Vivendo com Moyamoya

As gêmeas Patricia e Priscila foram diagnosticadas com doença Moyamoya, condição rara que requer cirurgia

Giulia Granchi De VivaBem, em São Paulo Julia Rodrigues/UOL

Em 2019, as gêmeas Priscila e Patrícia Ueda, 27, foram diagnosticadas com a doença Moyamoya, uma condição rara que afeta o cérebro e não tem cura.

Para garantir uma boa qualidade de vida e evitar AVCs (acidentes vasculares cerebrais), o maior perigo para quem vive com o quadro, elas precisam realizar ao menos duas cirurgias cada, com o custo total avaliado em cerca de R$ 450 mil, valor que tentam arrecadar em vaquinha.

Julia Rodrigues/UOL
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A primeira reação da paulista Patrícia Ueda ao sentir um formigamento no pé esquerdo foi mexer as pernas, esperando que a sensação esquisita tivesse sido causada por passar muito tempo sentada. Era uma sexta-feira comum de trabalho na empresa onde ela estagiava enquanto cursava farmácia na universidade.

Duas horas passaram e nada de o incômodo sumir. Também tive dor de cabeça forte e achei que minha pressão estava alta. Pesquisei sobre os sintomas na internet e com a suspeita de que pudesse ser um AVC, decidi ir para o hospital, sozinha.

A suspeita estava certa. Patrícia estava sofrendo de um quadro de AVC transitório que, de acordo com o cardiologista Roberto Kalil, ocorre quando há uma obstrução, chamada de isquemia, ou redução súbita e temporária do fluxo sanguíneo para determinada região do cérebro, mas que não chega a matar as células cerebrais.

O exame inicial, uma ressonância magnética, acusou alterações. Depois, uma consulta com um neurologista e a realização mais exames permitiu o diagnóstico da doença Moyamoya, condição rara que afeta o cérebro e não permite o fluxo ideal de sangue e oxigênio. Sua irmã gêmea, Priscila, que já havia sofrido com sintomas similares anos antes, mesmo consultando-se com diferentes neurologistas, também fez exames e recebeu o mesmo diagnóstico.

A notícia veio em agosto de 2019 e, desde então, as irmãs têm tentado manter-se ocupadas com seus projetos pessoais, companhia de amigos e divulgação da história delas, em busca de arrecadar fundos para o tratamento.

"É difícil se acostumar com a ideia. Ninguém está preparado para receber a notícia de que tem uma doença rara. Mas, honestamente, não chorei muito. Tenho pensamento forte e encaro a doença como mais um aprendizado", diz Patricia.

Mesmo com o susto do diagnóstico, sabíamos que tínhamos muito o que agradecer: a doença não nos deixou sequelas permanentes e recebemos muito apoio de amigos, parentes e até desconhecidos.

Patrícia Ueda

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O que é e como age a doença Moyamoya

A doença Moyamoya é uma condição cerebrovascular oclusiva crônica que acomete uma região do cérebro chamada de polígono de Willis e as artérias carótidas internas provocando tromboses, isquemias transitórias de repetição e hemorragias intraparenquimatosas (sangramento não traumático no cérebro).

"As carótidas são responsáveis pela maior parte do sangue que chega na cabeça e os ramos delas que fazem a irrigação do cérebro", explica Koshiro Nishikuni, médico neurocirurgião do HSPE (Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo).

Em pacientes com o quadro, a obstrução das artérias carótidas internas provoca, com o tempo, neoformações vasculares de fino calibre e pouco eficientes para a passagem do sangue com oxigênio. Esses novos vasos apresentam no exame de angiografia cerebral um padrão diagnóstico típico descrito na literatura como "fumaça".

Por conta da obstrução, a doença geralmente causa AVC isquêmico na faixa pediátrica e AVC hemorrágico, mais comum em adultos. "As consequências desses eventos dependem do território do cérebro que é afetado. De maneira geral, podem ocorrer paralisias motoras nas pernas e nos braços ou, quando ocorrem de forma mais aguda, comprometimento da consciência, gerando dificuldade de fala e raciocínio", indica Hamilton Matushita, coordenador do grupo de neurocirurgia pediátrica do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).

Pelo bloqueio circulatório ou sangramento no cérebro, dependendo da área acometida e do socorro prestado aos pacientes, embora mais raro, a doença também pode levar à morte.

A condição é rara. Até 1976, havia em torno de 400 casos descritos na literatura médica —cerca de 80% deles no Japão, onde a doença parece ser mais incidente, embora também haja relatos de casos em pessoas brancas e negras.

É uma doença progressiva, a causa na maioria das vezes não é conhecida e atinge principalmente crianças de até 5 anos e outro pico de incidência acontece em adultos com mais de 40 anos.

Entre os principais sintomas estão a dor de cabeça acompanhada de formigamento no corpo e paralisias transitórias. Outras manifestações menos frequentes são a epilepsia, crises convulsivas e movimentos involuntários. Muitas vezes o diagnóstico só chega após um episódio de AVC.

"Geralmente, os sinais têm caráter transitório, somem após algumas horas. Justamente por isso, é comum que pacientes não percebam ou relevem o que estão sentindo, o que atrasa o diagnóstico", explica Matushita.

Erika Onodera/Arte UOL Erika Onodera/Arte UOL

O nome Moyamoya significa nuvem de fumaça em japonês, fazendo referência a aparência dos vasos sanguíneos vistos nos exames.

