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Rodrigo Ratier

REPORTAGEM

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Educação Física escolar não deve formar atletas, diz professor da USP

Com distanciamento, alunos têm aula de educação física na Escola Estadual Thomaz Rodrigues Alckmin, no Itaim Paulista, zona leste de São Paulo - Wanderley Preite Sobrinho/UOL
Com distanciamento, alunos têm aula de educação física na Escola Estadual Thomaz Rodrigues Alckmin, no Itaim Paulista, zona leste de São Paulo Imagem: Wanderley Preite Sobrinho/UOL

Rodrigo Ratier

05/08/2021 06h00

É um roteiro conhecido. Chegam as Olimpíadas e, no caso do desempenho brasileiro, tanto as gratas surpresas quanto os eventuais fracassos são atribuídos à falta de investimento no esporte. Quando as coisas dão certo, a vitória veio apesar das carências. Quando dão errado, é por causa delas. Um argumento recorrente é olhar para potências como China e Estados Unidos e sugerir que o Brasil siga o mesmo modelo: usar as escolas para massificar a prática esportiva e garimpar futuros talentos.

"Não deveríamos ir por esse caminho", diz Marcos Garcia Neira, diretor da Faculdade de Educação da USP. "Formar pessoas para disputar competições de alto rendimento exige um grau de especialização e de aprofundamento que foge do objetivo da escola. A escola existe para formar a todos e todas". Uma das vozes mais reconhecidas da pesquisa e do ensino em Educação Física no país, Neira afirma que a área deve ir além dos esportes, considerando brincadeiras, lutas, ginásticas e danças. Também defende repensar a organização de competições e a abordagem tradicional das modalidades para favorecer a inclusão. "Em muitos casos, não faz sentido ensinar o esporte com as regras oficiais. Cada grupo de alunos e alunas pode reelaborar a forma como todos vão participar". A seguir, os principais trechos da entrevista concedida à coluna.

Ecoa - Em época de Jogos Olímpicos, é comum ouvir que as escolas deveriam incentivar a formação de atletas. Você concorda?

Marcos Garcia Neira - Compreendo perfeitamente que apareça essa preocupação. Em alguns casos, há inclusive uma tentativa de relacionar um desempenho abaixo do esperado no quadro de medalhas com a qualidade da Educação Física (EF). De fato, houve um momento em que tentaram atribuir à área a responsabilidade por garimpar, reconhecer, identificar possíveis talentos esportivos. Nos países que vinculam o sistema esportivo escolar ao sistema esportivo mais amplo, normalmente se olha para a escola dessa maneira. Mas, no Brasil, há décadas, separamos esses dois sistemas. Não existe ligação entre o sistema escolar e o sistema esportivo.

Então o poder público não deveria se preocupar com esporte?

É muito importante que o Estado mantenha espaços de ensino esportivo e de preparação de pessoas que desejam seguir carreiras no esporte: boas piscinas, bons ginásios, bons campos, boas pistas, bons aparelhos e, principalmente, profissionais bem remunerados. Em qualquer cidade, uma criança de 10 anos que quisesse fazer uma iniciação em uma certa modalidade deveria ter essa possibilidade. Mas qual o papel da Educação Física na escola? Na absoluta maioria das propostas curriculares, a EF está na área das linguagens. O que isso significa? Que as práticas corporais - não só os esportes, mas as brincadeiras, as danças, as lutas e as ginásticas - são textos da cultura, artefatos culturais que têm uma relação direta com as identidades dos grupos que produzem essas práticas.

O que isso significa?

Vou dar um exemplo corriqueiro: qual é o contexto de criação da capoeira no Brasil? Os traços dessa identidade cultural estão nos gestos, nos trajes, no que eles cantam, no ritual, nos instrumentos que usam. É a mesma coisa quando você olha o caratê no Japão, o kung-fu na China, o jiu-jitsu brasileiro - uma criação japonesa que, quando é apropriado pelos brasileiros e brasileiras, sofre alterações. As práticas corporais dialogam com as culturas. Na escola, a Educação Física deve proporcionar experiências que qualifiquem a leitura e a produção dessas práticas.

