Campeão do terrão

Tetracampeão mundial, Ronaldão conhecia mais a família da esposa; agora, sabe de onde vieram os antepassados

Agnes Sofia Guimarães Colaboração para Ecoa, de Campinas (SP) Deborah Faleiros/UOL

Campeão mundial pela seleção brasileira após uma disputa de pênaltis contra a Itália, Ronaldão não sentia aquele frio na barriga há tempos. Desta vez, porém, o que estava em jogo era outro tipo de emoção. Ele aguardava o resultado do teste de DNA, que só saiu no segundo tempo da prorrogação.

Foram mais de trinta dias para os dados de ancestralidade chegarem ao ex-jogador. "Fiz o exame com muita curiosidade, e fiquei com medo de não chegar ao resultado", conta.

Ex-jogador do São Paulo e integrante do Brasil que conquistou o tetra em 1994, Ronaldão bateu um papo sobre o que descobriu sobre suas origens ao receber a equipe de Ecoa em seu apartamento no bairro Cambuí, região nobre de Campinas, onde vive desde quando passou pela Ponte Preta, entre 1998 e 2002.

Hoje aposentado e ligado à direção do time campineiro, o ex-zagueiro acumula boas lembranças da carreira, guardadas na boa memória e registradas nos quadros, camisetas autografadas e outras relíquias reunidas em uma sala da residência. A galeria conta um pouco da história do próprio futebol brasileiro. Sobre sua família, porém, Ronaldão sabia pouco. Até agora.

'Meu pai estava certo'

Assim que escutou os resultados do teste, Ronaldão lembrou do pai. "Afinal, ele estava certo. Ele sempre dizia que podíamos ser da Costa do Marfim, apesar de ser apenas um palpite baseado nas leituras dele." O chute foi dado porque, para o pai, os povos da Costa do Marfim tinham a tonalidade da pele mais próxima da dos integrantes da família.

Fosse no futebol, o chute teria acertado o alvo, mas não em cheio. A sugestão do pai até encontra abrigo no resultado genético do filho, mas o material genético da região africana em que está o país representa só 3% do total.

Ainda assim, a maior proporção da ancestralidade genética de Ronaldão é africana: 68%. Mas é região da Costa da Mina (formada por Gana, Togo, Benin e Nigéria) que responde pela maior da origem dele: 48%.

A relação com os países africanos que aparecem no teste se encerraria na tese do pai se não fosse um episódio futebolístico com Camarões. Na primeira fase da Copa de 94, a seleção brasileira derrotou o país africano. Ao fim da partida, Ronaldão pegou com um adversário a camisa que havia usado — até hoje conservada da mesma forma como a ganhou na época.

Antes de saber dessa origem, Ronaldão sabia apenas que a família carregava vários Brasis. Aluizio de Jesus, seu pai, era capixaba. E a mãe, a costureira Luiza de Jesus, era baiana. Em momentos diferentes, ambos viajaram em busca de oportunidade para São Paulo, onde se conheceram e formaram família na zona sul da capital.

Quando Ronaldo tinha cinco anos, o pai já trabalhava como metalúrgico e conseguiu uma vaga na fábrica da Volkswagen, e a família se mudou para São Bernardo. Sobre o pai, o ex-jogador guarda a memória de um homem com muita paixão por leitura e política, dono de uma personalidade forte e, muitas vezes, controversa.

"Era um metalúrgico que amava trazer a política para o boteco, mas não tinha medo de pensar diferente dos colegas", lembra.

Eram os anos 1970, período da ditadura militar, e as lutas trabalhistas que marcariam a democratização na década seguinte começaram a ganhar vulto no ABC paulista. Como herança dessa época, Ronaldão conta que carregou do pai a falta de medo para posicionar-se dentro e fora dos campos.

Mundial nascido no campo de terra

Ainda adolescente, Ronaldão começou no futebol por influência do irmão mais velho, Luiz Antônio, que já tinha o hábito de atravessar a cidade para jogar as competições amadoras aos finais de semana.

Com o tempo, Luiz Antônio desistiu do futebol, mas ele ficou. Era a estrela do campo de terra de Nova Petrópolis, bairro nobre de São Bernardo. Lá, a distinção de classe não se dava apenas pela organização urbana da cidade: lado a lado, dois estádios recebiam públicos e jogadores diferentes.

"Era engraçado porque tínhamos dois campos, um de gramado, outro de terra. O gramado ficava para times que eram considerados importantes na cidade. Mas hoje, quando a gente volta lá, vê que foi só do campo de terra que saiu um campeão mundial", brinca Ronaldo.

Aos 17 anos, Ronaldo saiu de casa e largou o primeiro emprego, como metalúrgico, para jogar na categoria de base do Rio Preto Esporte Clube, de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo.

