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Carnaval engajado: tom de protesto deve levar clima político à Sapucaí

Vila Isabel traz temática racial para a Avenida - Valmir Mortatelli/UOL
Vila Isabel traz temática racial para a Avenida Imagem: Valmir Mortatelli/UOL

Valmir Moratelli

Colaboração para o UOL, do Rio

18/04/2022 04h00

Sai o pop dançante, entra o samba em letras engajadas. Na recente edição do festival Lollapalooza, no final de março, em São Paulo, vários artistas protestaram contra o presidente Jair Bolsonaro. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) chegou a proibir o tom político, mas desistiu da ação. Agora, com a proximidade dos desfiles na Marquês de Sapucaí, há quem acredite que os protestos ganharão mais força. Ainda que o presidente não seja citado de forma direta em nenhum deles, há vários enredos engajados em causas sociais e por tolerância religiosa.

Nove das 12 escolas que brigam pelo título no Grupo Especial têm enredos com temáticas afro e indígena ou em homenagem a personalidades negras. A Mangueira propõe uma saudação tripla: o compositor Cartola, o mestre-sala Delegado e o ícone da escola, Jamelão. Já o Salgueiro cantará sobre a resistência do povo negro; Beija-Flor "empretece o pensamento"; a Tuiuti quer trazer uma África moderna; a Portela conduz seu desfile na força do Baobá; a Mocidade canta ao seu orixá Oxóssi; a Grande Rio traz Exu; e a Vila prepara uma homenagem à sua estrela, Martinho.

"Quando o preto começa a escrever a própria história, ele sai de dentro do livro para a capa. Quantos escritores não têm escondido dentro dessas comunidades todas? Pegar o futuro e interpretá-lo no presente é ressignificar a história. Nós levantaremos a lança dos caboclinhos, do maracatu, as espadas de Oxum, as novas aberturas de Exu", afirma Alexandre Louzada, um dos carnavalescos da comissão de carnaval da Beija-Flor.

Chacina em números

Uma das fantasias da azul e branca de Nilópolis trará um cronometro informando quantos negros morrem enquanto o desfile acontece, além de quantos nascem e quantos entram nas universidades. "Usamos o tempo do desfile para chamar atenção para as desigualdades. O Carnaval é amplificador dessas vozes", adianta o carnavalesco, que prepara o protesto já para o começo da apresentação.

Um pede passagem logo após a comissão de frente trará a inscrição da lei nº 11.645, de 2008, que torna obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira no ensino fundamental e médio.

São muitas as bandeiras que o Carnaval comporta. Além dos aspectos de negritude, que remetem à origem do samba, esse ano a Sapucaí terá uma homenagem à diversidade sexual, com a São Clemente cantando o amor de Paulo Gustavo pelo marido Thales e seus dois filhos: "De Thales, o amor venceu/ O sentimento mais fiel / Semente que gerou Romeu/ Semente que gerou Gael".

Um sambista de esquerda

Sob a batuta do carnavalesco Edson Pereira, a Vila Isabel prepara um enredo em homenagem ao seu torcedor mais ilustre, o cantor Martinho da Vila. O sambista, que completa 80 anos, tem posicionamento de esquerda. Em seu recente álbum, "Bandeira de fé", há evidente viés de protesto: "Não esmoreçam e fiquem de pé", diz a letra que dá nome ao disco. "Não sou carnavalesco que gosta de misturar política e Carnaval. Por si só, o Carnaval já tem seu lugar político, o que é de direito. Porém o Martinho tem uma história ligada à política, e isso estará bem representado no desfile", adianta Edson.

Uma das alegorias, toda em tons de verde escuro, se refere a ida de Martinho para Angola, em plena guerra civil. "Pararam a guerra para que ele fosse ao país. É uma parte importante da história dele. Mostra a força de Martinho na África", diz o carnavalesco.

