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Rodrigo Ratier

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Sem ser jornalista, Mano Brown ensina a entrevistar

O rapper Mano Brown - Pedro Dimitrow
O rapper Mano Brown Imagem: Pedro Dimitrow

Rodrigo Ratier

13/09/2021 06h00

Ele, se quisesse, poderia fazer pose de durão. Na qualidade de figura máxima do rap nacional e referência incontornável para a periferia e a esquerda brasileira, Mano Brown teria legitimidade para conduzir seu Mano a Mano impondo posturas e adotando atitude combativa. Seria condizente com sua figura pública e, além de tudo, com a fórmula dos podcasts "sem filtro": entrevistas intermináveis que parecem destinadas a gerar pequenos trechos — os "cortes" — com polêmica e lacração para viralizar nas redes sociais.

O que se ouve nos três episódios lançados até agora é algo bem diferente. Mano a Mano traz um Brown contido e de poucas certezas. Escuta muito mais do que fala e, quando fala, não tem medo de fazer perguntas básicas ("às vezes eu falo uma besteira, sou autodidata, só estudei até a oitava série"). Quando expressa pontos de vista, os apresenta como hipóteses e não como verdades evidentes. Parece preocupado em criar pontos de contato com o interlocutor e deixá-lo seguro para se expressar. Acima de tudo, se apresenta como uma pessoa curiosa, genuinamente interessada no que os entrevistados têm a dizer.

A postura "desconstruidona" causou estranheza. A respeito de sua entrevista com o ex-presidente Lula, diz-se que o líder do Racionais não teria sido combativo o suficiente. Há uma certa mitologia de que o entrevistador bom é aquele que consegue emparedar o entrevistado. Réplicas ágeis, agressividade constante e eventuais pegadinhas seriam recursos indispensáveis para fazer o interlocutor confessar um malfeito, admitir um erro, cuspir diante dos microfones uma verdade nunca dita, arrancada a fórceps das entranhas graças ao engenho de uma mente brilhante com as palavras.

Ocorre que declarações bombásticas não se roubam. Em tempos de media training generalizado, figuras públicas já sabem como se comportar diante dos entrevistadores, o que dizer e o que omitir, como tergiversar ou simplesmente se fingir de louco para não responder. Na prática, ninguém fala nada que não queira falar, exceto sob tortura ou efeito de entorpecentes, estratégias obviamente interditadas ao exercício do jornalismo profissional.

Ainda assim, a imagem hollywoodiana do entrevistador implacável segue viva, como se não houvesse forma de estabelecer qualquer conversa reveladora fora do esquema tiro, porrada e bomba. É um equívoco. No clássico Entrevista: O Diálogo Possível, Cremilda Medina distingue dois tipos de entrevista: aquela cujo objetivo é espetacularizar o ser humano e as que esboçam a intenção de compreendê-lo. É apenas nesse segundo caso, diz a autora, que se produz diálogo, situação em que "entrevistador e o entrevistado colaboram no sentido de trazer à tona uma verdade que pode dizer respeito à pessoa do entrevistado ou a um problema."

O melhor exemplo de como isso ocorre em Mano a Mano é a entrevista de Brown com Drauzio Varella. Cada um com sua vivência — seus "lugares de fala" —, ambos testam explicações sobre a vida: o assombro que é viver em São Paulo, a dificuldade de fazer exercícios físicos na periferia, o magnetismo trágico da Casa de Detenção. Mais do que causo aleatório, o relato sobre um baseado "da espessura de um dedão" no Pavilhão 8, à vista dos vigias, é o mote para a discussão sobre o Carandiru como lugar de realismo fantástico. O resultado é talvez algo próximo do que o francês Yves Agnès define como a entrevista perfeita: aquela em que o entrevistador permite ao entrevistado de ir mais longe em sua análise, no aprofundamento de sua opinião.

Na conversa com Lula, o ponto alto é Brown relembrando o climão quando espinafrou o PT durante um comício de Haddad na reta final do 2o turno. Seu relato sobre o caso ("Olhei para a plateia e não vi os meus lá. Aquele povo que colocou o PT no governo") rendeu uma rara autocrítica do ex-presidente ("o PT foi normalizando uma relação com a sociedade que estava mais próxima e foi esquecendo o seu discurso originário, que era dar vez e voz aos trabalhadores do país").

A fala com poucas interrupções dá palco a Lula, mas não lhe é necessariamente favorável. O convite para explicar o que é a direita resulta numa definição pobre e estereotipada. Na resposta à ausência de pessoas negras na direção do PT, Lula sugere que a questão se resolve prioritariamente pela saída da condição de "vitimismo", raciocínio que o colunista André Santana aponta como "equívoco" sobre discurso racial. São pontos de vista reveladores, que sinalizam fragilidades e que só vêm à tona porque o entrevistado se sente seguro para se expor com menos defesas.

Como toda novidade, Mano a Mano vive um momento de calibragem. Vai ser interessante ver o líder do Racionais diante de entrevistados menos progressistas — o vereador Fernando Holiday é um dos confirmados para a primeira temporada. Por enquanto, o saldo é muito positivo. Sem ser jornalista, Brown lembra ao jornalismo que existe um certo tipo de entrevista que dá certo quando duas pessoas estabelecem uma conexão respeitosa, baseada não na coação, mas na vontade mútua de colaborar para aprender mais.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL