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Anielle Franco

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Vivas os erês e as nossas crianças!

Estátuas de São Cosme, São Damião e Doum; no candomblé, os dois primeiros são representações das entidades ibejis e erês. Peça foi doada ao acervo do Museu da República após ser apreendida e mantida por décadas pelo Museu da Polícia do Estado do Rio de Janeiro - Luciola Villela/UOL
Estátuas de São Cosme, São Damião e Doum; no candomblé, os dois primeiros são representações das entidades ibejis e erês. Peça foi doada ao acervo do Museu da República após ser apreendida e mantida por décadas pelo Museu da Polícia do Estado do Rio de Janeiro Imagem: Luciola Villela/UOL

27/09/2021 06h00

Ontem foi comemorado na Igreja Católica o dia de Cosme e Damião, que eram dois irmãos médicos que cuidavam das pessoas sem cobrar. Acho que essa parte da história é bastante conhecida, e as celebrações da data também, principalmente pelos doces.

O tema de hoje, contudo, não é açucarado. Para as religiões de matriz africana, esses irmãos sincretizam os erês, as entidades infantis. E, independentemente da sua fé, queria compartilhar uma tristeza que venho sentindo nas últimas semanas, e sinto especialmente hoje e que me impediu de sorrir despreocupada ao recordar as minhas lembranças recebendo as sacolinhas na rua de casa, ou pensar em uma saída criativa para que a minha mais velha passe por essa experiência nesse ano pandêmico .

Na simbologia africana, os erês são iluminados de pureza e acompanham os orixás: auxiliam as pessoas nos processos de cura das nossas dores, trazem alegria e dissipam tristezas. Um erê dificilmente te daria um conselho, é mais fácil ele te dar um doce para ajudar a solucionar as questões da vida.

Agora, a dificuldade está em visualizar toda essa simbologia de esperança e alegria, apenas alguns dias após completarmos dois anos de saudade da Agatha Felix, uma criança de apenas 8 anos morta com um tiro de fuzil, em setembro de 2019, no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio de Janeiro, ou depois de ainda hoje não encontrarmos justiça por Miguel Otávio, mais um menino negro de 5 anos que foi vítima da negligência da elite branca de Recife, ou João Pedro, morto enquanto brincava com amigos dentro de casa em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Não vou continuar citando todos os nomes, apesar de saber que sempre é importante lembrá-los, mas a revolta já é grande por saber que é possível fazer uma lista, e que ela seria longa.

Lista de crianças que recebem balas de fogo da sacola de racismo e da política de produção de morte do Estado. Lista de racismo da casa grande, que tem suas crianças criadas, amadas e cuidadas por mães negras que dizem ser "praticamente da família", mas que quando precisam dedicar 10, 15 minutos de atenção à nossa infância negra se abstêm e as deixam vulneráveis à morte.

Eu me recuso a pensar em Ágatha, João Pedro ou Miguel como números amargos da sociedade em que vivemos. Crianças que foram erês em vida, que brincavam, pulavam, sorriam, que possivelmente estariam hoje bolando estratégias para correr atrás dos doces de São Cosme e Damião. Sei que é necessário celebrar a vida, por isso direciono todo o carinho possível para Vanessa Felix e Mirtes Santana. Também sou mãe de duas crianças negras e não sei descrever a angústia de pensar que nossos filhos podem morrer apenas por serem quem são.

Nesse dia de doçuras, meu recado é de que queremos nossas crianças vivas!. Alegres, brincantes, vivas e bem para ainda aproveitar o mundo em suas dimensões mais doces. Queremos nossos filhos e filhas sendo crianças, sem processos romanceados, mas também sem interrupções cruéis.