Isolamento do isolamento

Na pandemia, pessoas LGBTQIA+ se viram excluídas dentro da própria casa, o que aumentou sofrimento psíquico

Vinícius de Oliveira Colaboração para o VivaBem

"De certa forma, sinto que desde março de 2020 eu apenas existo. O viver está aguardando esse momento passar". É assim que a personal trainer A.K.* define seu período de isolamento na pandemia. Bissexual não assumida, a profissional de educação física passou a invalidar sua existência como LGBTQIA+ ao voltar a morar com a mãe aos 41 anos. "Já estava adaptada à situação de me esconder para o 'mundo lá fora'. Agora, quando eu me vi tendo que me esconder dentro da minha própria casa... É como se o único lugar blindado, seguro e livre tivesse desaparecido", relatou.

O caso não é incomum. Segundo um estudo publicado em 2020 pelo coletivo #VoteLGBT, o cenário da pandemia potencializa uma série de situações já enfrentadas pela comunidade no dia a dia. Na pesquisa, 11% das pessoas entrevistadas relataram enfrentar problemas no convívio familiar. Além da convivência forçada pelo isolamento, muitos perderam contato com suas redes de apoio —termo usado para designar amigos que os aceitam e ambientes de convívio social onde podem se sentir inteiramente seguros, física e emocionalmente.

*Nome abreviado a pedido da entrevistada

Voltar para a casa de quem não o aceita

A falta de uma rede de apoio, a pressão para "voltar ao armário" dentro de casa e as dificuldades financeiras deixaram a população LGBTQIA+ ainda mais suscetível à ansiedade, à depressão e a crises de pânico. Ainda de acordo com o estudo do coletivo #VoteLGBT, 43% dos entrevistados afirmaram que a saúde mental piorou no isolamento.

É o caso de Filipe Ferreira. O auxiliar administrativo de 23 anos ficou desempregado no início de 2020 e não conseguiu arranjar emprego durante a pandemia. Por isso, voltou a depender financeiramente dos pais, que não aceitam sua orientação sexual. "Tive algumas crises de ansiedade por ficar em casa parado, sem trabalhar, sem ver amigos, sem ir à academia, sem poder fazer qualquer coisa para me distrair", disse o jovem, que é gay.

Para enfrentar esse período, Filipe adotou um cachorro chamado Peralta e contou com o apoio do namorado Kaique Nascimento, que sempre tentou ajudá-lo mesmo que à distância e virtualmente. "Para enfrentar o isolamento, muitas pessoas têm recorrido à internet com o objetivo de manter seus vínculos afetivos e sociais. Algumas têm buscado fazer novas atividades, como cuidar de um animal de estimação ou plantar", explica a psicóloga Dalcira Ferrão.

Sintomas do isolamento na saúde mental

  • - Desesperança

  • - Angústia

  • - Estresse agudo

  • - Crise de ansiedade

  • - Irritabilidade

  • - Depressão

  • - Automutilação

  • - Ideação suicida

  • - Estresse pós-traumático

Exclusão antecede pandemia

"O público LGBTQIA+, que já se encontrava vulnerável antes da pandemia, agora tem suas fragilidades emocionais, profissionais e familiares potencializadas. Violências que se davam no espaço público passaram a ocorrer também na esfera privada, dentro de suas casas, decorrentes da falta de apoio do núcleo familiar", conta Ferrão, que faz parte do Conselho Federal de Psicologia.

Essas violências levam a um ciclo da exclusão que existe muito antes do coronavírus. Na maioria dos casos, o ciclo começa na família, que rejeita a pessoa LGBTQIA+. Depois vêm os episódios de bullying na escola, aumentando a evasão. Como um efeito dominó, isso diminui as chances de inserção no mercado de trabalho e soma-se, ainda, à falta de representatividade política.

Organizador da publicação "Tentativas de Aniquilamento de Subjetividades LGBTIs", o psicólogo Héder Bello explica que as violências constantes fazem com que as pessoas da comunidade busquem acolhimento fora de casa. "Só que, com a pandemia, muitas pessoas voltaram a ficar isoladas, sem apoio afetivo da comunidade. Esse isolamento social trouxe uma sensação de muita solidão e desamparo", diz.

Encontros no mercado para diminuir a saudade

Preocupada com a saúde da mãe idosa, A.K. a chamou para morarem juntas durante a fase mais restrita da pandemia. O que a personal trainer não imaginava é que ficaria meses sem ver a namorada e teria de esconder sua orientação sexual dentro do próprio lar, onde antes considerava um porto seguro. "Minha mãe e eu tivemos algumas crises por hábitos e opiniões diferentes. Há 27 anos eu não ouvia posicionamentos tão contrários aos meus dentro da minha própria casa", contou.

