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Como evitar que a seca histórica na Amazônia se torne um 'novo normal'?

Rio Negro afetado pela seca em Iranduba, no Amazonas, em 7 de outubro de 2023 Imagem: REUTERS - BRUNO KELLY

Tiago da Mota e Silva

Colaboração para Ecoa

08/03/2024 04h03

O ano de 2023 foi marcado por uma seca histórica em toda a bacia do Rio Amazonas, uma rede hidrográfica de 1.700 rios e cerca de 16 mil quilômetros quadrados de superfície de águas distribuídas por nove países.

Antes desta estiagem, a seca de 2015 detinha o título de a mais severa do século. Anteriormente, a recordista era a de 2010. Um pouco antes, a de 2005. As constantes quebras de recordes parecem estar se tornando uma tendência preocupante.

Segundo as projeções do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas), o aumento das temperaturas médias do planeta conduziria a mudanças em florestas tropicais, como é o caso da Amazônia, tornando-as mais quentes e menos úmidas.

Tais transformações teriam impactos nas funções que essas florestas e seus rios exercem para a vida no planeta, dentre as quais estão o provisionamento de água. Infelizmente, a seca de 2023 apenas corrobora com essas projeções.

"Nesse sentido, as secas da Amazônia poderiam entrar para os livros didáticos", opina Adriane Esquivel Muelbert, professora em Ecologia de Florestas na Universidade de Birmingham.

Elas [as secas] demonstram como estamos vivendo as mudanças climáticas neste instante e como as pessoas estão sofrendo com isso, perdendo suas casas em deslizamentos, sua pesca, sua colheita
Adriane Muelbert, professora

Pescador procura por peixes no que restou de um lago, em Anavilhanas, durante seca histórica no Amazonas Imagem: Tiago da Mota e Silva

Crise humanitária e ecológica

Diante desse horizonte, o Painel Científico para a Amazônia (SPA, na sigla em inglês) publicou uma declaração sobre a seca e suas consequências inesperadas, destacando a crise humanitária e ecológica que ela desencadeou. No documento, menciona-se, inclusive, a preocupante possibilidade de eventos extremos, como este, se converterem no 'novo normal' para a região.

Bióloga, pesquisadora do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) e uma das autoras da declaração, Flávia Costa explica o que seria esse novo normal para a Amazônia em um cenário de mudanças climáticas:

Estamos falando de um intervalo menor entre eventos extremos, no qual a gente nem tem tempo de recuperar de um e já vem vindo um outro.
Flávia Costa, bióloga

Para Marielos Peña-Claros, co-presidente do Painel e ecóloga da Universidade de Wageningen (Holanda), algumas das consequências desta seca foram inesperadas. Ela cita, por exemplo, a geração insuficiente de energia elétrica no Equador, devido ao baixo nível das barragens hidrelétricas, ou a dificuldade de acesso à água limpa, como foi o caso das comunidades ribeirinhas amazonenses.

Seca histórica revela garrafa de vidro, que deveria estar no leito do Lago do Prato, no Amazonas Imagem: Divulgação/Inpa

"Nós estamos vendo como é viver um cenário de secas mais frequentes e estamos percebendo que não estamos preparados para isso", diz Marielos. "O conhecimento científico que temos é muito claro: temos de tomar iniciativas para impedir o desmatamento e a degradação dos rios e florestas se quisermos mitigar eventos como esse de 2023."

Outro colaborador do Painel, o pesquisador e biólogo Adalberto Val esteve em uma expedição científica avaliando o impacto da seca na nos rios Negro e Solimões entre novembro e dezembro do ano passado. Apesar do cenário entristecedor, com alta mortalidade de peixes, Val se surpreendeu com a resiliência dos ecossistemas e sua capacidade de recuperação.

Você vê lagos secando e, ainda assim, lá a diversidade aquática está presente. Picos de desafio como esse, porém, impõem uma reflexão sobre um novo momento, sobre o futuro
Adalberto Val, biólogo

Seca no lago Tefé, no Amazonas, em fotos de 28 e 29 de setembro de 2023 Imagem: João Paulo Borges Pedro / Instituto Mamirauá

Ciência e política

"O que nós buscamos realizar é levar ciência às tomadas de decisão, e não apenas entre presidentes dos países amazônicos", explica Marielos Peña-Claros ao ser perguntada sobre o propósito do SPA. "Queremos ser parte de um movimento que transforme a maneira como encaramos a Amazônia e o seu desenvolvimento."

O Painel Científico para a Amazônia existe desde 2019, atuando como um braço da Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. À época, o aumento das taxas de desmatamento na Amazônia, notadamente no Brasil, inspirou que cerca de 60 cientistas se reunissem com a intenção de produzir um documento sobre a estado geral do bioma.