Koshiro Nishikuni, médico neurocirurgião do HSPE (Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo)

Unidas pela genética

A causa exata da doença Moyamoya não é conhecida. A síndrome é associada com outros quadros como neurofibromatose, anemia falciforme, síndrome de Down, radiação ou radioterapia da cabeça.

A herança genética também é apontada como um dos fatores de risco, especialmente nas pessoas de origem japonesa, como são Patricia e Priscila.

No caso delas, gêmeas idênticas que dividiram o óvulo materno antes do nascimento, a chance do quadro ter origem genética e ser hereditário é grande. Não há, no entanto, outros casos conhecidos na família.

"As duas provavelmente têm os genes recessivos. O risco para os filhos delas, caso venham a ser mães, é menor, mas fazendo um sequenciamento genético com os parceiros, é possível escolher embriões que não tenham os genes", explica Ciro Martinhago, geneticista doutor em genética reprodutiva pela Unesp (Universidade Estadual Paulista).

Mas embora elas dividam essencialmente o mesmo código genético, na personalidade, e inclusive na maneira de lidar com a doença, as irmãs são bem diferentes. "A Patrícia é muito mais otimista e extrovertida. Eu costumo ficar mais na minha e já acho que as coisas vão dar errado. Ela está sempre me motivando a não pensar assim", conta Priscila.

O modo de ver o mundo era tão diferente que, muitas vezes, resultava em brigas entre as duas. "As coisas só melhoraram há cinco anos, quando eu fui morar com a minha mãe e a Pri ficou com o nosso pai. Hoje a relação é bem melhor, somos muito mais próximas", conta Patricia, mostrando a tatuagem que fizeram juntas, um símbolo que significa união.

Julia Rodrigues/UOL Julia Rodrigues/UOL

Como funcionam as cirurgias

O tratamento para a doença Moyamoya é eminentemente cirúrgico. "A única esperança é uma cirurgia de revascularização cerebral. O objetivo é fornecer um aporte sanguíneo adequado à área afetada ou às áreas em risco, evitando assim riscos de quadros como os AVCs", explica Matushita.

Existem três técnicas que podem ser utilizadas na cirurgia: a revascularização direta, que constrói uma ponte direta de uma artéria de fora do cérebro para uma do cérebro; a revascularização indireta, que pega qualquer tecido bem vascularizado do crânio e implanta na superfície do cérebro, esperando que gere a revascularização; e a combinada, que mistura as duas anteriores.

No caso das gêmeas Ueda, já se sabe que a revascularização será necessária em ambos os lados. Para Priscila, uma terceira cirurgia pode ser necessária.

"Fazer dos dois lados costuma ser suficiente para a maioria dos pacientes —uma minoria precisa da intervenção também no meio da cabeça. A cirurgia oferece uma proteção de 90%. Uma minoria dos pacientes não responde de maneira adequada, por que o Moyamoya progride muito rápido. Às vezes, não dá tempo de a cirurgia funcionar", indica o cirurgião.

De acordo com o especialista, o resultado do tratamento está diretamente relacionado com a fase de diagnóstico da doença —descobrindo cedo, em um paciente sem sequelas, o esperado é uma vida normal após o procedimento.

Erika Onodera/Arte UOL Erika Onodera/Arte UOL

"O diagnóstico mudou muito as nossas vidas"

Para a mãe das gêmeas, Claudia Tokudo, a notícia de que as filhas possuíam uma doença rara e incurável virou a vida de ponta cabeça.

Precisei fazer muita pesquisa. Na internet, só encontrei poucas informações, o conteúdo era bastante técnico. Também conversei muito com convênios médicos e profissionais da saúde até chegar em um bom cirurgião.

Para não perder o controle no dia a dia, ela organiza pastas das filhas com exames, consultas e uma planilha com todos os gastos. Enquanto todos as cirurgias necessárias não são feitas, ela fica de olho nas filhas e tenta controlar as saídas de casa, pedindo sempre para que mandem mensagem.

Seu receio é que aconteça alguma complicação causado pela doença enquanto as gêmeas estão longe de casa. Apesar do medo, na frente das filhas ela busca se manter forte. "Já chorei, mas sozinha. Sou reservada e quero é dar força para elas. Nossa relação é assim: tem problema? Vamos correr atrás. Nosso objetivo é não deixar elas se abaterem", diz.

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Luta para conseguir as cirurgias

As intervenções cirúrgica que Patrícia e Priscila necessitam são delicadas e requerem, além de uma estrutura hospitalar preparada, profissionais especializados —no Brasil existem poucos médicos com experiência com a doença.

Existe a possibilidade de realizar o procedimento pelo SUS (Sistema Único de Saúde), mas a fila costuma ser longa, e quanto mais o tempo passa, maior é a chance de complicações causadas pelo quadro.

"Por descobrirmos em um estágio avançado, sem as cirurgias, chegamos a ouvir de médicos que nossa expectativa de vida era de 5 anos", lembra Priscila.

Para conseguir custear todos os procedimentos, que somam cerca de R$ 450 mil, as irmãs criaram uma vaquinha e pretendiam fazer um jogo de bingo em um galpão na zona leste de São Paulo, onde a família mora, mas o plano foi interrompido pela pandemia.

Até agora, Patrícia realizou as duas cirurgias para aproveitar que o convênio de seu estágio profissional pagava uma pequena parcela dos custos. Sua irmã Priscila ainda aguarda angariar mais fundos para fazer o segundo procedimento.

"Se conseguirmos muitas doações e sobrar dinheiro, daremos a outras pessoas que sofrem com a doença. Não ficaremos com nada", diz a mãe das jovens, Claudia Tokudo.

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