Superando recordes

Brasil muda narrativa de super-humanos e encerra a Paralimpíada com recorde de ouro e de medalhas

Demétrio Vecchioli Colunista do UOL, em São Paulo Takuma Matsushita/CPB

O movimento paralímpico brasileiro fez uma aposta arriscada para as Paralimpíadas de Tóquio. Pediu expressamente que o público e a imprensa deixassem de se referir aos atletas como um exemplo de superação, como era até 2016, inclusive por patrocinadores e dirigentes, para tratá-los como atletas de alto rendimento que têm, como característica, uma deficiência física, visual ou intelectual. Super-humanos, como disse Carlos Arthur Nuzman na abertura das Paralimpíadas do Rio, nunca mais.

Foi colocada na agenda uma palavra que simplesmente não existia no vocabulário até o ano passado: capacitismo, que é o preconceito derivado da capacidade de alguém, muitas vezes implícito. Para se chegar ao elogio a alguém que ganhou uma medalha "mesmo" com uma deficiência, antes há a ideia de que, por causa da deficiência, ela tem menos capacidade. E precisou "superar" isso.

Os atletas paralímpicos querem ser conhecidos pelos seus feitos esportivos, pelas vitórias, talvez até pela forma como superaram as dificuldades que fazem parte da rotina de um atleta: lesões, covid, falta de estrutura para treinar, perda de um ente querido, derrotas doloridas. Mas, em um país onde se diz que o brasileiro gosta de vencer, não de determinado esporte, o plano só daria certo se os paralímpicos vencessem. E eles vencerem. Ganharam 72 medalhas (igualando o recorde histórico), sendo 22 de ouro (melhorando em uma conquista o antigo recorde).

As conquistas permitiram ao Brasil conhecer novos heróis, novos atletas a quem admirar. Nomes como Gabriel Araújo, o Gabrielzinho, nadador de apenas 19 anos, Carol Santiago, que chegou ao movimento paralímpico depois dos 30 anos e, aos 36, ganhou três medalhas de ouro, Raimundo Nonato, craque e artilheiro do time de futebol de cinco, Yesltsin Jacques, melhor fundista cego do mundo...

Alaor Filho Alaor Filho

Brasil se descobriu independente de multi-medalhistas

Há pouco mais de dois anos, depois que André Brasil foi excluído do movimento paralímpico, porque uma banca classificadora entendeu que a deficiência dele não o torna apto para ser atleta paralímpico, e que diversos atletas mais fortes foram rebaixados para disputarem a mesma classe de Daniel Dias, a sensação é que o Brasil levaria algum tempo, ao menos mais um ciclo paralímpico, para se recuperar do baque de perder seus dois principais e mais vitoriosos atletas.

Desde que Clodoaldo Silva ganhou sete provas em Atenas-2004, o Brasil se acostumou a se apoiar no desempenho de alguns poucos atletas capazes de ganharem mais medalhas que países inteiros. Sem os nove ouros somados de André e Daniel, o Brasil seria décimo do quadro de medalhas de Londres-2012, não sétimo. Sem os sete desses dois nadadores em Pequim-2008, teria sido 15º, não nono.

Sem poder contar com André e com as vitórias de Daniel, seria natural que o Brasil despencasse no quadro de medalhas. Mas não foi isso que aconteceu em Tóquio, por uma diversificação nas conquistas. Se em toda a história o Brasil só havia ganhado ouro em seis modalidades, em Tóquio venceu em oito, sendo quatro (canoagem, taekwondo, levantamento de peso e goalball) inéditas. Na natação, somente os dois astros foram ao alto do pódio nas três Paralimpíadas anteriores. Em Tóquio cinco brasileiros chegaram lá.

Miriam Jeske/CPB @miriamjeske.ph Miriam Jeske/CPB @miriamjeske.ph

Tóquio tem recorde de modalidades com ouros brasileiros

De todas as 14 medalhas de ouro vencidas pelo Brasil em 2016, só três medalhas foram para o peito de mulheres, sendo uma delas em prova mista da bocha. Agora, em Tóquio, esse número mais do que dobrou: foram sete medalhas de ouro conquistadas por cinco mulheres diferentes. E todas elas com histórias de destaque.

No judô, o Brasil nunca havia conquistado medalhas de ouro no feminino, um tabu que foi quebrado por Alana Maldonado, atleta de baixa visão que defende o Palmeiras, chegou a Tóquio como favorita, e faturou o título da categoria até 70kg.

No atletismo, um ouro veio com a atleta mais velha da delegação, Beth Gomes, de 56 anos, no lançamento do disco, e outro com Silvânia Costa, bicampeã do salto em distância depois de se tornar mãe, cumprir suspensão por doping e ter menos de seis meses para treinar.