Como isso ocorre concretamente?

O foco são as atividades pedagógicas de vivência, para que crianças, jovens e adultos compreendam as práticas corporais pela experimentação. Mas a Educação Física também é espaço de discussão, de problematização, de reorganização. Se ensinarmos o vôlei com as regras de ginásio, ele será impraticável para crianças do 6º ano. A turma deveria pegar a modalidade e adaptá-la à sua realidade. A bola pode quicar no chão? Vamos usar uma bola mais leve? A altura da rede vai ser a mesma? As equipes podem ter mais de seis integrantes? Como fazer com que meninos e meninas, que pessoas com dificuldades de mobilidade, participem? É uma reelaboração da modalidade a partir dos traços daquelas pessoas.

O que deveríamos esperar que um concluinte do Ensino Médio saiba sobre Educação Física?

Que ele ou ela consiga ler a ocorrência social dessas práticas corporais e como elas acontecem na sociedade. Porque em muitas modalidades esportivas os atletas têm números na camisa? Porque os atletas usam trajes de um jeito ou de outro? O que significa o ritual do cumprimento em algumas lutas? Porque a ginástica artística quando é praticada por homens têm certos aparelhos e quando é praticada por mulheres tem outros? O objetivo da Educação Física na escola é proporcionar situações didáticas e experiências de ensino que permitam às crianças, jovens, adultos e idosos interagir com as práticas corporais, entendê-las e repudiar qualquer forma de exclusão dessas práticas.

Como os Jogos Olímpicos poderiam ser abordados na escola?

Nós não trabalhamos mais com a ideia de "ensinar" a dançar, a lutar, a praticar uma modalidade esportiva como o futebol. Nós trabalhamos com a ideia de "tematizar", ou seja, pegar a ocorrência social de uma prática corporal, analisá-la e recriá-la. Os Jogos Olímpicos podem ser tematizados. Pode-se levantar sua história, como se dá escolha das sedes, o que há de política, de economia, entender por que a TV privilegia algumas modalidades, o que significa ser um atleta olímpico — e vivenciar, com as devidas adequações, as modalidades em evidência. Tem de ter a vivência, mas também tem de ter a conversa, a discussão, o debate.

E na vivência das práticas corporais cabem campeonatos e torneios competitivos?

A competição é o elemento mais lúdico que existe porque ela te dá vontade de querer ser melhor do que você foi ontem. Mas a competição é antipedagógica quando você vai disputar com alguém que tem muito mais condição que você. Levar um time para jogar em outra escola e perder de 12 a 0 não faz bem nem para quem perde, nem para quem ganha. Não ensina nada a ninguém. A competição ocorre quando alguém tem ainda alguma chance, quando oferece resistência. Os torneios escolares precisam ser construídos com sensibilidade para que isso ocorra e, ao mesmo tempo, oferecer condições para todo mundo participar.

Você conhece exemplos concretos?

Muitos! Para citar um recente: em 2019, antes da pandemia, acompanhei um trabalho de tematização do jiu-jitsu no Ensino Fundamental. Havia três meninos e uma menina que faziam aulas em academia e que iam ajudando o professor. Ele, por sua vez, pesquisava, apresentava vídeos, e propunha que as turmas reelaborassem a gestualidade. Chegou uma hora que as crianças pediram um campeonato e a escola topou. E tinha menina com menino, menino com menino, menina com menina, todo mundo disputando. O segredo é que quem ia montando as disputas era o professor. Não era um chaveamento baseado num sorteio, em que você tinha uma criança mais forte e habilidosa que a outra. O professor ia montando as duplas e as disputas aconteciam. As crianças entenderam a lógica e adoraram. Os campeonatos fazem parte da cultura esportiva. Não é para acabar com eles, mas pensá-los com uma lógica menos excludente. Como se faz, por exemplo, nas mostras culturais: todo mundo apresenta seus trabalhos, sem excluir ninguém.