O samba da Vila tem versos potentes, que remetem ao contexto político atual. O refrão traz "a vida vai melhorar", de um verso do Martinho. "Todos nós adoecemos com tudo isso, mas nunca perdemos a esperança", continua Edson.

Exu sem preconceitos

Com um dos sambas mais belos da safra de 2022, a Grande Rio quer conquistar o inédito campeonato propondo olhar sem preconceitos à entidade Exu, cultuada em religiões de matrizes africanas. Gabriel Haddad e Leonardo Bora são os responsáveis por esse desafio.

"A novidade é que agora há um enredo só pra ele. A ideia nasceu de forma espontânea. Ele está em todos os espaços, em cada encruzilhada e junto da gente o tempo todo", afirma Gabriel. "A não compreensão dessa divindade é um dos motivos de tanto preconceito. A escola quer romper isso", continua Leonardo, a respeito do enredo "Fala, Majeté: Sete Chaves de Exu".

Carro da Grande Rio homenageia Exu - Valmir Moratelli/UOL - Valmir Moratelli/UOL
Carro da Grande Rio exalta Exu
Imagem: Valmir Moratelli/UOL

Apenas a Imperatriz Leopoldinense não tem um enredo relacionado à pautas identitárias. Mesmo que o tema sobre o carnavalesco Arlindo Rodrigues não seja político, basta lembrar que coube ao homenageado enredos antológicos no Salgueiro, como o de Zumbi dos Palmares, de 1960, e na Mocidade Independente, com Mãe Menininha do Gantois, em 1976.

Viva o SUS

Outro momento que promete mexer com os ânimos dos foliões na Sapucaí é a passagem da Viradouro. Com "Não há tristeza que possa suportar tanta alegria", a agremiação de Niterói cantará a história do Carnaval de 1919, o primeiro após a pandemia de gripe espanhola. A dupla Marcus Ferreira e Tarcísio Zanon prepara um momento de muita emoção: uma ala formada por médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem que atuaram em hospitais públicos na linha de frente da Covid-19.

"A linha de frente norte-americana foi homenageada no Carnaval de 1919. Simbolizamos esse ato heroico de forma contemporânea a quem mais se expôs para nos ajudar. Vão vir vestidos de brancos, com uma cruz vermelha simbólica, num momento explícito dessa emoção que vivemos recentemente", revela Marcus.

A segunda alegoria da escola também promete impacto: a reprodução de um bonde utilizado para recolher os corpos das vítimas da gripe espanhola pelas ruas da cidade, todo em tons de vermelho, e que depois da pandemia foi decorado para desfilar como celebração dos novos tempos. "Mas nosso Carnaval não tem pegada política, quer dialogar com todo mundo, sem lado A ou lado B, rico ou pobre, branco ou azul", diz o carnavalesco.

Histórico de lutas

O olhar crítico para a sociedade é indissociável do Carnaval. Em 2019, a Mangueira fez uma narrativa de "páginas ausentes" da história do Brasil, ao lembrar de Marielle Franco, vereadora assassinada um ano antes. Em 1989, a Beija-Flor trouxe o Cristo Redentor coberto, censurado pela Igreja por ser representado como mendigo no enredo de Joãosinho Trinta. Até o ex-presidente Lula já passou como escultura, com a mesma escola, em 2003, ao enaltecer o programa Fome Zero.

Reinaldo Alves, do Observatório de Carnaval, núcleo de pesquisa da UFRJ, defende que o diálogo com a política faz parte da gênese da festa e lembra que 2022 é um ano de efemérides que não ganharão protagonismo (como os 200 anos da Independência do Brasil). "Isso também é um ato político!", diz. Além de Salgueiro, Beija-Flor e Vila, suas apostas para desfiles com teor de protestos estão em duas escolas: "a São Clemente homenageia uma vítima do atraso da vacina provocado pelo atual governo e a Tijuca levanta a bandeira dos povos originários", aponta.

Parafraseando os versos "quem não gosta de samba, bom sujeito não é", quem não gosta de protesto, que fique longe da Sapucaí.

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