Cidadão global

'As pessoas só agirão se puderem ver que ações têm impacto real', Global Citizen melhora a vida de 1 bilhão

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo Desiree Navarro/Getty Images

Desde a juventude, o australiano Hugh Evans tem se dedicado a uma causa: erradicar a pobreza extrema no mundo. Esse objetivo ambicioso não pode ser atingido por um homem só, mas, na visão de Evans, é viável através da ação coletiva. Foi para fomentar esse tipo de ação que cofundou em 2008 a organização internacional Global Citizen.

Nos últimos dez anos, segundo, ele, os "global citizens" ("cidadãos globais", em tradução literal) fizeram "30 milhões de ações que resultaram em mais de 41 bilhões de dólares sendo doados." Um impacto grande, que atingiu 1 bilhão de pessoas e cuja fórmula inclui shows e especiais televisivos com artistas como Lady Gaga e Coldplay.

Seu compromisso com o fim da pobreza teve início quando visitou uma favela localizada junto ao aterro sanitário Smokey Mountain em Manila, nas Filipinas, em que os moradores viviam do lixo. Evans tinha 14 anos e tinha ido conhecer os programas de desenvolvimento no país do sudeste asiático por meio de um concurso. O contraste com a realidade que conhecia o marcou profundamente: se nascer rico ou pobre é mero acaso, pensou, ninguém deveria se achar merecedor de ter mais que o outro.

Ao lado do combate à pobreza, a Global Citizen tem se voltado para a ação climática e promoção da igualdade de acesso às vacinas da covid-19.

Em maio, Evans esteve pela primeira vez no Brasil e falou com exclusividade a Ecoa sobre o impacto da plataforma e do engajamento dos cidadãos globais.

Desiree Navarro/Getty Images

Pobreza não é natural

Ecoa - Por que você se comprometeu com a missão de erradicar a pobreza extrema?

Hugh Evans - Há uma injustiça inerente à pobreza extrema. Nelson Mandela colocou isso melhor quando disse que superar a pobreza não é um gesto de caridade, é um ato de justiça e que a pobreza é feita pelo ser humano e pode ser erradicada por ações humanas. A pobreza não é natural. O estado natural para os humanos é estar em comunidade para prosperar, crescer, enriquecer uns aos outros. A pobreza é estrutural e é por isso que precisamos mudar as estruturas que mantêm as pessoas na pobreza.

Como convencer as pessoas de que as ações delas importam?

As pessoas só vão agir se puderem ver que suas ações têm um impacto real. Elas não querem perder tempo. Por isso trabalhamos muito para garantir que todas as ações que levamos os cidadãos a tomar sejam muito específicas. Precisamos conseguir ver a causa e o efeito: se apelamos a um governo, temos que saber se o governo respondeu ou não. Por isso empregamos o ativismo de nossos membros de uma maneira altamente direcionada.

Também queremos mostrar às pessoas que, sozinhos, podemos sentir que nossa voz é tão fraca, que somos apenas uma gota em um oceano imenso, mas há um enorme poder na ação coletiva. Nós mostramos que se você ampliar a escala de uma ação, poderá alcançar um objetivo político muito maior.

Fazemos isso por uma razão muito clara: porque notamos que se tentássemos resolver a pobreza extrema, as mudanças climáticas ou a desigualdade de gênero pela perspectiva da caridade, teríamos que organizar jantares de gala pelos próximos 100 milhões de anos na tentativa de arrecadar dinheiro suficiente para realmente enfrentar qualquer um desses desafios. Nunca conseguiríamos.

Quando se trata de uma escala de centenas de milhões de pessoas que estão na pobreza, não é algo que vai ser resolvido com a construção de um poço de água numa determinada parte do Brasil. É preciso atacar esses problemas de maneira sistêmica. Sem isso, a caridade, por melhor que seja, é muito limitada.

Getty Images for Global Citizen Pharrell Williams se apresenta no Global Citizen Festival em 2019, em Nova York

Pharrell Williams se apresenta no Global Citizen Festival em 2019, em Nova York

Coldplay vs covid

A pandemia mudou a forma como vocês operam?

A pandemia teve um efeito profundo sobre nós. Sabíamos que precisávamos estar a serviço da humanidade. Fizemos uma parceria com o Coldplay e com Lady Gaga para lançar o "One World Together at Home", que foi um grande especial global de televisão, transmitido pela rede Globo aqui no Brasil. Ele contou com grandes artistas do mundo todo unidos para arrecadar fundos com urgência para EPIs (Equipamento de proteção individual) e profissionais de saúde da linha de frente. Levantamos 127,9 milhões de dólares em uma noite e entramos para o Guinness World Records em termos de audiência.

Descobrimos que o Global Citizen pode desempenhar um papel muito importante quando o mundo enfrenta grandes crises. Muitas pessoas nos procuram agora nessas crises e nos perguntam: 'o que podemos fazer para ajudar?'.

Acredito que o mundo precisa de um novo pacto, porque o plano dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU é muito lento, não tem recursos suficientes e, honestamente, nos sete anos desde que o plano foi lançado, o número de pessoas vivendo em extrema pobreza aumentou em vez de diminuir. Precisamos de um novo pacto muito mais ousado que una Estados, cidadãos, o setor privado com um grau de urgência que diga: agora é a hora de acabar com a pobreza extrema, não podemos esperar até 2030 para medir nossos resultados. Precisamos avançar agora, medi-los todos os anos com o mesmo desespero sentido por aqueles que de fato vivem nessa situação de pobreza, em solidariedade a eles, do contrário não estaremos sendo fiéis à nossa missão.

