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"Toda musicalidade do Brasil tem referĂȘncia africana", diz historiadora

Carmem LĂșcia

Colaboração para o UOL, do Rio

18/11/2021 12h40

"O samba, o funk, a bossa nova, e atĂ© o chorinho... toda esta musicalidade que embala o Brasil tem referĂȘncia africana", disparou AngĂ©lica Ferrarez, historiadora e professora, durante sua participação no primeiro painel de Origens: Passos que VĂȘm de Longe, promovido por Ecoa nesta quarta-feira (17).

O encontro teve como tema Ecos de África: a herança que cruzou o Atlùntico, e contou com a mediação da atriz Zezé Motta e as participaçÔes de Mariléa de Almeida, doutora em história e especialista em filosofia, e Tom Farias, jornalista e escritor.

AngĂ©lica tambĂ©m chamou a atenção para a diversidade de Áfricas existentes na mĂșsica que, na grande parte do tempo, nĂŁo Ă© percebida. "Eu pesquiso samba, entĂŁo, Ă© difĂ­cil pensar a cultura musical do Brasil sem o AtlĂąntico Negro. E este som vem de muitos lugares da África. Por exemplo, a sonoridade desenvolvida na cidade do Rio de Janeiro Ă© diferente do que Ă© produzido no MaranhĂŁo, que nĂŁo se compara com o som de Salvador. Temos aĂ­ vĂĄrias Áfricas se manifestando", avalia.

Ao ser questionada pela atriz Zezé Motta sobre possíveis expoentes brasileiros capazes de dar continuidade à matriz africana aqui no Brasil, a pesquisadora reverenciou as mulheres negras mais velhas.

"Eu costumo dizer que eu vejo, mas todos precisam ver tambĂ©m a potĂȘncia das tias pretas do samba. SĂŁo as mulheres que estĂŁo nas quadras das escolas de samba, nas rodas de samba, nos terreiros e nos quilombos. SĂŁo mulheres detentoras de um saber muito orgĂąnico e que possuem uma relação horizontal e integrada com a natureza. Elas atualizam o nosso pertencer ancestral e sĂŁo detentoras de uma herança gigantesca, jĂĄ que estamos falando de um bem tĂŁo precioso chamado sabedoria", disse.

Painel Ecos de África: a herança que cruzou o AtlĂąntico de Origens: Passos que VĂȘm de Longe. Imagem: Reprodução

PretuguĂȘs

A historiadora Mariléa de Almeida aceitou o desafio de iniciar sua fala desvendando o mistério: serå que existe Brasil sem África? Segundo Mariléa, acreditar que é possível desvincular o Brasil da África é mais uma ferramenta do racismo.

"NĂłs somos maioria neste paĂ­s, mas o racismo ainda nos invisibiliza com toda esta negação. Que lugar Ă© este que se reserva na memĂłria para este povo? A gente vive o tempo todo o processo de inexistĂȘncia. A África se expressa na nossa cultura, linguagem, religiĂŁo e no nosso 'pretuguĂȘs'", conta, fazendo menção ao conceito cunhado por LĂ©lia Gonzalez de africanização da lĂ­ngua portuguesa brasileira.

Ao pensar sobre os resquícios da filosofia africana presente até hoje no modo de encarar e de refletir sobre a vida no Brasil, Mariléa cita sua história familiar a fim de mostrar que acredita que ninguém estå livre do racismo estrutural no Brasil.

"A gente tem dois momentos na vida: o de nascer preto e o de se tornar preto no momento que a gente conhece a histĂłria que muitas vezes estĂĄ na nossa prĂłpria casa. Minha mĂŁe Ă© mĂŁe de santo, meu avĂŽ e bisavĂŽ eram pais de santo e isso nĂŁo me livrou do processo de embranquecimento. Quando eu comecei a pesquisar os quilombos, eu levei um susto. Encontrei pessoas com as quais eu me identifiquei, pessoas semelhantes aos meus familiares", disse.

ZezĂ© Motta e Diego Sarza durante o evento Origens - Passos que VĂȘm de Longe Imagem: JĂșlio CĂ©sar / UOL

Para fazer este reconhecimento acontecer cada vez mais cedo, a professora fala da importùncia do uso da tecnologia e da educação como ferramenta para derrubar estereótipos racistas na rede de ensino.

"Uma vez eu levei meus alunos de escola pĂșblica ao museu. Na volta, uma aluna escreveu um texto no qual ela disse que antes da visita imaginava que os ancestrais dela tinham sido escravizados pela força bruta e porque se deixaram capturar nos paĂ­ses africanos. Ao ir ao museu, entendeu que eles queriam obter as nossas tecnologias e as nossas riquezas. É sobre isso, sobre dar um novo olhar para a nossa histĂłria", lembra MarilĂ©a.

Ela complementa: "É sempre válido ressaltar que os processos de ensinamento não precisam estar apenas nas escolas. Podem nascer nos terreiros, nos aquilombamentos, na comunidade, na arte, nas conversas, nas trocas de conhecimento".

África na educação

Educação também foi o tema que norteou as falas do jornalista e escritor Tom Farias. Ele ressaltou o quanto o sistema de ensino do Brasil é racista e que as abordagens em sala de aula precisam mudar.

"Os livros didĂĄticos apresentam os negros apenas como escravos apanhados, com a palavra negro sempre usada com uma carga grande de negatividade. NinguĂ©m fala que estes mesmos navios negreiros tambĂ©m trouxeram mĂ©dicos, arquitetos, professores, filĂłsofos, pensadores, psicĂłlogos. Temos contribuição africana muito significativa na tecnologia, na arquitetura, na mĂșsica, na dimensĂŁo do sagrado (religiĂŁo de matriz africana), literatura', disse.

Entre os exemplos citados pelo professor estão as obras de Teixeira e Souza, primeiro romancista a publicar um livro no Brasil (a obra O Filho do Pescador, em 1843). "Jå no século 18, teve a mineração do Brasil, e a mão de obra negra na construção do país como nação", completou o professor.

FOTOS: Origens - Nossos Passos VĂȘm de Longe

Para mudar este cenårio, Tom acredita ser necessåria uma alteração na maneira de ensinar para que o ensino traga "valores negros". "Hå um viés que ainda distorce o nosso pensamento. A sociedade é pautada pelos saberes da universidade brasileira, que é quem dita o conhecimento. O que é dito pelo branco, não recebe contestação. Jå o negro é questionado o tempo todo. O meu papel é trazer elementos que humanizem a grande massa de pensadores brasileiros", disse.

O jornalista finalizou dizendo que se hoje existe um diagnĂłstico para o racismo - invisibilidade e apagamento - a forma de preservar os traços da cultura negra Ă© refundar a sociedade brasileira. "Penso que o projeto Brasil que vivemos vem de uma Ă©poca em que validavam a destruição de toda a inteligĂȘncia negra. Em 1874, acreditava-se que o negro ia se extinguir no Brasil. Criaram leis para nos aprisionar [Lei da Vadiagem] e nĂŁo deram nenhum ressarcimento para os negros apĂłs a escravização", explicou.

"O quilombo nĂŁo Ă© sĂł um territĂłrio. Ele acontecia na Casa Grande, no quintal, nos canaviais. A retomada do quilombo precisa crescer. É necessĂĄrio trazermos de volta este princĂ­pio da comunidade, com a ideia de que o filho de um Ă© o filho de todos. Quando a gente cuida uns dos outros e se fortalece junto".
Tom Farias, jornalista e escritor

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