A.K. conta que foram sete meses sem ter contato íntimo com a namorada. "Por algumas vezes, chegamos a marcar um encontro no supermercado na intenção de diminuir a saudade e reduzir a sensação de culpa, já que se tratava de uma situação essencial", revelou. A distância e o isolamento geraram um grande estresse no relacionamento e a personal trainer achou que o namoro poderia acabar ali.

"Tivemos muitos atritos. Não cheguei a pensar em terminar porque a gente não se via, mas me irritei com a submissão da A.K. e necessidade de ela se esconder", afirmou a coordenadora de logística Ana Carolina Soares, namorada da personal.

Perda de independência e de personalidade

"Antes da pandemia, eu tinha acabado de arrumar um emprego. Recém-inaugurada, a empresa infelizmente acabou fechando e todos foram mandados embora", lamentou Filipe ao relembrar o início da pandemia. A renda era uma forma de o auxiliar administrativo evitar conflitos relacionados à sua sexualidade dentro de casa. "Por mais que meus pais nunca tenham cobrado nada, sempre fiz questão de ajudar para não dar motivos para falarem", explicou.

Sem dinheiro, o jovem passou a depender dos pais para tudo. Perdeu a independência e se viu obrigado a seguir as regras impostas por eles. "Dentro de casa sou uma pessoa e fora sou outra. Uma vida, dois Filipes. É muito difícil. Isso acaba afetando muito a minha personalidade", lamentou. Sem liberdade para viver sua totalidade, o auxiliar administrativo relatou que teve alguns episódios de crise de ansiedade.

Estar em um espaço onde sua subjetividade e a sua existência não são aceitas causa um grande sofrimento psíquico. Seria como retornar ao 'armário de vidro', onde as pessoas sabem quem você é e como você vive, mas ignoram sua existência e forma de expressão no mundo

Dalcira Ferrão, psicóloga

Principais impactos da pandemia na população LGBTQIA+

Piora na saúde mental

Enquanto 43% apontam uma piora na saúde mental, 54% das pessoas LGBTQIA+ entrevistadas afirmam precisar de apoio psicológico. Doenças como ansiedade, depressão e crises do pânico afetam mais brasileiros LGBTQIA+ do que a média nacional.

Afastamento da rede de apoio

As novas regras de convívio, apontadas por 16% como um problema, impediram o acesso da população LGBTQIA+ às redes de apoio e deixaram a comunidade exposta a cenários de vulnerabilidade. Quem morava sozinho ficou ainda mais isolado (12%), enquanto outros tiveram de viver em ambientes familiares cercados por preconceito e, até mesmo, violência (11%).

Falta de fonte de renda

Os problemas gerados pela crise financeira são muito maiores entre quem já era excluído do mercado de trabalho. O estudo deixa evidente uma relação entre a preocupação com a falta de dinheiro (10%) e o desemprego (7%), condições que estão associadas com o aumento da ansiedade e da depressão na população LGBTQIA+.

Grupos de apoio podem ajudar

A falta das redes de apoio e dos espaços de convivência fez com que uma parcela da população LGBTQIA+ tenha ficado mais adoecida psicologicamente, aumentando a demanda e a procura por serviços de saúde mental. "Neste período, várias iniciativas se colocaram à disposição dos grupos em situações de vulnerabilidade, inclusive de maneira gratuita ou com valores sociais", conta a psicóloga.

"Hoje, temos vários grupos de psicólogos e projetos, inclusive ligados às universidades, em que as pessoas podem procurar ajuda psicológica. Por conta do isolamento social, aumentou muito a oferta de serviços oferecidos pelos meios digitais, gratuitos ou com valor social", completa o pesquisador Bello.

Veja algumas exemplos de plataforma voltadas ao apoio e cuidado da saúde mental da população geral:

  • App Macro Solidária: plataforma gratuita para iOS e Android disponível em todo Brasil com apoio psicológico, teleconsultas médicas e suporte jurídico;
  • Núcleo de Telessaúde (Nutes): atendimento oferecido pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) para maiores de 18 anos, mediante agendamento. Consulte os horários disponíveis no site;
  • Conselho Federal de Psicologia: consulte no site os psicólogos cadastrados em todo o Brasil.

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