Pagode na Lata

Samba alivia vício em crack? Da redução de danos à economia solidária, roda traz esperança à 'cracolândia'

Juliana Faddul (texto) e Andre Porto (fotos) Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP) Andre Porto/UOL

"Sabe qual é a coisa mais linda da percussão? Que ela mostra que a música está em tudo que tocamos, em tudo que vivemos. Ela lembra que tudo pode ser música", diz Marcos Roberto Cezário, de 53 anos, conhecido na região da "cracolândia" como Pirata.

Filho de um sambista da escola de samba Barroca Zona Sul, em São Paulo (SP), Pirata nasceu em berço de samba, mas foi no pagode que ele se encontrou como músico profissional.

Sua história ganhou um capítulo especial em 2017, quando se juntou ao grupo Pagode na Lata, coletivo que está fazendo da música um instrumento de geração de renda e redução de danos na "cracolândia". Com dois pontos de encontro no local — à tarde, no fluxo da "cracolândia", e à noite, no Bar da Nice — o grupo se apresenta a cada duas segundas-feiras e conta com frequentadores de todas as cores e idades.

"Quando fazemos uma roda e deixamos todos participarem, o próprio usuário reconhece a sua importância. Com essa abertura, podemos trocar ideias sobre práticas de redução de danos, desde a prevenção de doenças causadas pelo compartilhamento de cachimbos até a redução do uso de substâncias", explica o sociólogo e um dos organizadores do evento, Marquinho Maia, de 39 anos.

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'O que mais gosto na vida é dançar'

No feriado do Dia do Trabalhador, em 1º de maio, uma roda com oito pessoas iniciou uma aglomeração no meio do fluxo mais lotado da "cracolândia", em meio à rua dos Gusmões, no bairro da Santa Ifigênia.

Composta por artistas e militantes de diversos coletivos que atuam na região, a roda logo se abriu para que usuários também pudessem tocar. "Eu sou do samba. Eu toco muito bem. Uma pena que tô doidão agora, senão tocava", lamenta José Ricardo Santos, de 54 anos, egresso do sistema carcerário e que vive em situação de rua há dois meses.

Os usuários mais tímidos batucavam onde podiam, fazendo do cachimbo uma baqueta e das latas e das garrafas objeto de base para percussão. "Ao nos verem tocar muitos querem fazer parte. Isso se torna um compromisso, precisam estar ligados no dia da semana, no horário", explica Marquinho. "Eu não bebi ontem porque sabia que teria show hoje, tá ligado?", completa Pirata.

Outros, mais animados, dançavam uma mistura de samba e gafieira. "A coisa que mais gosto na vida é dançar, mas aqui tem muita música ruim, então tenho que aproveitar agora", afirma Jenifer Silva, de 17 anos.

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'Vou festejar!' A arte como redução de danos

Em 2016, a revista médica Lancet publicou um artigo científico elencando diversas recomendações para o tratamento abusivo do uso de drogas, como alternativas à abstinência. Entre elas, a política de redução de danos. "De uma forma simples e sucinta, a política de redução de danos é uma estratégia de saúde pública", explica Marquinho.

De acordo com levantamento da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), existem 52.226 pessoas em situação de rua na capital paulista. Os dados vão até até fevereiro de 2023. Para a Prefeitura de São Paulo, cujos dados são de 2021, o número é menor: 16.209 — entre eles usuários de drogas, pessoas com demência, em situação de extrema pobreza e imigrantes.

Tanto o governo do estado como a prefeitura mantêm programas de internação e auxílio aos dependentes de drogas de forma voluntária, uma vez que o poder público não tem autonomia para realizar a internação compulsória.

"[A estratégia de abstinência] é irrealista porque vende uma ideia de que basta proibir e pronto. É como pregar abstinência de sexo para conter doenças sexualmente transmissíveis", diz Sidarta Ribeiro, diretor do Instituto do Cérebro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). "Por isso a importância de pensarmos alternativas e, acima de tudo, dialogar com a sociedade civil", completa o neurocientista.

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Redução de danos é cuidar das pessoas, do usuário, enquanto ele ainda está dependente da droga. É entregar água para ele não morrer desidratado, auxiliá-lo a fazer RG, entregar manteiga de cacau para a boca não ressecar

Marquinho Maia, sociólogo

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Cheia de manias: Nice, a dona do pedaço

Após tocar no meio do fluxo durante a tarde, o grupo parte para o Bar da Nice, na General Osório, para se apresentar ao público geral. A rua é conhecida por condensar diversas lojas de instrumentos de percussão — como caixas, surdos, repiniques e agogôs. Por ironia do destino, o bar, onde o Pagode na Lata acontece, fica ao lado da tradicional loja de instrumentos Redenção.

Além de ponto de apoio para a turma que participa do pagode durante as apresentações, o Bar da Nice também serve de acolhida para usuários, moradores de rua e trabalhadores, como vendedores e prostitutas.

"Eu sei o que é trabalhar na rua e não ter onde tomar um copo de água, poder usar um banheiro, ter onde sentar. Então sempre que puder ajudar, eu ajudo", diz Nice Rocha. A empresária e proprietária do bar não se esconde ao dizer que trabalhou como prostituta há 32 anos — sendo a última década na região do Parque da Luz.

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Nice não tem funcionários, mas ajudantes, sejam eles frequentadores assíduos que moram em outros bairros ou os próprios usuários de drogas que vivem na região.

"Eles varrem, arrumam, ajudam no que podem. Em troca podem usar o banheiro, tomar água, conversar. É muito importante conversar com eles", diz. Entre as funções está, inclusive, cuidar do caixa. "Se o cidadão não está alterado e eu já o conheço, não vejo por que não."

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Todas as cores, várias idades e muito amores

Se no fluxo a apresentação dos músicos fica restrita a usuários de droga e moradores de rua, na General Osório, em torno do Bar da Nice, a situação é outra.

"Eu quero música! Eu quero pagode!", bradava em plenos pulmões Inaiê Furlan, de 4 anos, durante o breve descanso dos músicos enquanto corria pela calçada com mais duas crianças.

"Sempre que eu posso eu a trago. Somos amigos de um pessoal que toca e acho legal ela estar presente no que a mãe e o pai dela defendem. Sem contar que sempre tem criança para ela brincar", diz Mariana Furlan, 40, moradora da Vila Clementino e mãe de Inaiê.

A alguns metros da mesa, Pirata observava com seu único olho a interação entre os frequentadores. Chamou a reportagem e disse em tom sério: "Olha, vou te falar uma coisa que é para você prestar muita atenção. Eu não doidão, não, por isso você precisa prestar atenção".

E continuou: "Tem uma música da Elis Regina, de quem sou muito fã, que é assim: Me disseram, porém / Que eu viesse aqui / Pra pedir em romaria e prece / Paz nos desaventos / Como eu não sei rezar / Só queria mostrar / Meu olhar, meu olhar, meu olhar".

Enxugando uma lágrima ímpar, ele voltou sorridente e animado para a roda. Pois o show tinha que continuar.

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