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Rodrigo Ratier

"Deus não é de direita", diz monge beneditino

O monge beneditino Marcelo Barros - Divulgação
O monge beneditino Marcelo Barros Imagem: Divulgação

26/10/2020 04h00

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"Há uma polaridade muito grande entre uma visão de espiritualidade como a que eu tenho — engajada, social, política — e outra, que diz que mudando o coração, muda o mundo. Respondo que isso não muda a estrutura. Não é só cada um ter a boa vontade de fazer sua partezinha, é algo mais." Para o monge beneditino Marcelo Barros, 75, o "algo mais" envolve participar ativamente dos rumos políticos do país — no caso dele, com posições fortes, dissonantes no conjunto da Igreja. Ordenado padre por Dom Helder Câmara em 1969, Barros foi seu secretário durante quase uma década. Por 14 anos, assessorou a Comissão Pastoral da Terra (CPT), braço da CNBB para o meio rural. Especialista em Bíblia e autor de mais de 30 livros, é atualmente um dos nomes fortes da teologia da libertação, corrente que interpreta o evangelho como um chamado à superação de injustiças econômicas, políticas e sociais — o que na visão dos críticos seria uma forma de "marxismo cristianizado". Em sua "espiritualidade ecumênica", frequenta terreiros de candomblé e, para escândalo dos católicos tradicionalistas, foi o único representante da Igreja no desfile da Mangueira, que homenageou Jesus no carnaval de 2020. "Em algumas dioceses eu não posso pisar. Seminário de formação de padres, nenhum".

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Em suas palestras, você costuma dizer que Deus não é de direita. Por quê?

Marcelo Barros - Se a gente for falar muito genericamente, eu diria que o que hoje em dia no mundo se constitui como direita é a defesa exacerbada do privado, do lucro, sem nenhuma consideração com a dimensão social da vida em todos os seus aspectos. E o que constitui a esquerda — se for mesmo esquerda —, é a priorização das relações sociais, do bem comum acima do individual. Se é assim, Deus não pode ser de direita. Lendas e mitos de todos os povos afirmam que a criação é uma obra de amor. A natureza, a terra, as águas surgiram como expressão de carinho. Não dá para falar de Deus e, ao mesmo tempo, de arma, destruição, guerra, homofobia.

Nesse sentido, como você vê a aliança entre setores de evangélicos e de católicos tradicionalistas com o bolsonarismo?

De direita esses religiosos sempre foram. Mas são, principalmente, oportunistas. Quando o Edir Macedo inaugurou o Templo de Salomão em São Paulo, lá estavam presentes a presidenta Dilma e oito ministros do governo do PT. O que significa isso? Que o Edir Macedo, enquanto o PT estava no governo, era a favor do PT. Mas na hora que o Bolsonaro acena com privilégios para a igreja dele, é lógico que ele seria a favor do Bolsonaro. Amanhã, se for o que eles chamam de comunista a tomar o governo, ele será comunista. Há padres católicos que seguem o mesmo modelo. Uns fazem mais descaradamente e outros com máscaras. Eles eram muito a favor do papa Bento XVI, que era de direita, e agora estão muito a favor de Francisco, que é de esquerda. Muda-se de acordo com o vento. Se está favorável — economicamente, socialmente, politicamente - para o lado de lá, viram para o lado de lá.

Ao falar dos papados de João Paulo II e Bento XVI, você usa a metáfora da travessia do túnel. O que foi esse túnel?

Desde o século 4, a Igreja Católica opera no modelo de igreja de cristandade: conservadora, opressiva, colonialista. Quando começou a acontecer o processo de independência dos países latino-americanos, todos os papas do século 19 foram contra. Quando a Igreja aceitou falar em direitos humanos, direitos humanos já era carta da ONU, um bem da humanidade toda. Apenas com o Concílio Vaticano 2o, de 1962 a 1965, um projeto de renovação, de ar novo, fresco, entrou pela janela. A Igreja não mudou radicalmente, mas se renovou. O túnel representou uma volta à antiga cristandade, um apagar da proposta de renovação, uma retomada de 30-40 anos atrás. Era um projeto político, um apoio à política norte-americana de direita de Reagan e Bush. Não era uma proposta inocente. É pior do que conservador.

Francisco representa o fim do túnel?