Para quem não se lembra, em 19 de agosto daquele ano, o dia virou noite na cidade de São Paulo devido a uma nuvem de fumaça que chegou ao sudeste, advinda de queimadas no norte do país.

O primeiro resultado desse esforço saiu em 2021, na forma de um relatório discutindo os problemas amazônicos, nas frentes ambiental, econômica e social, e propondo soluções para esses dilemas. O documento passou a ser referenciado por outros cientistas como se fosse uma enciclopédia com todo o conhecimento estabelecido sobre o bioma, seus desafios e caminhos de solução até então.

Desmatamento na Amazônia Legal perto da BR-230 entre fevereiro (esquerda) e setembro (direita) de 2021 Imagem: Reprodução/Planet

"O relatório ficou maior do que gostaríamos", explica Marielos sobre o calhamaço de mais de 400 páginas, todo ele disponível no site do grupo. "Mas a grande questão era o que faríamos depois disso. Então decidimos continuar com o painel e produzir conteúdos mais curtos e diretos, para prover a sociedade com recomendações sobre os problemas que enfrentamos."

Atualmente, o Painel publica resumos voltados a tomadores de decisão explicando algumas causas para os problemas amazônicos e sugerindo soluções para eles. "Até eu, pessoalmente, tenho pensado em formas de como integrar cada vez mais a ciência com a política e nos processos de tomada de decisão", revela Adriane Esquivel.

E suas vozes têm conseguido estourar a bolha: a iniciativa para restaurar 500 mil km2 de floresta contou com a concepção do cientista Carlos Nobre, que é também copresidente do Painel.

Floresta em pé e rios fluindo: como chegar lá?

Conforme explica Flávia Costa, a seca de 2023 se tornou excepcional por haver uma sinergia de condições que a agravaram. Além de um índice de chuvas decepcionante, abaixo da metade do esperado para o período de julho a setembro, houve a ocorrência de ondas de calor até 5ºC acima da média na região.

Essa convergência de tempo seco e quente produziu uma vazão histórica nos rios da bacia e uma floresta mais suscetível a queimadas —só no estado do Amazonas, foram quase 20 mil incêndios registrados em 2023, segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).

Adriane Esquivel destaca como a seca facilita a degradação das florestas, mesmo aquelas que não passam diretamente por desmatamento ou queimadas.

"Como temos florestas mais abertas, sobretudo mais ao sul da Amazônia, ocorre uma redução grande da umidade e da água que as árvores lançam na atmosfera", explica a bióloga. "Isso gera uma nova condição do meio ambiente que empurra a região para mais perto de um cenário de um calor que não é compatível com a vida humana nem com a saúde da vegetação."

Golfinhos mortos do efluente do lago Tefé, no rio Solimões, que foi afetado pelas altas temperaturas e pela seca Imagem: REUTERS/Bruno Kelly

Logo, florestas de pé são aliadas contra secas desse tipo e a falta delas apenas agrava as condições climáticas extremas.

Por esses motivos, tanto Adriane Esquivel Muelbert quanto Flávia Costa acreditam que a conservação é um imperativo para evitar que a seca de 2023 se torne um 'novo normal'.

A gente ainda tem um bloco contínuo de floresta que é capaz de regenerar pequenas áreas que sofreram com a seca. Mas isto depende de estratégias para garantir conexões entre as matas. Assim, as sementes continuam sendo transportadas para diferentes lugares. Não pode haver uma área de floresta conservada ali e outra a quilômetros de distância
Flávia Costa, bióloga

A bióloga também destaca a importância de declarar áreas de conservação onde há maiores chances de recuperação diante de eventos climáticos extremos.

"O foco deve ser na parte noroeste da Amazônia. As pesquisas apontam que ali o clima será mais estável e as características das plantas da região sugerem que lá estão espécies menos sensíveis à seca", salienta.

"Além disso, é preciso começar a desenvolver políticas de conservação levando em conta áreas úmidas, aqueles lugares onde há canais de água que não secam, e reforçar o Código Florestal para maior proteção de rios e igarapés."

'Conservar é aprender'

No entanto, conservar não quer dizer criar um santuário, um lugar intocável. Para Adalberto Val, criar áreas de conservação envolve, obviamente, manter esses ambientes saudáveis e protegidos, mas também implica em avançar nos estudos que compreendem como as dinâmicas naturais desses lugares podem beneficiar a sociedade.

