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Rodrigo Ratier

REPORTAGEM

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'Exausta', diz professora negra que perdeu vaga de cota para um branco

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

02/12/2022 06h00

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Professor branco ocupa vaga reservada a pessoas negras num concurso da Universidade Federal de Goiás (UFG). Notícias se espalham também pelos afetos que mobilizam, e a do caso em tela se propagou pela indignação.

Um resumo expandido diria o seguinte: em dezembro de 2021, Gabriela Marques Gonçalves conquista o posto de professora concursada na UFG. Foi a terceira na classificação geral, a primeira entre os negros. Teve a nomeação publicada em abril deste ano e suspensa um mês depois, por decisão do juiz Urbano Leal Berquó Neto. No lugar de Gabriela, o magistrado nomeou Rodrigo Gabrioti de Lima, primeiro colocado na ampla concorrência. Branco.

A lei nº 12.990 de 2014 reserva para negros e negras 20% das vagas oferecidas em concursos públicos. Um entrave para o magistério superior, onde os concursos quase sempre são de vagas únicas, que se abrem geralmente em casos de aposentadoria ou morte. Na prática, fica impossível aplicar cotas para negros.

A UFG contornou a barreira lançando editais únicos para todas as vagas disponíveis no período, independentemente da área. A metodologia é aplicada desde 2019 e segue recomendação do Ministério Público de Goiás. No concurso de 2021, eram 15 postos, 3 reservados para cotas de acordo com a ordem cronológica da entrada dos pedidos de concurso na administração da Universidade. A vaga de Gabriela, para o curso de jornalismo, era uma delas. O dado consta do edital.

Provocado por uma ação do candidato branco, Berquó Neto entendeu que o concurso era de vaga única e que não cabia cota para negros. Impediu a posse de Gabriela e nomeou Rodrigo. Enquanto aguarda a sentença final do juiz de Goiás, a defesa da professora entrou com recurso no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. A argumentação se baseia em peças como a Ação Declaratória de Constitucionalidade 41, do Supremo Tribunal Federal (STF). O documento de 2017 estipula que os concursos não podem fracionar vagas de acordo com a especialização exigida para burlar a política de ação afirmativa.

Na 4ª feira (30), o MPF de Goiás considerou a ação de Rodrigo improcedente e pediu a revogação da decisão do juiz Berquó Neto.Na 4ª feira (30), o MPF de Goiás considerou a ação de Rodrigo improcedente e pediu a revogação da decisão do juiz Berquó Neto.

A coluna ouviu a história de Gabriela. Em conversa pelo WhatsApp, a professora preferiu se manifestar por escrito e pediu para não ter a imagem divulgada. "Além do excesso de exposição, não gostaria de individualizar o caso. A política de cotas é uma causa coletiva", afirma. O depoimento a seguir foi construído com as respostas enviadas pela docente. O texto foi enviado à professora antes da publicação:

***

"No dia em que o resultado do concurso seria divulgado, eu estava na minha avó, no interior do Tocantins, para celebrar seu aniversário de 100 anos. A casa estava cheia, então fui para o quarto onde uma tia dormia. No escuro mesmo, conectei na videochamada da Universidade Federal de Goiás (UFG). Só consegui chorar - tanto que minha tia acordou perguntando o que estava acontecendo. Como ainda eu tinha a banca de heteroidentificação pra confirmar que a vaga era minha, só comentei com a minha mãe e uma prima. Contei para as minhas amigas por WhatsApp também.

Nasci em Brasília, mas nunca morei lá. Com um ano de idade nos mudamos para Goiânia. Meu pai era comerciante, minha mãe, servidora pública. Nenhum dos dois fez faculdade. Ela estava na leva dos demitidos pelo governo Collor e, desde então, trabalhou em diversas coisas. Tenho um irmão e uma irmã mais velhos e, desde a separação dos meus pais, quando eu tinha 7 anos, minha mãe teve que sustentar e cuidar de nós três sozinha. Éramos uma família de classe média, média baixa depois do divórcio.