Sim e não. Sim no sentido de que ele mudou, na própria forma de assumir o bispado de Roma, o modelo de Igreja. Mudou a proposta para o que ele chama de sinodalidade. Sínodo é uma palavra grega que significa caminhar em comum, então todas as igrejas são igualitárias. O papa não é o patrão de uma multinacional em que a arquidiocese de São Paulo ou de Recife sejam filiais [de Roma]. É uma comunhão, uma cooperativa social. O papa Francisco retomou isso — claro que com muita dificuldade. Essa proposta ainda é teórica, mas já é uma mudança e ele próprio, pessoalmente, se mexe dentro dessa mudança. Não condenou ninguém, não interveio nas dioceses. É um outro modo de proceder. Mas não representa o fim do túnel porque o direito canônico continua o mesmo. A cabeça dos bispos e da maioria continua a mesma. As doutrinas não mudaram. É um projeto ainda frágil.

Nos anos 2000 você publicou uma carta aberta problematizando uma encíclica papal sobre a eucaristia. Como é o espaço hoje para exercer seu pensamento crítico e vocalizá-lo na Igreja?

Repressão não existe. Isolamento, sim. Quando mandei a carta ao papa João Paulo II, em 2004, aproveitei para conversar sobre a relação dele com a ditadura militar do Pinochet [ditador do Chile entre 1973 e 1990]. Ali, fui realmente afastado de todos os trabalhos da Igreja Católica durante uns cinco anos. Comecei a ficar só com os movimentos sociais, o MST, os indígenas. Foi voltando aos poucos e até hoje, mesmo sob o papado de Francisco, em algumas dioceses eu não posso pisar. Seminário de formação de padres, nenhum.

A Teologia da Libertação ocupa hoje um espaço marginal na Igreja?

Totalmente marginal. Há hoje uma perspectiva para o cristianismo de libertação por conta do Papa Francisco. Ele se declara de uma teologia chamada Teologia do Povo, teologia de tipo social, não de tipo político. A teologia latino-americana da libertação é social e política. O estudo e o aprofundamento das bases desse cristianismo hoje é reduzido a pequenos grupos e núcleos da Igreja Católica e de outras Igrejas também.

Como você vê o papel da religião na política?

Se a gente entende política como exercício da ciência do bem comum, a fé organizada como comunidade religiosa tem a função de possibilitar que a humanidade descubra que esse projeto de bem comum é algo constitutivo do ser humano. O ser humano só é feliz e realizado quando ele se dedica ao bem comum. O caminho da felicidade não é possuir, não é a propriedade privada ou a concorrência, mas a comunhão. Essa é a função das religiões na política. Qualquer religião que seja.

Como isso se dá concretamente?

Tem a política de base, que não é a política parlamentar. É a política de direitos humanos, do acompanhamento de organizações de bairro, conselhos tutelares, defesa da criança, do adolescente, da mulher, das minorias, dos pontos de cultura. São fundamentais como instrumentos políticos. Igrejas ou religiões não me parecem terem função partidária. Porque se elas aceitarem ser partido — parte —, elas perdem uma dimensão que é de universalidade, para todos.

A Igreja deve ser apartidária?

Não. Eu acho isso um erro, porque não existe o apartidário. Não é a mesma coisa para a Igreja um partido que defende o povo e um partido que faz o contrário dos interesses do povo. Mas ela não é partidária porque ela é pluripartidária, não porque é apartidária. Então isso tem de ser dito bem claro porque não é claro para ninguém.

Membros da Igreja devem poder se candidatar? Outras denominações cristãs estão ocupando esse espaço.

Não sou a favor que a Igreja Católica ocupe espaço para poder competir. Os caras estão lá para servir aos interesses dos grupos deles. Eu jamais aceitaria eleger um católico para defender interesses da Igreja Católica. Eu quero eleger para defender os interesses do bairro, do povo, dos pobres. Portanto a Igreja Católica não pode aceitar essa política e essa concorrência. Meu discernimento é que eu sou mais útil em uma política mais ampla do que se eu me candidatar a vereador, deputado, prefeito ou governador. Pessoalmente, eu não optaria por isso. De todo modo, sou contra a proibição de candidatura a membros do clero, que é a resposta oficial da Igreja Católica. Há situações especiais. Quando na Alemanha se enfrentava Hitler, eu entraria em qualquer partido, em qualquer cargo que fosse para enfrentar. Porque era necessário. Agora, no Brasil democrático — democrático formalmente, porque a democracia é falha, é estúpida, é cheia de erros, mas é democrático —, eu optaria pela não candidatura. Não dá pra perguntar se pode ou não pode e eu responder por uma lei teórica. Eu tenho que responder a partir da realidade.