No halterofilismo, Mariana D'Andrea se tornou a primeira pessoa brasileira, homem ou mulher, a conquistar uma medalha de ouro. Até então o país tinha apenas uma prata.

E, pela primeira vez, o grande destaque da delegação é uma mulher: Carol Santiago. Nadadora formada em Pernambuco na mesma geração que a Joanna Maranhão, ela chegou a largar o esporte, voltando para competir nas águas abertas. Deficiente visual, só entrou para o movimento paralímpico no atual ciclo e, logo na sua primeira vez nos Jogos, encerrou um jejum de 17 anos sem ouro na natação feminina. Ainda ganhou mais uma prata e um bronze.

Wander Roberto/CPB @wander_imagemg

Nem tudo deu certo

Olhando de frente para trás, ainda ficou a impressão que a campanha do Brasil poderia ter sido até melhor, especialmente no atletismo.

Na final feminina da categoria T11, para cegas, o Brasil tinha a recordista mundial, Jerusa dos Santos, e Thalita Simplicio. Duas atletas em uma final com quatro participantes. O pior dos resultados seria um bronze. Mas foi ainda pior. Jerusa foi eliminada porque a cordinha que a liga ao guia se rompeu no meio da prova e Thalita, depois e completar em terceiro, foi desclassificada pelo mesmo motivo. No caso dela, o incidente aconteceu literalmente no último metro.

As duas depois entrariam também na final dos 400m, desta vez as duas chegando ao pódio, mas Thalita ficou sem o ouro por meros 3 milésimos, em prova decidida a favor de uma chinesa só no photofinishing. Já Daniel Martins, que não perdia nenhuma prova desde 2015 e é recordista mundial, sequer se classificou à final dos 400m na classe T20. Ele competiu voltando de lesão.

Mas nenhuma frustração se compara à de Thiago Paulino, no arremesso de peso da classe T57. Ele venceu a prova com os dois melhores arremessos da noite, foi dormir campeão, e acordou medalhista de bronze. Por uma decisão tomada por um júri que diz ter tido acesso a um vídeo que mostra uma suposta irregularidade cometida por Thiago nos dois arremessos, ambos foram invalidados. O que era ouro virou bronze.

Ainda que o desempenho do Brasil tenha sido o melhor da história paralímpica no atletismo (nove de ouro, seis de prata, oito de bronze), em quarto no quadro de medalhas da modalidade, na comparação com o Mundial de 2019 o time brasileiro ficou devendo. Em Dubai, em número semelhante de provas, foram 14 de ouro, nove de prata e 16 de bronze. Dezesseis medalhas a mais do que as conquistadas em Tóquio. Na comparação com a Rio-2016 foram dez medalhas a menos no Japão.

ALE CABRAL/CPB ALE CABRAL/CPB

Potência coletiva

A Paralimpíada distribui quase o dobro de medalhas na comparação com uma Olimpíada, pela variedade de classes. Só provas de 100 metros no atletismo foram 28, entre homens e mulheres. Mas há muito menos variedade de esportes coletivos, apenas cinco: goaball, vôlei sentado, rúgbi em cadeira de rodas, basquete em cadeira de rodas e futebol de 5. Este último, só no masculino.

Das nove medalhas de ouro distribuídas, o Brasil ganhou duas, ainda que só tenha disputado cinco delas — não conseguiu vaga nem nas versões adaptadas do rúgbi e do basquete.

No futebol de 5, o resultado não foi novidade. Desde que a modalidade para cegos entrou no programa paralímpico, o Brasil só venceu. Em Tóquio, a seleção de Jefinho e Ricardinho faturou seu quinto título consecutivo, desta vez com um novo herói. Quem? Raimundo Nonato, artilheiro do time com seis gols e autor do gol da decisão contra a Argentina, um golaço.

Já no goalball, o time masculino conquistou o ouro inédito. Atual bicampeão mundial, Brasil nunca tinha chegado ao alto do pódio masculino e alcançou o feito com um show de Josemarcio, artilheiro do campeonato com 26 gols, e Leomon Moreno, que anotou 25. O trio titular ainda teve Romário, que tem função mais defensiva.

O Brasil ainda ganhou mais um bronze no vôlei sentado feminino, apenas o segundo na história da modalidade, repetindo o resultado de 2016, e quase beliscou medalha no masculino, terminando em quarto. No goalball feminino, teve uma medalha na mão, mas a deixou escapar sofrendo um gol no fim da semifinal contra os Estados Unidos. Perdeu esse jogo nos pênaltis e depois, com a moral baixa, foi presa fácil para o Japão na decisão do bronze.

Matsui Mikihito/CPB Matsui Mikihito/CPB

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