Images

Jaleco amarelo para evitar contato com locais

Se o HIV mudou a forma como os seres humanos fazem sexo, o coronavírus pode mudar a forma como eles se encontram. No aeroporto de Narita, em Tóquio, os visitantes olímpicos estão sendo orientados a evitar "high fives", o internacionalmente conhecido cumprimento com a mão espalmada. Mas por mais cuidados que se tomem, não é possível garantir distância do vírus.

E, neste mundo de incertezas, Tóquio-2020 conta com tentativas de controle quase surreais. A brasileira Paula Canongia, diretora de projetos de uma empresa americana, trabalha em sua terceira edição olímpica consecutiva.

Ela contratou 60 pessoas ao redor do mundo para trabalhar em nove restaurantes espalhados por locais de competição e no centro de imprensa. Estes profissionais precisaram vestir um jaleco amarelo para serem identificados - e evitados - pelos japoneses.

Paula considera que há uma curva de aprendizagem a ser vencida pela organização das Olimpíadas. Ela não crê em solução definitiva no curto prazo.

Estes Jogos servem de aprendizado. Em Pequim [Olimpíadas de Inverno em 2022] a situação estará parecida. Haverá quarentena, restrições e testes.

Paula Canongia, diretora de projetos na organização da Olimpíada

Ramsey Cardy/Sportsfile via Getty Images Ramsey Cardy/Sportsfile via Getty Images

Na saúde e na catástrofe

Mesmo diante de um desafio dessa magnitude e até mesmo do risco de morrer, os japoneses aceitaram declarar abertos os 32º Jogos Olímpicos. Essa força lembra aquela que transforma atletas comuns em campeões.

Antropólogos e psicólogos costumam afirmar que uma competição esportiva é uma simulação de aspectos da ancestralidade, como se a nossa espécie ainda estivesse lutando pela sobrevivência. A diferença é que antes a adrenalina disparava quando havia perseguição à caça ou disputa com uma tribo rival.

Este espírito combativo não sumiu da humanidade. A presença dele é fácil de ser notada nos esportes. Mas ela também existe nas catástrofes. Em furacões, terremotos ou vazamentos nucleares, como o de Fukushima em 2011, as pessoas se juntam para superar o imenso desafio imposto sobre elas. Por que seria diferente com a pandemia?

Envolvida na organização das Olimpíadas, a japonesa Ai Sato concorda que o evento tem a capacidade de lembrar ao ser humano sua faceta mais resistente. Ela diz que muitos de seus conterrâneos passaram a discutir a depressão e a ansiedade depois que a tenista Naomi Osaka, maior atleta japonesa no evento, revelou sofrer dessas doenças.

Sato diz agora torcer pela tenista não apenas por motivos puramente esportivos.

Se ela for bem nas Olimpíadas muitas pessoas com o mesmo problema se identificarão e terão esperança.

Ai Sato, funcionária na organização da Olimpíada

Carl Court/Getty Images Carl Court/Getty Images

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