A fazenda embaixo d'água

Isolado no Pantanal, fazendeiro luta para evitar, de forma sustentável, alagamento e vacas 'subaquáticas'

Marcos Candido De Ecoa, em Corumbá (MS) "O Homem que Salvou a Terra"/Jorge Bodanzky /Documenta Pantanal

O fazendeiro Ruivaldo Nery de Andrade mora em uma fazenda escondida no Pantanal. O lugar fica a mais de 4 horas do porto de Corumbá, em Mato Grosso do Sul. Até piloteiros experientes desconhecem o caminho, feito em um barco a motor pelo grande rio Paraguai, depois pelo estreito Paraguai-Mirim até as proximidades do rio Paiaguás. Para chegar lá, o piloto precisa da ajuda de um ribeirinho musculoso. Os músculos, saídos de uma regata azul, desatolam e empurram o barco nos trechos mais rasos. O ajudante diz conhecer a direção, mas ele se perde no caminho. Por mais duas horas, o barco perdido rodopia, atola, engasga. A área é alagada, plana e totalmente silenciosa. A água é cristalina e potável. Ele sabe que o destino está a poucos metros, mas pode levar horas para alcançá-lo. "Lá é enjoado de chegar", diz. Era a melhor maneira de assumir o constrangimento com o próprio erro, embora seja injusto culpá-lo. Não há placas e as estradas d´água desaparecem e reaparecem segundo as chuvas e o calor. A paisagem é repetitiva e uma direção errada leva a um labirinto d' água. A sensação da viagem é a de um sonho estranho, uma alucinação, até a rota ser encontrada pelo ribeirinho. O homem vai à proa e indica ao piloto uma saída entre os camalotes, como são chamados os vegetais que flutuam nas águas do Pantanal. O barco entra em um canal ainda mais estreito de mata densa. É por ali que mora seu Ruivaldo. Por muitos anos, o fazendeiro viveu assim, solitário, em uma espécie de ilha de água doce.

"Eu ouvi o barco de vocês por muito tempo", diz o fazendeiro com um sorriso para os convidados. "Era só ter visto o ninho com dois tuiuiús no caminho. Não tinha erro!", acrescenta. Ruivaldo é um verdadeiro pantaneiro: usa chapéu, calças grossas, óculos escuros, botas. Tem orgulho da hospitalidade e recebe as visitas com arroz carreteiro no fogão à lenha. Fala sobre o Pantanal com paixão e sobre as onças com temor e reverência. Na fazenda, onde nasceu e cresceu, voam araras-azuis entre as galinhas, gatos, bodes, porcos, cabritos e um búfalo. Os cavalos o observam, à espera, e um cercado protege os cabritos das onças e dos carcarás camuflados entre as árvores e as nuvens. É uma vida tranquila, mas não é isolada da realidade.

Ruivaldo sofre com problemas ambientais de grandes proporções. Desde os anos 70, a fazenda começou a ser inundada - cerca de 8 mil hectares foram transformados em quase uma fazenda submarina. Os alagamentos são comuns no Pantanal, mas a água no terreno subia implacável, trazendo e levando consigo perdas financeiras e emocionais. O gado foi vendido às pressas ou morreu sem o capim, afundado e inutilizado.

A família rica de Ruivaldo, dona de uma pista de pouso para o próprio avião, quebrou. Os doze irmãos foram para a cidade estudar antes do dinheiro acabar de vez. Só ficou Ruivaldo, o mais novo, triste e com saudades das terras da infância. Ele tirava o chapéu, coçava a testa e se perguntava, dia após dia, o que poderia fazer em relação a seu destino. "Caramba, todos os meus vizinhos e amigos foram embora. Fiquei sozinho, sozinho. Numa tristeza?", diz.

As terras de seu Ruivaldo são vítimas do assoreamento, também chamado de "a morte dos rios". Todos os rios transportam resíduos, como terra, plantas e galhos, mas é uma capacidade limitada. Para não sobrecarregá-lo, as matas ciliares da margem controlam o volume que vai para o fundo. Além disso, as raízes seguram as bordas do rio e ajudam a guiá-lo. Se a vegetação for desmatada, o rio perde força para carregar tanta coisa, as margens se desmancham e se acumulam submersos e água para. O assoreamento transforma o rio em uma poça à beira de secar e desaparecer.

Onde vive Ruivaldo, o assoreamento foi causado pelo desmatamento de lavouras no Alto Taquari (MT), a 400 km em linha reta, a partir da década de 70 e intensificado entre as décadas de 1990 e 2000. Até os incêndios em 2020, o processo era conhecido como o maior desastre ambiental da história do Pantanal e provocou um desequilíbrio entre os rios. É como interromper o fluxo de um cano: a água ficou acumulada em algumas regiões, mas secou em outras.

Os rios menores e mais frágeis pararam de correr, como o Figueirão. Em outros pontos, a água subiu com a chuva, não secou, inundou fazendas e criou áreas alagadas de forma permanente. As árvores submersas apodreceram e deixaram de atrair as aves como antigamente. As sementes caem diretamente na água, infrutíferas. Os peixes e os jacarés mudaram em busca de comida, correnteza e áreas para reproduzir. A vegetação excessiva cristalizou a água, transparente.

Segundo a Embrapa Pantanal, mais de 1,5 milhão de hectares foram permanentemente alagados pelo assoreamento do Taquari. Foi neste cenário que o ribeirinho se perdeu: uma paisagem hipnótica e estática, feito uma natureza-morta. Parte das cercas de Ruivaldo continuam com água pela metade e uma edícula foi abandonada, inutilizada e mofada. Há fazendas abandonadas e imersas. "É um deserto de água doce!", diz.

