Investidor do MST

'Acumulei muito patrimônio, não preciso mais": João Paulo Pacífico doa empresa e apoia o MST na Bolsa

Giacomo Vicenzo De Ecoa, em São Paulo (SP) ANDRE LUCAS

"Acumulei muito patrimônio em minha vida, mas agora não preciso mais. Cheguei a um momento que não faz sentido ter mais dinheiro. Foi por isso que decidi doar a empresa e transformá-la em uma ONG de impacto social. Acredito que quem tem mais saúde precisa ajudar quem tem menos, assim como quem tem mais dinheiro tem de ajudar quem tem menos", diz João Paulo Pacífico, 43, a Ecoa.

Estamos em uma sexta-feira à tarde e o homem de cabelo comprido veste camiseta preta com a frase: 'Quem tem apenas aspirações individuais jamais vai entender a luta dos outros'. A vestimenta foge ao padrão dos executivos que são seus pares no mercado financeiro, onde Pacífico conquistou sucesso e fortuna, remando contra uma corrente em que o lucro fica sempre na mão das mesmas pessoas.

Longe de fazer voto de pobreza e sem floreios, João Paulo Pacífico assume ter uma vida confortável, mas sem aspirações de adquirir veículos esportivos, hangares ou helicópteros. Pelo contrário, seu carro é alugado e ele diz ir ao escritório montado em seu patinete.

"Quero ter dinheiro e trabalhar, mas não quero mais ser dono. Serei o diretor da ONG, receberei salário, mas todo lucro passará a ser investido em impacto social e ambiental. Também sou contra a ideia de minhas filhas nascerem donas - terão toda condição possível, mas não herdarão a empresa", afirma o empresário.

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Mudando as regras do jogo: dos ricos aos pobres

Pacífico decidiu doar sua empresa — o Grupo Gaia, que está no mercado financeiro há 13 anos — ao reconhecer os próprios privilégios. Ele entende que acumular mais patrimônio seria ser 'viciado em dinheiro', vício que atribui a muitos dos investidores brasileiros.

"O primeiro passo foi a abertura de uma ONG em 2014, a 'Gaia +', que acolhe até hoje crianças em contraturno escolar em Piracicaba [cidade do interior de São Paulo]. Já em 2017, conheci um projeto da empresa Vivenda, que tem como foco a reforma de casas em comunidades e periferias, e fiquei encantado com aquilo e investi na ideia", conta Pacífico.

A Vivenda é um negócio de impacto que trabalha para famílias de menor renda, oferecendo assistência técnica, mão de obra e matéria-prima para reformas. A proposta é facilitar a contratação do serviço de reforma, geralmente com menor custo e com a possibilidade de se pagar em até 30 prestações. Foi nesse projeto que Pacífico enxergou uma das primeiras oportunidades de usar a sua expertise no mercado financeiro para mudar a lógica do jogo da bolsa de valores.

"O mercado financeiro é feito para rico investir em rico, mas conseguimos adaptar uma ferramenta [debênture, título de crédito representativo] para a reforma de casas em comunidades. Juntamos dinheiro de investimento com dinheiro de filantropia, assim era possível investir no projeto, ter rentabilidade e garantir a seguridade de crédito da Vivenda", afirma Pacífico a Ecoa.

"Essa operação também ajudou a tirar o risco do crédito da Vivenda, que era um negócio novo, e resolveu o nosso problema de fluxo de caixa, pois estávamos usando dinheiro nosso para operacionalizar essas reformas", explica Fernando Assad, cofundador da Vivenda.

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Um investidor do MST

Pacífico usou lógica semelhante para ofertar títulos de dívida das cooperativas ligadas ao MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) na bolsa de valores, e considerou o próprio momento em que conheceu o movimento mais a fundo como algo importante para um processo de mudança — em que passou a reconhecer seus privilégios e a realidade desses trabalhadores.

"Visitei acampamentos do MST a pedido de um amigo, que me disse que toda narrativa que se constrói contra o movimento é mentira. Chegando lá, os vi plantando arroz orgânico. Então, por que eu deveria ser contra isso? ", diz o empresário.

"Em uma situação de opressão, ficar neutro é ajudar o opressor. Se eu ficasse neutro continuaria a fomentar esse sistema de opressão, e isso é contra o meu caráter. Foi a partir disso que decidimos criar essa ação na Bolsa de Valores B3 para o MST", completa.

De forma simplificada, Pacífico criou uma operação em que qualquer pessoa poderia investir no MST a partir de R$ 100. "As pessoas compraram a partir da B3 títulos para emprestar dinheiro ao MST [e ter rentabilidade com o investimento]", conta Pacífico.

"Há um lado muito positivo nesse tipo de investimento de impacto, mas sofri diversas retaliações no mercado e até mesmo em meu círculo pessoal. Há pais de crianças da escola da minha filha que falam mal de mim por eu apoiar o movimento", completa.

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Reforma agrária na bolsa de valores

Ana Terra, militante do MST, agrônoma e responsável pelo Finapop (Financiamento Popular da Agricultura Familiar), explica que Pacífico se junta a uma onda de parceiros interessados em fazer financiamentos que impactem a sociedade como um todo. E os resultados dos títulos emitidos pelo Grupo Gaia marcam a casa dos milhões, com 17,5 milhões destinados a investimentos para sete cooperativas agrícolas em 2021.

"O João Paulo e o Grupo Gaia são parceiros que se juntam a um grupo de pessoas interessadas em fazer financiamentos. No caso das Cooperativas de Assentamentos, este impacto reflete-se em melhores condições de produção, agroindustrialização e comercialização de alimentos saudáveis, gerando melhor qualidade de vida às famílias que produzem e a todos que consomem", comenta Terra.

Neste ano, o Grupo Gaia também viabilizou o financiamento para uma embaladora a vácuo, que trabalha com feijões orgânicos. "Isso acontece na Cooperativa Da Terra, que atua no interior de São Paulo, com produção de feijão orgânico. O investimento de 1,2 milhão possibilitará melhorias no beneficiamento de feijão, um alimento de todos os brasileiros", conta Terra.

Arquivo Pessoal

Compartilhar fortuna para render felicidade

Pacífico se interessa por psicologia positiva, uma linha que estuda a felicidade. Foi a partir desse movimento interno, que percebeu um sentido para além da sua busca por dinheiro.

"Comecei a aplicar isso no trabalho e reparei que sempre fiz operações financeiras com grandes empresas, mas as operações em que fui mais feliz fazendo na minha vida foram as que tiveram impactos positivos nesses projetos", conta Pacífico.

A princípio seu plano era apenas dividir o Grupo Gaia em dois, sendo uma repartição para o mercado tradicional e outra para impacto social, mas percebeu que o caminho que lhe faria mais sentido seria doar e transformar todo o grupo em uma empresa de impacto social, transição que está prevista para o fim de outubro.

"O MST gera riqueza sem ter tanto dinheiro. Fazer isso é entender por que viemos para cá e por que a gente vive, entender que todos dependemos uns dos outros. Esse é um conceito de interdependência, e nos mostra que não existe felicidade quando você tem acesso a tudo e outras pessoas não têm acesso a nada", acredita Pacífico.

Para o executivo, seu desejo é que sua escolha sirva como exemplo a outros players do mercado financeiro. "Eu quero servir de inspiração para as pessoas e a mensagem é mais importante que o mensageiro. Sou contra as listas de bilionários, isso é uma doença e deriva de um grande ciclo exploratório, quero que outras assim como eu, coloquem a mão na consciência e entendam que não precisam disso", comenta.

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