Eu quero é tocar

A história de Augusto da Costa e Silva, o ritmista autista que toca em duas escolas de samba

Soraia Gama Colaboração para o UOL, em São Paulo Ênio Cesar/UOL

O sonho de Augusto era tocar tamborim, mas ele não passou no teste da Bateria com Identidade, da Rosas de Ouro, há nove anos. Como todo sonhador convicto, seguiu adiante e aceitou o convite de um amigo para conhecer a escolinha de percussão da Unidos do Peruche.

O tamborim não era mesmo a praia dele, mas ofereceram a ele o surdo de segunda. E deu match! Augusto mandou bem e hoje faz parte da escola que desfilará no Grupo de Acesso II — a terceira divisão do Carnaval de São Paulo. E não é só isso: depois de entrar na escolinha de percussão, Augusto conseguiu também ser aceito na bateria da Rosas de Ouro, do Grupo Especial.

Augusto da Costa e Silva, 43 anos, é uma pessoa com espectro autista, tem síndrome de Asperger. Ele é detalhista e possui memória afiada, o que contribui para que seja um ótimo ritmista.

A percussão me deixa calmo, e a doutora disse que é bom para a concentração. A música é a minha paixão. Gosto muito de samba-enredo, pagode, samba de raiz e axé

Augusto trocou os instrumentos de sopro, que tocava na infância, pela percussão. E sonha com voos mais altos: desfilar na Sapucaí, no Rio de Janeiro. Neste ano, ele se despede da Peruche, pois quer fazer parte de outra bateria: a Furiosa.

"Quero tocar no Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro", diz, sem abreviar em nada o nome da tradicional escola de samba carioca.

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Características únicas

Com duas formações técnicas, sendo uma em Gestão em Turismo e outra em Guia de Turismo, Augusto ainda sonha em conseguir trabalhar na área em que se aperfeiçoou. Vem, no entanto, encontrando dificuldades, pois a lei de cotas para pessoas com necessidades especiais é inexistente.

"Isso pode mudar um dia. Acredito no espírito do Divino Soberano e nos apóstolos, Soraia", diz Augusto, que em quase todas as frases repete o nome de seu interlocutor. O ritmista também dá número às pessoas que conhece e têm o mesmo nome. Por exemplo: Carlos 1, Carlos 2, e assim por diante.

Essas características únicas fazem dele um cara especial e querido. E em nada atrapalham o convívio nas quadras das agremiações.

Vitor Camilo da Silva, diretor de bateria da Peruche, refere-se a Augusto como "menino". "Ele tem a alma inocente, é receptivo, cumprimenta todo o mundo, é educado. Nós o amamos de coração."

No aniversário do ano passado, Vitinho deu a Augusto um bolo com duas metades: uma fazia referência à Rosas de Ouro e outra à Peruche.

O diretor de bateria também o levou a um jogo do Corinthians. "Ele não conhecia a Arena Corinthians, então, eu e um outro amigo da bateria, o Everton, fomos com ele."

Mas e no surdo de segunda? "Ele é ótimo. Pega as bossas já na segunda explicação", elogia o diretor. "Temos até um vídeo [veja aqui] de quando ele finalizou o ensaio. Faço o que eu puder por ele. E faço de coração."

Os elogios vêm também de outros especialistas no batuque. Mestre Call, da bateria Rolo Compressor (como é conhecida a bateria da Peruche), afirma: "Ele é comprometido e toca bem demais. É um dos meus melhores ritmistas".

Ele é um ótimo ritmista e é até fora do normal. Pega as coisas muito rápido. Toca e evolui [se mexe e dança quando precisa], não costuma errar. É fora do normal

Mestre Rafa, da Rosas de Ouro

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Música: um santo remédio

A música é uma grande aliada no desenvolvimento de muitas habilidades. E isso vale para toda e qualquer criança. Já em pessoas com espectro autista, que têm Síndrome de Asperger, existe uma melhora significativa da atenção auditiva.

"As crianças com espectro tendem a não desenvolver muito bem essa habilidade. Se a gente fala com elas e as chama pelo nome, elas tendem a ignorar. Tanto que um dos primeiros sinais é os pais acharem que a criança tem deficiência auditiva. Daí fazem teste e descobrem que o problema não é esse", explica Mayra Gaiato, psicóloga especialista em neurociência e focada na reabilitação cognitiva de estimulação cerebral de crianças com autismo.

Segundo Mayra, se a criança não for estimulada, ela não se desenvolve. "Elas gostam de tudo que é sequencial, tudo o que é ritmado, repetitivo, que tem previsibilidade. Por exemplo, as crianças com autismo gostam muito de rotina. Gostam que a gente mostre figuras dizendo o que elas vão fazer depois e depois. E, na música, as notas são repetidas em vários momentos."

É exatamente isso que dá conforto e diminui a ansiedade em pessoas com autismo. E por isso Augusto diz que fica calmo quando está tocando na bateria da escola de samba.

De acordo com a especialista, desenvolver uma atividade que dê conforto, tenha uma funcionalidade, seja útil e possa virar uma profissão, ou mesmo um hobby importante, é fantástico. "Incentivamos, sim, e muito que as pessoas façam música e, se possível, musicoterapia o quanto antes", aconselha a psicóloga Mayra.

O alerta vale para qualquer nível do espectro, principalmente nos mais graves, já que a criança só é acessada com padrão repetitivo, e a música pode ser uma excelente ferramenta para isso.

Divulgação

"Ouvido absoluto" e predisposição para a música

Às vezes, por ter hiperfocos, as pessoas com autismo têm interesses restritos —gostam muito de uma única coisa. E podem também ter o que chamam de ouvido absoluto.

"Se ouvem um copo caindo no chão, elas sabem em que nota esse copo caiu. Isso pode trazer uma predisposição maior para a música. Isso é ouvido absoluto. São casos específicos, mas essas pessoas podem se tornar especialistas, com habilidades até geniais, acima da média", explica Mayra Gaiato (foto ao lado).

Por outro lado, quem tem autismo também pode ter hipersensibilidade auditiva, e aí a frequência do som gera uma sensação mais intensa, até desagradável. Isso explica os casos de pessoas autistas que enfrentam dificuldade com barulho.

"Algumas precisam usar fone de ouvido ou colocam as mãos no ouvido quando cantam parabéns nas festinhas de aniversário, por exemplo. Nesses casos, é importante ter a sensibilidade de, aos poucos, inserir notas e sons mais baixos, até chegar ao padrão de volume normal da sociedade. Mas isso é gradual, as crianças vão se habituando ao longo de meses", explica Mayra.

Além disso, outro ganho é fazer com que a pessoa com autismo se sinta pertencente a um grupo. A socialização e interação social também ajudam no tratamento. "O grande déficit do autismo é a interação social. A música pode fazer essa pessoa se sentir útil, trocar ideias e figurinhas de algo de interesse dela."

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Samba ou música clássica, o que é melhor?

De acordo com a psicóloga, a cadência do samba é particularmente mais simples e repetitiva, o que facilitaria o tratamento. A questão é que isso é pouco divulgado e quase nada estimulado.

"Nos próprios conservatórios, a gente vê muito o ensino de música clássica, então, [a história do Augusto] é uma oportunidade para inserir esse ritmo nas propostas de tratamento. As crianças, de forma geral, não gostam de música clássica. Ter outras possibilidades é importante para o desenvolvimento delas."

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