Ficou pouco mais de dois anos até que se transferiu em 1985 para o São Paulo, em que construiu ao longo de oito anos uma trajetória marcada por conquistas emblemáticas: quatro títulos do Campeonatos Paulista (1987, 1989, 1991 e 1992), dois Brasileirões (1986 e 1991), duas Libertadores e dois títulos do Mundial Interclubes (ambos em 1992 e 1993).

No Mundial Interclubes, foi destaque nas duas finais, contra Barcelona e Milan. Os times são de países que também remontam a ancestralidade de Ronaldão: 17% de seu material genético são oriundos do norte e centro-sul da Itália, enquanto 9% vieram da Península Ibérica (Espanha e Portugal).

A família da minha esposa

Com lugar afetivo na vida de Ronaldão, os dois países europeus são visitados frequentemente por ele e pela família. Não só a lazer, mas também por motivos pessoais. A esposa, a aromaterapeuta Ana Claudia Rosan, obteve recentemente a cidadania italiana para ela e os filhos do casal.

"Passei anos sabendo mais da família da minha esposa do que da minha. Agora posso até correr atrás da minha cidadania lá também", brinca Ronaldão.
Casados há 30 anos, os dois tiveram três filhos juntos.

Já a Espanha faz parte de sua biografia em diversos momentos: quando, em 1996, foi ao país para se apresentar ao Flamengo, após dois anos no Japão, e nos verões em que o São Paulo disputou as competições em território espanhol, antes de conquistar seus dois campeonatos mundiais interclubes.

É por estes motivos que, se fosse para vestir a camisa de algum país presente nos resultados de seu teste de DNA, Ronaldão ficaria dividido entre a espanhola e a italiana. Para ele, a potência do futebol é que se trata, como ele, de um ramo miscigenado.

Racismo: "Os clubes têm obrigação de combater"

Deborah Faleiros/UOL

Para Ronaldão, entender sua existência como o resultado de uma mistura de povos o fortalece para apontar a fragilidade do combate ao racismo no futebol. Apesar da aposentadoria, ele não deixa de acompanhar, de forma ativa, iniciativas que têm sido feitas para combater manifestações de ódio de torcedores e de jogadores em campo.

No nosso tempo, tudo isso existia. Era só jogar em países da América Latina como Argentina ou Uruguai, ou no sul do país que íamos encontrar manifestações maiores de racismo pela torcida. Não fazíamos nada porque na época isso seria lido como um constrangimento. Hoje, temos a conscientização dos clubes e o apoio da mídia para enfrentar essas situações"

Para o ex-jogador, a violência racista ainda está mais evidente em campo e nas torcidas, mas ele celebra a abertura maior para o combate, como a iniciativa da CBF de criar uma comissão para combater racismo e violência no futebol. Mas destaca a necessidade de uma cobrança institucional aos clubes, com penalizações em campeonatos que sirvam para lembrar que, mais do que uma violência, o racismo é um crime.

Não basta só dizer que reconhece que é errado. Antes tínhamos constrangimento em cobrar dos times. Hoje os clubes têm obrigação de combater, de lembrar que estão diante de um crime que tem artigo penal para ser aplicado

Ronaldão, ex-jogador de futebol e diretor da Ponte Preta

ORIGENS: QUARTA TEMPORADA

Promovido por Ecoa, Origens está em sua quarta temporada. Esta edição contou com o evento "As histórias que nos trouxeram aqui", em que celebridades e ilustres anônimos contaram como buscaram respostas sobre o seu passado ou agiram para transformar, cada qual à sua maneira, seus núcleos familiares.

Os intervalos de cada painel contaram com apresentações de slam conduzidas pela poeta e compositora Bell Puã e de stand up lideradas pela humorista e apresentadora dos programas Splash Show e Otalab, do UOL, Yas Fiorelo. A apresentação e mediação dos encontros foi feita pela jornalista Semayat Oliveira.

Além disso, esta temporada conta com perfis de ex-jogadores que disputaram a Copa do Mundo e toparam fazer um teste de DNA para explorar sua ancestralidade. Você também confere um trecho em vídeo do papo com o César Sampaio no Instagram de Ecoa. As reportagens sobre os outros atletas estão a seguir:

  • Mauro Silva

    O rei mago de pés africanos

    Imagem: Gsé Silva/UOL
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  • César Sampaio

    Aqueles Parentes Distantes

    Imagem: Gsé Silva/UOL
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  • Romário

    Um negro mundial

    Imagem: Arquivo/AFP
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  • Cafu

    Aqueles negros maravilhosos

    Imagem: Laurence Griffiths /Allsport/Geety Images
    Leia mais
  • Ronaldão

    Campeão do terrão

    Imagem: Reprodução
  • Grafite

    21/11

    Imagem: Jamie McDonald/Getty Images
  • Ramires

    25/11

    Imagem: Antonio Scorza/AFP
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