US$ 41 bilhões

Quais os principais focos de ação do Global Citizen atualmente? Pode exemplificar qual tem sido o impacto da organização nessas áreas?

Nosso foco atual está na campanha "End Extreme Poverty Now" [Acabe com a extrema pobreza agora], lidando com três grandes entraves. Em primeiro lugar, precisamos empoderar meninas, porque sabemos que mais do que qualquer outro grupo, são elas que com acesso à educação, nutrição, saúde e planejamento familiar vão investir em suas comunidades e tirá-las da pobreza extrema.

Nosso trabalho nessa área tem sido vasto, mas um exemplo em que tivemos muito sucesso foi na África do Sul, onde nos juntamos a ativistas locais em 2018 para defender o acesso gratuito a produtos de higiene menstrual para meninas, porque essa é uma barreira frequente que as mantém fora da escola e, consequentemente, na pobreza. Com isso, 100.000 cidadãos globais convocaram [através da plataforma Global Citizen] o governo sul-africano a mudar sua política e eles eliminaram o imposto sobre produtos menstruais.

Mas queríamos ir além, e por isso defendemos que o governo fornecesse produtos menstruais gratuitamente em escolas públicas. Através da campanha Mandela 100, conseguimos convencer o governo a alocar 129 milhões de dólares para financiar esses produtos. Isso fez com que os governos sul-africanos tenham passado a fornecer produtos menstruais gratuitos para mais de um milhão de jovens anualmente em toda a África do Sul.

Em 2021, o Global Citizen realizou na Califórnia o VAX LIVE, um show pela promoção da equidade vacinal no mundo - Kevin /Getty Images for Global Citizen (750x421)

A segunda área em que temos nos concentrado fortemente é a questão da equidade vacinal. Em nossa campanha Vax Live no ano passado, que foi encabeçada por J-Lo e Selena Gomez, o duque e a duquesa de Sussex, Meghan e Harry, conseguimos milhões de doses de vacina prometidas pelas nações mais ricas do mundo. Mas isso segue sendo um desafio porque, sinceramente, as nações ricas continuam acumulando vacinas e é por isso que países mais pobres só conseguiram entregar vacinas para 13% da população.

E a terceira é a ação climática. Concentramos nossos esforços em encorajar empresas a se comprometerem com a "Corrida para o zero", reduzindo suas emissões de carbono para zero líquido até 2050, com metas intermediárias até 2030. Tivemos muito sucesso trabalhando com nossos parceiros para conseguir que empresas como Delta [Air Lines], Procter & Gamble, Amex, Cisco, muitas das maiores corporações do mundo, se juntassem nos palcos do Global Citizen para anunciar seu compromisso com a neutralidade de carbono. E encorajamos todas as empresas das listas Fortune 500 e Fortune 1000 a fazer parte desse compromisso porque são as corporações que respondem por 80% das emissões de carbono no mundo.

Esses são apenas três exemplos de impacto, mas cumulativamente os "global citizens" tomaram mais de 30 milhões de ações que resultaram em mais de 41 bilhões de dólares sendo doados a partir de compromissos firmados em nossos palcos, que impactaram a vida de mais de um bilhão de pessoas no planeta nos últimos 10 anos.

Frank Schwichtenberg/Wikimedia Commons Coldplay no Festival Global Citizen em Hamburgo, em 2017

Coldplay no Festival Global Citizen em Hamburgo, em 2017

Divulgação

Muitas vezes, as pessoas tratam a erradicação da pobreza e o enfrentamento das mudanças climáticas como assuntos separados. Como podemos lidar com essas duas questões ao mesmo tempo?

Primeiramente, é importante perceber que elas são, na verdade, dois lados da mesma moeda chamada desenvolvimento sustentável, e que só vamos resolver a pobreza extrema se abordarmos as mudanças climáticas e vice-versa. Isso significa que os países cuja prosperidade foi assentada sobre a exploração desenfreada de combustíveis fósseis não podem esperar que nações em desenvolvimento — que não ganharam nada com isso e em muitos casos viram sua própria riqueza ser saqueada — banquem a limpeza.

Muito menos que abram mão de seu próprio desenvolvimento econômico e da prosperidade futura em nome da descarbonização, uma vez que os países ricos concordaram em fornecer 100 bilhões de dólares anualmente para ajudar os países mais pobres do mundo a fazer a transição para a economia verde, mas até agora não cumpriram essa promessa.

Não ver essas áreas como interconectadas é ignorância. Se você é um ativista climático que diz 'não podemos acabar com a pobreza extrema porque, então, mais pessoas terão um padrão de vida que emite mais carbono', está basicamente condenando essas pessoas a um futuro ao qual você não está disposto a se condenar, é um ponto de vista absolutamente hipócrita. Acho isso enfurecedor! E vejo muito isso entre ativistas climáticos e ativistas pelo desenvolvimento. Ambos precisam aprender que, a menos que desenvolvam uma política integrada, o mundo vai fracassar. Acorde e sinta o cheiro do carbono.

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