Soldado da Paz

Em livro sobre o pai, que lutou contra os nazistas, baterista dos Paralamas mostra não haver glamour na guerra

Edison Veiga Colaboração para Ecoa Ricardo Borges

De 1944 a 1945, o funcionário público João de Lavôr Reis e Silva (1918-2000) assumiu outra identidade. Tornou-se o Soldado Silva e carregava uma plaquetinha com seu número de inscrição: 1929. Assim como outros 25 mil brasileiros, ele foi convocado para uma missão: lutar na Segunda Guerra Mundial, em campos de batalha na Itália.

A história desse pracinha da Força Expedicionária Brasileira (FEB) é revisitada no livro 'Soldado Silva', que João Barone, baterista dos Paralamas do Sucesso, lança no início de fevereiro, pela editora Panda Books. João Alberto Barone Reis e Silva, é preciso ressaltar, conhece muito bem essas histórias. Ele é o filho caçula do ex-combatente.

E isso, de certa forma, fez com que ele sempre pesquisasse sobre a Segunda Guerra. Não com o ardor militarista de muitos que veem glamour nessas atrocidades bélicas. Mas com um viés pacifista que, a julgar pelas memórias de seu pai, parece ter sido herdado.

"Às vezes a gente aceita um pouco esse conceito, com o perigo dos reducionismos, de que a Segunda Guerra foi uma contenda entre o bem e o mal, um esforço muito grande para debelar uma coisa horrível que foi o nazismo, o fascismo e o imperialismo nipônico", conta Barone em entrevista a Ecoa. Leia a seguir os principais trechos.

A gente sabe que a guerra é uma coisa muito terrível para ambos os lados, mas há momentos em que é preciso abreviar um pouco. Então temos o soldado que foi lutar pelo bem do mundo, pela democracia, pelas forças do bem.

João Barone, escritor e baterista dos Paralamas do Sucesso

Ricardo Borges Ricardo Borges

Só mais um Silva

Ecoa - Como você definiria quem foi seu pai?

João Barone - Ele foi um brasileiro normal, um brasileiro comum. E talvez fosse um pouco além do brasileiro mediano no sentido de ter sido um cara que veio de uma família razoavelmente bem, em uma época em que não tinha nem muito a classe média no Brasil.

Quando ele foi convocado [para a guerra], ele era um brasileiro como muitos outros e teve de encarar essa convocação. Meu pai nem era militar, era funcionário público, era reservista. E foi um desses 25 mil caras que teve de ir para lá e talvez represente muito bem esses caras, porque ele não foi condecorado por bravura, não foi um cara fora do comum dentro daquele coletivo.

No livro, você conta que ele desmistificava a ideia glamourosa da guerra, trazida pelos filmes de Hollywood e pela cultura pop em geral. O seu pai era um pacifista?

Ele estaria dentro do contexto do pacifista porque, assim como a grande maioria dos 25 mil brasileiros que foram lá, ele voltou, não teve nenhuma sequela psiquiátrica, não virou um neurótico de guerra?

A maioria daquela turma que foi para lá só queria voltar e retomar a sua vida normal. Porque a guerra é uma anormalidade. Ele entendeu isso, passava essa ideia para a gente. Ele não se vangloriava nem um pouco disso [de ter combatido na guerra].

Ele entendeu, conseguiu contextualizar tudo o que aconteceu com aquela turma que foi lá brigar no fuzil. Ele entendeu o grande parênteses que significou na vida de todo mundo ir para guerra.

Ricardo Borges

Pela Paz

Seu pai acabou tendo certa repulsa pela ideia da guerra. Foi por ter vivido isso de fato?

A repulsa passa por essa compreensão do que significou isso tudo. Meu pai, quando a gente perguntava para ele as coisas da guerra, se ele tinha matado alguém, isso tudo, ele sempre tergiversava, desviava a coisa para um lado mais elevado da conversa.

Ele falava que a guerra foi uma coisa muito triste, que ele viu muita miséria, mulheres e crianças sem ter o que comer, velhos abandonados e toda a destruição. Ele sabia que não era para se vangloriar por ter participado daquilo. Ele falava de uma maneira muito elevada, que eles tinham ido lá para tentar resolver um problema sério e contava a história de uma maneira muito objetiva: "A gente teve de responder a uma agressão, a gente foi lá ajudar a terminar com aquela coisa horrível que foi o nazismo".

Meu pai falava que eles foram para a guerra para que nada parecido acontecesse novamente. Ele já tinha essa noção. Acho que, no fundo, quem vai para a guerra jamais gostaria que seu filho e que seu neto fossem para a guerra. Ele não glamourizava isso. Acreditava que havia deixado uma lição para que nada parecido acontecesse.

Ele nunca falou para a gente se matou alguém, ele falava 'a gente dava uns tiros para cima e os alemães já vinham se rendendo'.

João Barone, escritor e baterista dos Paralamas do Sucesso

Interessante trazermos isso para os tempos atuais, quando tantos jovens parecem encantados com a temática de guerra, trajando armas militares com orgulho, querendo usar armas...

A ideia do meu livro é tentar fazer valer o sacrifício de caras como meu pai, que tiveram de deixar um pouco da sua juventude lá nos campos de batalha da Itália. Para que ninguém caia no conto da cadela do cio do neonazismo, neofascismo.

Eles estão aí prontos para chocar o ovo da serpente, a gente viu o crescimento dos extremismos, principalmente de direita, enganando muita gente.

É muito importante martelar essa tecla: lembrar as pessoas que se deixam enganar pelos discursos nazifascistas, que elas são perdedoras naturais. Esta é uma mensagem muito atual para as gerações atuais.

Ricardo Borges Ricardo Borges

Mais estranho que a ficção

Voltando ao seu pai, quando o assunto vinha à tona em sua casa, como ele costumava lidar? Ele resistia a falar sobre a guerra?

Eu me lembro de várias ocasiões, quando a gente ainda era pequeno. A conversa geralmente começava quando estávamos com aqueles objetos que sobraram da guerra, o capacete, a marmita, o cinturão, as polainas, as medalhinhas e plaquetas de identificação. Ele explicava e as conversas iam sempre assim, iam crescendo, até o momento em que a gente perguntava "mas, pai, você matou alguém, você matou algum inimigo?". E ele sempre desconversava.

Era uma conversa que se repetia, um roteiro que se repetia, mas a gente gostava de ouvir a história repetidas vezes.

Ele falava que havia sido um sacrifício muito grande, que a guerra de verdade não era brincadeira, que ele viu muita tristeza e destruição, mas que era importante para o mundo que isso tivesse acontecido.

Em 1998, uma das últimas conversas que tive com ele sobre a guerra foi quando eu e meu irmão o levamos para assistir ao filme do soldado Ryan [O Resgate do Soldado Ryan, de Steven Spielberg]. Quando a gente saiu do cinema, ele falou que o filme era, realmente, muito realista. Mas comentou que não chegava nem perto do que foi mesmo de verdade lá na guerra. Ficou uma percepção de que ele sempre evitou falar sobre as coisas mais terríveis.

Numa de nossas últimas conversas sobre o assunto, ele comentou uma coisa que nunca tinha falado para a gente antes: a lembrança do cheiro da morte, o cheiro dos corpos que tinham ficado soterrados ali em casas destruídas. Era um cheiro muito perturbador, o dos corpos insepultos.

João Barone, escritor e baterista dos Paralamas do Sucesso

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