Conservar é aprender. A Amazônia precisa de estratégias de conservação e de pesquisa que nos ajudem a aproveitar melhor os grandes blocos de floresta que estão de pé.
Adalberto Val, biólogo

Área de desmatamento na TI Yanomami Imagem: Ministério do Meio Ambiente e da Mudança Climática

Marielos Peña-Claros reflete sobre o quanto impedir o desmatamento e a degradação da Amazônia é, no fundo, repensar as políticas econômicas sobre a região.

Isso é, abandonar um olhar extrativista das florestas e dos rios, deixar de expor a floresta às atividades ilegais e construir um desenvolvimento baseado nas soluções que a própria floresta e seus rios dão.

É nessa hora que a ciência se oferece: descobrindo mais sobre o que os ecossistemas nos oferecem e desenvolvendo modos de produzir com eficiência.

"Não são milhões de pessoas que se beneficiam da degradação. O desmatamento não traz benefícios econômicos para a maioria", esclarece a ecóloga. "Estratégias de melhor manejo do solo garantem a economia, sem perder floresta. É possível gerar mais valor agregado com produtos locais em sintonia com o bem-estar das pessoas dos ecossistemas."

Uma economia baseada em soluções da floresta poderá gerar até 8,2 bilhões de dólares por ano até 2050, segundo relatório da WRI Brasil. Conforme outro estudo desenvolvido pelo Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdade atestou, as cadeias de valor de 30 produtos florestais, como o açaí e o cacau, faturaram algo na ordem de 1,4 bilhão de dólares e empregaram cerca de 224 mil camponeses apenas no ano de 2019.

Era para acontecer a cada 100 anos

A Amazônia apresenta uma variabilidade no regime de chuvas, com épocas mais úmidas e outras mais secas. Onde está o estado do Amazonas, por exemplo, os picos de chuva se dão entre novembro e março. Já entre maio e setembro, o período de estiagem é, comumente, acompanhado de uma baixa nos níveis dos rios.

Imagem: Getty Images

Mas há outros fatores condicionantes da variabilidade de chuvas na Amazônia: El Niño e La Niña. Essas duas "crianças" são fenômenos climáticos relacionados ou ao aquecimento, no caso do El Niño, ou ao resfriamento, no caso do La Niña, das águas do Oceano Pacífico. Para a Amazônia, o aquecimento do Pacífico conduz a uma anomalia na circulação atmosférica cuja consequência é o menor índice de chuvas na região, enquanto o resfriamento leva a mais precipitação.

É como garantido: os anos de El Niño são de seca para a Amazônia. Já os anos de La Niña são aqueles em que há inundações mais frequentes. Até aqui, isso está dentro do esperado. Porém, em se tratando de secas, nota-se como os fenômenos têm ganhado intensidade e menor intervalo entre eles.

As secas recordes de 2005, 2010, 2015 e 2023 foram todas relacionadas ao El Niño. Antes delas, porém, outra ocorrência forte só havia sido registrada entre 1980 e 1983 e, anteriormente, apenas em 1964 e em 1926. Algo semelhante ocorre com as inundações, com curtos períodos entre as mais recentes: 2009, 2012, 2014 e 2021.

Toda essa aceleração e intensificação culminou, em 2023, em uma ocorrência excepcional do El Niño, algo que só deveria acontecer uma vez a cada século. Por esse motivo, um grupo de cientistas brasileiros, holandeses, dinamarqueses, americanos e ingleses demonstraram que o El Niño, sozinho, não explica o atual fenômeno extremo.

Incêndios florestais canadenses de 2023 foram até 50% mais intensos devido ao aquecimento global Imagem: Darryl Dyck/The Canadian Press/AP/picture alliance

Efeitos da influência humana

Segundo a publicação dos cientistas, a seca não teria sido tão acentuada não fossem os efeitos da mudança climática gerada por ações humanas, como emissão de poluentes e degradação do meio ambiente, que tornam as temperaturas médias do planeta mais altas. Os pesquisadores comprovam que um cenário de aquecimento em 2ºC, em comparação a era pré-industrial, levaria a uma seca tão forte como essa já nos próximos 30 anos, apenas.

Não estamos longe dessa marca. Segundo o relatório do observatório europeu Copernicus, 2023 foi um ano 1,43ºC mais quente em comparação à era pré-industrial, o que o documento qualificou como algo "dramático e sem precedentes".

Segundo os estudos, há alta probabilidade de que os efeitos climáticos desse El Niño continuem até maio de 2024, no mínimo. Logo, ainda que a situação mais grave tenha ficado para trás, é provável que a Amazônia tenha uma temporada de chuvas abaixo do comum e entre na próxima estiagem com prejuízos na pesca da região, no provisionamento de água, no transporte fluvial e no abastecimento de energia elétrica.

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