Desde criança eu já dizia que queria ser jornalista, não sei explicar em que momento tomei essa decisão. Lembro que uma amiga do Ensino Fundamental sempre dizia que eu ia ser a próxima Glória Maria. Nossa referência de jornalismo sempre foi muito a televisão. Entrei na Universidade Federal de Goiás (UFG) em 2006. Ainda não existia a política de cotas, que começou dois anos depois. Foi muito visível a diferença das turmas quando cheguei e quando estava saindo.

Racismo e discriminação nunca foram abertamente discutidos na minha família. O que a gente chama de letramento racial veio muito tarde pra mim. Então eu nunca soube nomear algumas coisas que me afetavam e que aconteciam comigo. As cotas na universidade foram muito importantes pra mim porque esses temas começaram a ser mais discutidos e eu pude identificar o racismo no meu dia a dia. Desde os apelidos, os alertas para não ficar muito no sol pra não ficar 'mais escura', comentários sobre meu cabelo, ser tachada de 'abusada' por ocupar determinados espaços ou assumir posições de liderança, relacionamentos afetivos, minha própria autoestima, enfim, várias questões que atravessam nosso dia a dia. Compreender tudo isso e como opera o racismo é um processo doloroso, mas ao mesmo tempo de muita potência, especialmente quando conseguimos lidar com isso na coletividade, com outras pessoas negras, a partir da união, da luta, do apoio mútuo.

Terminei a faculdade e fui trabalhar em TV. Fiz uma pós nesse tempo e fui aprovada no mestrado em Comunicação na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Comecei a lecionar, fui coordenadora de curso em uma faculdade privada e consegui uma bolsa da Capes para fazer meu Doutorado na Espanha. Sou a única doutora da família.

De volta ao Brasil, passei na seleção de professora substituta na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Fiquei por lá até o início de 2022. Aí veio uma série de concursos. Federal do Tocantins, Federal de Juiz de Fora, e a UFG. O tema era telejornalismo e audiovisual, o que me ajudou, porque passei o ano todo dando aulas relacionadas à área.

A primeira prova foi a escrita. O tema foi sorteado um dia antes, então pudemos nos preparar um pouco mais. Tirei a segunda maior nota. Em seguida foram 2 etapas juntas: prova didática e defesa do memorial, documento em que o candidato relata sua trajetória profissional e acadêmica. Fiquei então entre os 5 melhores classificados e passei para a etapa final, a de análise do currículo. Terminei então em terceiro lugar na classificação geral. Como a vaga era para cotas e os dois primeiros candidatos eram brancos, obtive a primeira colocação.

Em novembro, quando saiu a nomeação do candidato branco em uma vaga de cotas, eu estava viajando, na casa de um amigo. Foi uma decepção muito grande. A primeira reação foi de novo contar para minhas amigas, depois avisar meu advogado. Estou exausta, não vou mentir. Tem sido bem cansativo tudo isso e a exposição do meu nome, meu rosto, é bem desgastante. Eu não precisava estar passando por isso.

Tenho recebido muito apoio, especialmente de amigas e amigos, de gente do movimento negro. Também tenho recebido a solidariedade de pesquisadores/as e professores/as de comunicação do país todo porque sabem a gravidade deste caso para o avanço das políticas públicas na nossa área. Não sofri nenhum ataque direto, o maior ataque foi o processo mesmo em si. E eu tenho evitado ler comentários nas redes sociais.

Eu espero que a decisão seja revertida a nosso favor, que a gente ganhe esse processo e eu possa assumir meu cargo de docente na UFG. Que todo o debate sirva de aprendizado e de mobilização para seguir a luta para ampliar as conquistas e direitos das pessoas racializadas.

Mas é triste perceber que não se trata de um caso isolado. Semana passada, recebi e-mails de duas pessoas passando por questionamentos de nomeação de cotistas em concursos. Pelo visto, esse tipo de ataque às cotas está se tornando mais comum."