A família de Ruivaldo chegou a Mato Grosso do Sul com a Guerra do Paraguai, país que faz fronteira com o estado. "Eu tive uma infância selvagem", se gaba. O bisavô foi militar e os avós e os pais enriqueceram com o gado. O fazendeiro é da terceira geração, quando os filhos das famílias ricas começaram a estudar direito, medicina e engenharia e estender a riqueza familiar na cidade.

Ruivaldo fez o ensino médio em Santa Maria, no Rio Grande do Sul e, quando estava prestes a cursar agronomia, os pais o mandaram voltar. O dinheiro estava acabando. Ele tinha 18 anos e as manhas da cidade misturadas às do cavaleiro pantaneiro. Conservava o bigode, o chapéu e o laço. Por outro lado, era arredio às tradições. Casou-se pela primeira vez aos 28 anos, considerado velho à época. Os amigos estavam formados e casados. Ruivaldo era divorciado, ainda galanteador e cada vez mais pobre.

O pai perdeu mais mil cabeças de gado com a inundação. As contas eram pagas com a aposentadoria dele, com o gado cada vez menor, com a venda de doce de leite, rapadura e farinha de mandioca para os ribeirinhos e fazendeiros. Os doces eram feitos em tachos de metal pesados da bisavó, guardados até hoje. O pai morreu quando Ruivaldo se aproximava dos 40, no final dos anos 1990. Sozinho, ele perdeu mais de cem cabeças de gado e foi isolado pelas águas.

Encontrá-lo era desafiador. Enviava-se uma carta para uma escola próxima com internet ou um sinal de rádio para uma transmissora local. A fazenda era iluminada por lamparinas até novembro de 2021, quando recebeu placas de energia solar da companhia de energia.

Hoje, o telefone "funciona mais ou menos", mas as lâmpadas iluminam "que é uma beleza". Há outra novidade: o gelo. "É uma beleza o freezer. Eu nunca tinha feito gelo em 60 anos de idade!", diz.

Para se livrar da inundação, Ruivaldo cavou buracos na área alagada para retirar a terra em excesso. De barco, pedia aos vizinhos para reutilizar sacos de ração e material de construção, um método artesanal e sustentável. Os recipientes reutlizados eram enchidos com a terra e usados para abrir um canal e direcionar a água no terreno. O objetivo era criar um sistema de dique.

A mata mais densa foi preservada para estabilizar as margens do terreno. Ruivaldo retirou o excesso de água das árvores que haviam resistido e as direcionou com ajuda do dique para servir para matar a sede dos animais. Ao mesmo tempo, secou o solo para receber as sementes caídas, atrair os pássaros e enrijecer o terreno, o que deu certo.

São quase 24 anos empurrando água. A história se espalhou. Uma vizinha o levou para falar sobre meio ambiente nas escolas, onde seu Ruivaldo tornou-se ainda mais versado para falar sobre aquecimento global, preservação do rios e o futuro do Pantanal. A experiência de vida virou um livro educativo.

Ruivaldo, porém, teve um problema do coração em 2018. Estava prestes a participar de um documentário e foi levado a um hospital particular em Corumbá com o barco e avião de uma fazendeira. Foram 20 dias em coma e 72 dias internado. Até hoje, diz pagar as dívidas da internação. No peito, há uma gigante e imponente cicatriz, uma marca daqueles dias. "Me falaram que Deus me puxou de volta", diz.

A proximidade da morte parece ter despertado em Ruivaldo a noção do tempo que foi diluída na paisagem exuberante e na rotina das tarefas do campo. Até meados dos 30 anos, só considerava-se preocupado em cuidar das terras e fazer doces. Costumava cavalgar pelos campos inundados com os cavalos submersos pela metade. À noite, assistia à Via Láctea e aos satélites. De dia, organizava os diques na propriedade enquanto ouvia o som do mutum. "Como é que eu vou fazer para arranjar uma companheira?", se perguntava.

Em uma cavalgada feita por uma fazenda distante duas horas, ele viu uma garota. Achou que estava delirando. Era improvável encontrá-la ali, tão habituada ao distante Pantanal quanto ele e, principalmente, tão bonita. Era Denise. Puxou o ar e se aproximou, desconfiando da descoberta do tal amor à primeira vista, algo que jamais acreditou. Ela correspondeu.

Para encontrá-la, Ruivaldo cavalgava nu para não chegar encharcado ao encontro. Não era prova suficiente para a sogra, que não gostava do homem divorciado e com tantos trejeitos da cidade. "Mas eu não queria nada com a sogra. Eu queria é com a filha!", diz. Até hoje, lembra como convenceu Denise. "Sou pobre. A terra é do meu pai. Mas a única coisa que prometo é te fazer feliz". O casal tem três filhos.

Após a internação, Ruivaldo percebeu que poderia abandoná-los sem antes concretizar os planos para a fazenda. A mais importante é aumentar a criação de gado para sustentá-los. A outra é cuidar dos diques, sempre sob os cuidados ambientais acredita serem inerentes ao verdadeiro homem pantaneiro.

O último objetivo é atrair turistas em busca de turismo ecológico e alertá-los sobre os riscos e apresentá-los às belezas do Pantanal. Segundo ele, a estratégia já dá certo. No último ano, recebeu visita de ingleses, franceses e brasileiros. Ruivaldo concluiu uma outra missão: reabrir a pista de pouso do antigo avião da família. Quer usá-la para emergências e visitas. "Estava há 38 anos afundada!", se gaba. "Eu não sabia se iria dar certo. Eu teimei que daria certo. Queria ajudar a natureza do Pantanal. Como é que eu iria abandonar uma terra que me deu tanta alegria?"

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